Como a mídia e a direita provocam o fenômeno Clodovil

O eleitorado de São Paulo elegerá 70 deputados federais no próximo domingo (01/10). A se confirmarem as previsões de quase todas as pesquisas, os candidatos Paulo Maluf (PP) e Clodovil Hernandes (PTC) devem ser os campeões de votos. Maluf não chega a ser

Antes da análise, um pouco de fatos. A pesquisa Ibope divulgada na Folha de S.Paulo desta terça-feira (26/9) volta a apontar a vitória eleitoral folgada do apresentador e ex-estilista pelo modesto Partido Trabalhista Cristão. Empolgado com a repercussão da candidatura, o presidente nacional da sigla, Ciro Moura, diz que Clodovil “será o mais votado ou o segundo mais votado do estado” de São Paulo, com cerca de 1 milhão de eleitores. Clodovil é menos modesto ainda: acha que sua votação pode chegar à casa dos 3 milhões.


 


Todos os candidatos têm o direito de confiar nas urnas – mas é evidente que a projeção de Clodovil não parece nada digna de respeito. Três milhões de votos equivalem a 15% do eleitorado paulista e garantiriam até 11 representantes do estado na Câmara Federal. Nunca um candidato proporcional teve tanto voto assim no Brasil. O recorde é do ex-barbudo Enéas Ferreira Carneiro, que teve 1,5 milhão de eleitores em 2002 pelo ultradireitista Prona.


 


Em disputas eleitorais como a de São Paulo, a concorrência é acirrada – são cerca de 20 candidatos a deputado federal por vaga. Para ter representantes na Câmara, um partido precisa arrebanhar pelo menos 280 mil votos. É aí que a maioria das legendas deixa a ideologia de lado e adere ao pragmatismo, apostando em candidatos célebres. Como se sabe, os famosos são naturais puxadores de votos, embora nem sempre representem fielmente os ideais do partido.


 


Contradições
O caso de Clodovil é mais do que exemplar. Não há praticamente nenhuma identidade entre sua candidatura e os ideais defendidos, em tese, por seu partido. O PTC, num artigo de seu estatuto, orienta, por exemplo, “a pregação incansável da fraternidade, do amor e dos valores cristãos”. Em outro artigo, alerta que “poderá excepcionalmente, impugnar, qualquer filiação de eleitor que possa trazer danos à legenda e à imagem do Partido”.


 


Se um desses artigos fosse posto em prática – um só -, Clodovil jamais poderia militar na legenda. Tome-se de exemplo a forma como o artista manifesta ódio ao PT. Suas declarações contra petistas lhe renderam processos judiciais e até demissão. Em 2004, enquanto apresentava o programa A Casa É Sua, na RedeTV!, Clodovil foi processado pela então prefeita de São Paulo, Marta Suplicy – a quem ele chamou de “idiota”, “inútil”, “desocupada” e “perua que teve sorte”.


 


O apresentador sofreria outro processo, com base numa entrevista em que qualificou a vereadora petista Claudete Alves como “macaca de tailleur”. Haja fraternidade cristã. Em abril de 2005, o apresentador foi condenado por danos morais e teve de pagar multa de R$ 20,8 mil a Claudete. Formado em colégio interno por padres católicos, o ex-estilista não conteve a verve discriminatória nas passarelas, nem nos palcos ou na TV, sequer na disputa à Câmara Federal.


 


Em entrevista à repórter Mônica Bergamo, não hesitou quando foi indagado sobre a vantagem de ser político no Brasil: “Nenhuma. Ainda mais porque eu nasci aqui e não na Alemanha, onde tudo é melhor, a começar pela raça. Nós viemos de índios bobos, antropófagos, você não pode pretender que as coisas sejam iguais”. O cristão PTC, até agora, não se pronunciou publicamente sobre a posição hitlerista de seu candidato.


 


Fora de lugar
Mas o jeito despudorado de Clodovil parece não ter sido a principal razão de sua candidatura. Longe da moda e queimado no meio artístico, Clodovil é uma figura decadente. Em sua recente trajetória, os fracassos chamaram mais atenção do que as tradicionais polêmicas gratuitas e grosseiras. As demissões se somaram, uma mais rápida que a outra. Um tumor na próstata, detectado em setembro de 2005, abalou o artista, que admitiu ter-se sentido vulnerável. Meses depois, o musical Eu e Ela, terceiro espetáculo de sua autoria, foi metralhado pela crítica e ignorado pelo público.


 


Talvez esse amontoado de reveses, catalisado por dívidas financeiras, explique o interesse repentino pela carreira política. Em meio a tanta fragilidade, Clodovil foi estimulado a se candidatar. Um dos convites – pasmem! – veio da senadora Heloisa Helena (PSOL), que, como o PTC, diz-se guiar pelo cristianismo. O artista só anunciou a candidatura em janeiro, durante a divulgação de seu musical: “Vou me candidatar a deputado federal. E não foi por viadagem. Foi por convicção. Foi porque acredito”.


 


Difícil entender como Clodovil crê na política. Por vias normais é que não é. Em campanha praticamente restrita ao horário eleitoral gratuito de rádio e TV, o candidato admite que não tem proposta nenhuma. Vai além: diz que nem sequer sabe propor. A razão de sua candidatura seria sua coragem, sua capacidade de denunciar. Disposto a pôr os dedo na ferida, ele promete que “Brasília nunca mais será a mesma” – uma frase enigmática e retórica.


 


Aos cidadãos que acompanham política, têm consciência e se preocupam de fato com o desempenho do Congresso Nacional, a candidatura do apresentador é um ultraje. Clodovil não vai à luta para mudar a Câmara. Mesmo antes de ser eleito, já reconhece, indiretamente, sua inaptidão ao cargo de deputado federal. O parlamento não tem somente a função de fiscalizar o Executivo e denunciar eventuais irregularidades. Cabe, acima de tudo, legislar – ou seja, elaborar, propor e votar leis. Outra função essencial da Câmara é iniciar a tramitação de projetos vindos da Presidência.


 


Por isso é que se trata do “Poder Legislativo”. Para legislar, é preciso entender o funcionamento da Constituição, acompanhar o clamor popular, sintetizar essas aspirações e, então, propor leis, resoluções e emendas. Políticos podem e devem denunciar. Mas, se a vocação denuncista for a única qualidade assumida do candidato, seria mais justo e útil que aspirasse a outras funções.


 


Tradições paulistas
E por que, mesmo assim, a eleição de Clodovil é iminente – e com a constrangedora possibilidade de uma votação na faixa das centenas de milhares de votos? À semelhança do que Enéas representou em 2002, Clodovil é agora o candidato que encarna duas tendências do eleitorado paulista: de um lado, a aceitação da excentricidade na política; de outro, a opção pelo “voto de protesto” – que, na prática, só tem a prejudicar a democracia e a política.


 


Não é a primeira vez que os eleitores vão descarregar um caminhão de votos num candidato-fetiche. Essa combinação de excentricidade com protesto já se fez clara, por exemplo, nas eleições de 1958 para a Câmara Municipal de São Paulo. Nenhum nome foi mais citado nas cédulas eleitorais do que o rinoceronte Cacareco – estima-se que 100 mil paulistanos “votaram” no não-candidato. Na época, o paquiderme corria o risco de voltar do zoológico de São Paulo para o do Rio de Janeiro. A população nem ligou para a importância do processo eleitoral e protestou nas urnas.


 


Clodovil poderá ser o Cacareco (ou o Enéas) da vez. Os eleitores que se aventuram a escolher um ou outro não levam em conta as idéias e os projetos do candidato – o papel que o futuro parlamentar almeja na cena política. O próprio Enéas, na atual legislatura, só virou notícia quando teve de cortar a barba devido a uma leucemia. Justo a barba, um símbolo de suas candidaturas desde 1989, ao lado da careca e do bordão “meu nome é Enéas”.


 


O eleitorado paulista
É fato, também, que as últimas eleições em São Paulo, sobretudo as disputas proporcionais, têm sido marcadas por ondas. O eleitorado paulista costuma consagrar candidaturas que personificam o espírito do momento, o calor da hora. Foi o caso do radialista Afanasio Jazadji. Em 1986, catapultado por seu programa de rádio, Afanasio se elegeu deputado estadual com incríveis 558.138 votos. Nas quatro eleições seguintes, ele não conseguiu atingir nem um terço dessa votação recorde.


 


A principal razão é que seu trunfo eleitoral – o quadro “Disque-Denúncia”, popularíssimo em 1986 – não estava mais no auge. Tinha perdido o frescor e a marca da originalidade. Fora imitado à exaustão. A onda passou. Afanasio até manteve dezenas de milhares de eleitores fiéis, sobretudo nos setores conservadores da sociedade. Mas a concorrência nessa fatia do eleitorado aumentou – e muito.


 


O mais curioso e trágico é que, se a projetada supervotação em Clodovil for concretizada nas urnas, em boa parte ela será fruto de uma onda desencadeada pela direita e pela mídia golpistas. Os esforços da oposição para paralisar o governo Lula e desqualificar a bancada governista foram bem-sucedidos. Por culpa justamente da oposição, o Congresso, efetivamente, abandonou pautas de interesse nacional e se voltou para o espancamento da base governista.


 


Só que a direita terá de engolir a contrapartida de suas táticas criminosas, já que não apenas a imagem do PT sai arranhada da crise. Com o apoio irrestrito das grandes redes jornalísticas, a oposição cravou no imaginário popular a impressão de que a atual legislatura é a pior da história. Querendo ou não querendo, foi a oposição, e não o PT, que deixou no ar a maldita impressão de que todos, na política, são iguais.


 


Desserviço
A tese é controversa e oportunista, mas impressiona variados setores da sociedade. Na hora de votar, milhões de eleitores se sentem impelidos a protestar contra as falsas verdades que a direita neoliberal faz disseminar. Nessa onda, nulidades políticas como Clodovil são eleitas não para legislar – mas para transformar o plenário da Câmara em palanque de denúncias. O eleitor troca o legislador pelo justiceiro. É a contaminação da política – o desserviço que políticos desonestos e a mídia burguesa prestam ao País.


 


Clodovil, em suma, é mais um embuste eleitoral vergonhoso. Em vez de levar a sério o cargo que pleiteia, regozija-se na campanha com piadas sobre a homossexualidade e afirmações ambíguas, do tipo “vocês não pensem que eu sou passivo, não. Pisa no meu pé para você ver o que acontece”. Ou esta: “Eu não vou prometer nada. Eu vou denunciar aquilo que passar pela minha frente. É preciso acabar com essa passividade”.


 


Ao responder se é de esquerda ou de direita, o candidato do PTC não vê nenhum problema em se dizer “erecto”. Sem se importar com a idade de quem acompanha o horário político, ri de si mesmo, no ar, ao verbalizar a “brincadeirinha” em torno de seu número eleitoral: “3611 é o meu número, vocês sabem disso. Agora, por quê que eu escolhi o 11? Meu amor, porque o 24 já era. Agora é 1 atrás do outro”. Se a direita e a mídia fossem sérias no País, o Congresso Nacional jamais teria aberrações da estirpe de Clodovil.


 


Por André Cintra,
da Redação