Política dos EUA, a ditadura do centro

Devido ao seu sistema, a política parlamentar dos EUA, por definição, ou se mantém onde está ou pende para a direita. As viradas à esquerda, quando ocorreram, ocorreram fora da política parlamentar, guiadas por grandes movimentos de opinião pública. Com e

Você leva vantagem: se viu a TV, conhece, creio, os resultados das eleições americanas. Eu, ao contrário, escrevo no escuro, antes do fechamento das urnas, sem nada saber e com as pesquisas, depois de meses de ascenção democrata e perdas de Bush, nos últimos dias inverteram a tendência, dando aos republicanos alguma esperança de não serem derrotados.



O que mudou o caudal das pesquisas? Nada que diga respeito à vida dos americanos e ao modo como são governados, mas a espetacular condenação à morte, na forca, de Saddam Hussein.



Não há motivos para alegria caso de fato a bandeira agitada com senso de oportunidade, por aquela que Silvio Berlusconi — uma vez na vida com razão — definia como a justiça da relojoaria,  de fato provocar uma recuperação dos republicanos. Não tanto pelo resultado concreto das eleições, mas principalmente pela cena arcaica que foi evocada, semelhantes às vistas em tantos filmes de poucos anos atrás, do linchamento, da degola do negro, do bandido, que move a opinião pública, as emoções coletivas, e produz consenso para o poder, o prefeito, o xerife.



Sistema político conservador



Se ocorreu o contrário, e os democratas reconquistaram depois de muitos anos a maioria na Câmara dos Representantes, ou até do Senado (onde é mais difícil isso ocorrer devido ao complicadíssimo sistema eleitoral americano), então podemos começar a raciocinar sobre o pós-Bush. E devemos fazê-lo com algum alívio mas com muita preocupação.



Preocupação de que as coisas não mudem muito, e os dois partidos em luta se engessem num compasso de espera dominada pelo medo de cometer erros.
Por que? Pela simples razão de que o sistema político-parlamentar americano (no qual muito se inspiram, aqui na Itália, os reformadores que desejariam construir o bipartidarismo, o Partido Democrático, etc.) é um sistema que torna quase impossível alguma virada à esquerda e que tem no centrismo e no conservadorismo a sua estrutura fundamenta, o seu DNA.



A política parlamentar dos EUA, por definição (e por experiência) ou se mantém onde está ou pende para a direita. As viradas à esquerda, quando se produziram, ocorreram fora da política parlamentar, guiadas por grandes movimentos de opinião pública, e trespassaram os partidos.



O que mostra a experiência



Recordemos como aconteceram as coisas nas eleições de mid-term (as mais importantes, que renovam o Congresso no meio do mandato presidencial). E depois raciocinemos sobre as reviravoltas à esquerda da sociedade americana no pós-guerra.
As eleições de mid-term que tiveram certo relevo foram as de 1974, 1986, 1994 e 1998.



Premissa: as eleições de mid-term, que ocorrem dois anos após as presidenciais, renovam toda a Câmara de Representantes e um terço do Senado (os dois terços restantes permanecem em seus postos, suas cadeiras serão votadas nas duas rodadas eleitorais seguintes: é por este motivo que fica difícil mudar a maioria no Senado com uma única eleição de mid-term).



74 e o fugaz governo Carter



Em 1974 as eleições aconteceram apenas três meses depois do mais rumoroso fiasco da história: o encaminhamento do impeachment e a seguir a renúncia do presidente Nixon (substituido por seu vice, Gerald Ford). Para os republicanos foi um baque, e do baque nasceram as condições para o sucesso eleitoral dos democratas, que em 1796 levaram à presidência Jimmy Carter.



Ótima pessoa, Carter, não se discute, mas hoje ninguém recorda quase nada da sua gestão de apenas quatro anos — concluídos com o imbroglio dos reféns americanos no Irã e o fiasco da blitz para libertá-los. Foi um governo de água no vidro, que serviu de prenúncio à chegada de Ronald Reagan, isto é, à volta fortíssima do liberalismo, em todo o mundo, com o fim da grande desestabilização progressista dos anos 70.
As eleições de mid-term de 86 foram um passo em falso para Reagan mas de forma alguma ofuscaram sua imagem de vencedor nem o levaram a mudar de política.



94 frustra as reformas de Clinton



As eleições de mid-term de 94, em contraste, foram importantíssimas e, elas sim, assinalaram uma virada. O que ocorreu? Que o jovem ex-governador do Arkansas Bill Clinton, 46 anos, fora eleito presidente dois anos antes, após duas décadas republicanas interrompidas apenas pelo fugaz Carter. E preparara um programa reformador. Pretendia grandes mudanças, seja de estrutura social, seja de costumes. No plano dos costumes desafiara os conformistas ao dar plenos direitos aos gays no exército. E sobretudo desafiara os conformistas e o lobby das armas, propondo-se a vedar a venda a varejo de pistolas e fuzis, na contramão de uma das mais arraigadas (e incompreensíveis) paixões americanas, pela defesa pessoal armada. No plano social, propusera uma ampliação do Wellfare State e a introdução de uma reforma da saúde que teria introduzido a saúde pública como um direito de todos, em um sistema totalmente privado e baseado na concorrência. Seria uma transformação de princípios: não mais “assistência”, vinda de cima, mas direitos reconhecidos em um patamar mínimo de igualdade — e sobretudo uma mudança radical no plano dos interesses (com o desmantelamento da fortaleza econômica da saúde privada e das gigantescas especulações das empresas da previdência).



Clinton se chocou com um formidável lobby de corporações, que sustentaram a campanha eleitoral de seu adversário, o emergente Newt Gingrich, que aderiu ao Partido republicano sustentando posições ultraliberais (dizia que Reagan tinha sido um moderado). Eleito, perdeu clamorosamente as eleilões de mid-term; Gingrich clamorosamente venceu-as. A conseqüência foi o abandono de todas as reformas e um redimensionamento do Wellfare Stat: redução dos impostos, da assistência social, dos salários-desemprego, e assim por diante. Uma formidável virada moderada que frustrou no nascedouro o sonho clintoniano e influenciou profundamente, nos anos seguintes, as experiências européias de centro-esquerda (Romano Prodi na Itália, Michel Jospin na França, Gerhard Schroeder na Alemanha, Tony Blair na Grã-Bretanha).



O voto distrital é centrista



Por que o sistema parlamentar americano impede as viradas à esquerda? Porque o voto distrital pende para o centro. O sistema de vetos e balança de poderes leva a um bipartidarismo que com muita freqüência se torna monopartidarismo (política fiscal, guerra, Patriot Act, etcetera).



E o monopartidarismo só se realiza com o deslocamento do Partido Democrata para o centro e para a direita, jamais com o movimento inverso. Sim, pois — os fatos o demonstram — o Partido Democrata amiúde ganha votos ao centro, porém jamais o Partido Republicano os conquista à esquerda.



De onde vieram as mudanças



A verdade é que as únicas grandes transformações de esquerda nos EUA ocorreram sob o influxo dos movimentos, fora da lógica dos partidos e do bipartidarismo: o movimento negro, o dos direitos civis em 68, o movimento contra a guerra.



É nessas ocasiões que a sociedade americana se desloca, os negros obtêm grandes conquistas, o Estado social avança. E isto sob a guia de dois dos presidentes mais opacos da história recente, Lyndon Johnson, democrata e “carniceiro do Vietnã” e Richard Nixon, o republicano dos complôs e das trapaças.



* Intertítulos do Vermelho