Belluzzo: “As suaves truculências da liberdade”
Enquanto a importância da imprensa para o povo aumentou enormemente com o seu desenvolvimento como meio de comunicação de massas, ''diminuiu em grande escala a proporção de pessoas que podem expressar suas opiniões e idéias através da imprensa''.
Publicado 07/11/2006 04:41
Em Brasília, militantes petistas hostilizaram e agrediram jornalistas em manifestação pró-Lula. A Associação Nacional de Jornais lançou nota de condenação à intolerância dos militantes:
''Procedimentos desta natureza têm origem naqueles que não entendem o pleno exercício da liberdade de informação, que só entendem a linguagem da truculência.''
O jovem Karl Marx escreveu páginas memoráveis sobre a liberdade de imprensa. ''A imprensa livre é o olhar onipotente do povo, a confiança personalizada do povo nele mesmo, é a franca confissão do povo a si mesmo.''
Estas palavras foram escritas como defesa apaixonada da liberdade de imprensa, diante dos arreganhos absolutistas do Estado prussiano que acabava de editar um Código de Censura.
Contra essa ameaça, o ultra-republicano Karl reivindicava a promulgação de uma lei de imprensa. ''A lei de censura e a lei de imprensa são tão diferentes quanto o capricho e a liberdade''.
Ele suspeitava que a ausência de uma lei que regulamentasse o exercício das liberdades de opinião e de informação, tornado-as disponíveis para todos os cidadãos, transformaria a livre opinião no privilégio e no capricho de poucos.
Em 1947, a Comissão sobre a Liberdade de Imprensa, nomeada pelo Congresso dos EUA, advertia em seu relatório final: existe uma razão inversamente proporcional entre a vasta influência da imprensa na atualidade e os grupos sociais que podem utilizá-la para expressar suas opiniões.
Enquanto a importância da imprensa para o povo aumentou enormemente com o seu desenvolvimento como meio de comunicação de massas, ''diminuiu em grande escala a proporção de pessoas que podem expressar suas opiniões e idéias através da imprensa''.
O relatório procurou apontar ''o que a sociedade tem direito de exigir de sua imprensa''. Definiu duas regras essenciais para o legítimo exercício da liberdade de informação e de opinião:
1) ''todos os pontos de vista importantes e todos os interesses da sociedade devem estar representados nos organismos de comunicação de massas'';
2) ''é necessário que a imprensa dê uma idéia dos grupos que constituem a sociedade. Dizer a verdade a respeito de qualquer grupo social – sem excluir suas debilidades e vícios – inclui também reconhecer os seus valores, suas aspirações, seu caráter humano.''
As recomendações exaradas no relatório da Comissão sobre a Liberdade de Imprensa refletem o espírito do tempo nos EUA e na Europa Ocidental: a aposta no aperfeiçoamento dos processos de controle democrático sobre o Estado e o poder privado.
O trauma das duas guerras mundiais e da Grande Depressão saturou o ambiente intelectual dos anos 40 do século 20 da rejeição ao mercado descontrolado e ao totalitarismo.
O sociólogo Karl Mannheim, um pensador representativo de sua época, escreveu em 1950, no livro ''Liberdade, Poder e Planejamento Democrático'':
''Não devemos restringir o nosso conceito de poder ao poder político. Trataremos do poder econômico e administrativo, assim como do poder de persuasão que se manifesta através da religião, da educação e dos meios de comunicação de massa, tais como a imprensa, o cinema e a radiodifusão''.
Mannheim dizia temer menos os governos, que podemos controlar e substituir, e muito mais os poderes privados que exercem sua influência no ''interior'' das sociedades modernas.
Não é preciso ter lido Michel Foucault para suspeitar de truculências que não dizem o seu nome, mas são impiedosamente exercidas nas ''malhas do poder'', tecidas em silêncio no interior das sociedades.
O leitor atilado há de julgar se a liberdade de opinião e de informação vem se ampliando e favorecendo o esclarecimento dos cidadãos ou se transformando em seu contrário, num exercício do poder que viola os direitos reconhecidos como essenciais no relatório da Comissão sobre a Liberdade de Imprensa.
O filósofo Paulo Virilio chegou a uma conclusão drástica: a mídia contemporânea é o único poder que tem a prerrogativa de editar suas próprias leis, ao mesmo tempo em que sustenta a pretensão de não se submeter a nenhuma outra.
A justificativa para tal procedimento trafega entre o cinismo e a treva: uma vez afetada a liberdade de imprensa, todas as liberdades estarão em perigo.
Cinismo, diz ele, porque esta reivindicação agressiva trata de negar o óbvio: os meios de divulgação e de formação de opinião vêm se concentrando, de forma brutal, no mundo inteiro, nas mãos de grandes empresas.
A alegada superioridade da liberdade de opinião e de informação sobre os demais direitos individuais e coletivos vem freqüentemente acompanhada da ''metáfora do espelho''.
Ela afirma que a informação apenas ''reflete'' a realidade. A mídia é o espelho da sociedade. O argumento é simplório e seria destruído em segundos por um estudante medíocre de filosofia.
Mas, a despeito de sua precariedade, em muitos círculos, nem sempre mal-informados, tal gororoba ideológica consegue colocar os meios de comunicação a salvo de qualquer crítica.
Afinal, não é razoável quebrar o espelho só porque ele reflete uma realidade desagradável.
A liberdade de opinião e de informação transformada em (quase) infalibilidade da mídia revela o suave endurecimento dos métodos de controle social e político nas sociedades contemporâneas.
Sociedades encantadas pela ''inversão'' de significados e pelo ilusionismo da liberdade de escolha do indivíduo-consumidor.
Mas não é sábio exagerar no pessimismo: nos próximos anos, a luta política é que vai decidir se as tecnologias de comunicação da terceira revolução industrial, a Internet e a convergência dos meios, vão nos conduzir ao totalitarismo consentido, à moda de George Orwell, ou ao aperfeiçoamento democrático da ágora informatizada capaz de corrigir as distorções dos poderes que se escondem sob as máscaras da liberdade.
Luiz Gonzaga de Mello Belluzzo foi secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda e é professor titular do Instituto de Economia da Unicamp
Fonte: Jornal Valor Econômico