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Como os comunistas reagiram à Chacina da Lapa

Por André Cintra

João Amazonas passou dias sem comer. Reação mais ou menos semelhante tiveram Renato Rabelo e Dyneas Aguiar. Os três estavam em Pequim, representando o PCdoB numa reunião do Partido Comunista Chinês. Não tinham informações precisas sobre a Chacina da Lapa, mas já sabiam que o Exército brasileiro havia assassinado Ângelo Arroyo, Pedro Pomar e João Batista Drummond.

O massacre ocorreu de 15 para 16 de dezembro de 1976, após uma reunião do Comitê Central do PCdoB, na Rua Pio XI, 767. Drummond foi seguido e preso minutos depois de deixar o encontro. Nas dependências do DOI-Codi, sofreu uma série de torturas. Acabou morto ainda na noite do dia 15. Horas depois, na manhã do dia 16, os agentes da repressão assassinaram Arroyo e Pomar na própria casa da Pio XI. Os dois estavam desarmados.

 Como foi que militantes e dirigentes reagiram ao saber da Chacina da Lapa, que no sábado (16/12) completou 30 anos? Quais foram suas primeiras reações? Que pensamentos, temores e emoções lhe ocorreram no calor da hora? A convite do Vermelho, cinco comunistas voltaram a memória para a época do massacre. Entre eles, os ex-deputados federais Haroldo Lima e Aldo Arantes, presentes à reunião que antecedeu à chacina. Confira os depoimentos.

Dyneas Aguiar, vice-prefeito de Campos do Jordão (SP)

Estávamos lá na China e recebemos uma chamada para ir à sala da casa onde estávamos hospedados. Veio um dirigente do Comitê Central do Partido Comunista chinês e disse que tinha uma notícia muito grave para nos transmitir. Eles tinham recebido da agência Xinhua a informação de que o Exército havia atacado o partido.

 A informação inicial era de que havia muito mais presos e assassinatos. Eles não tinham tudo – só uma informação da agência mesmo. É lógico que todos nós ficamos estupefatos e chocados. Até porque a notícia (a versão do Exército) não batia com o que era a estrutura do nosso partido, as formas de reuniões, tudo isso.

 Para ter mais informações, o Renato e o Amazonas ficaram lá em Pequim, e eu voltei. Fui para a Albânia e, de lá, à França, para saber e ter melhores informações. Me encontrei com o (Diógenes) Arruda e, a partir daí, tentamos ver como a gente elucidava esse problema e como poderia vir para cá. O partido já havia sido golpeado muitas vezes, mas o temor…

 A gente, na China, não entendia a reunião pelo volume que eles transmitiam. Depois, não conhecíamos o local. O Amazonas tinha a noção do quê que era. Foi um duro golpe, e ficou logo a primeira dúvida: como isso aconteceu? Por que aconteceu? Nós só fomos esclarecer depois de um certo tempo, quando a gente conseguiu retomar o contato com o partido.

  

Edíria Carneiro, artista plástica, viúva de João Amazonas

 Acho que fiquei sabendo da chacina pelos jornais – não me lembro bem. Na hora, fiquei muito, muito triste. Eu sabia que o João tinha viajado e estava na China. Mas eu era muito amiga do Pomar e, na casa (da Lapa), eu sabia que tinha a Elza (Monnerat), que era minha amiga de muitos anos. Tinha a Maria Trindade, que também era uma pessoa que eu conhecia desde o Rio Grande e de quem eu gostava muito. Para mim, foi um choque. Uma sensação terrível.

  

Haroldo Lima, ex-deputado federal (PCdoB-BA)

 Soube por etapas da chacina. Primeiramente, tomei conhecimento de que eu havia sido preso. Achava que foi uma prisão relacionada com minha pessoa, comigo – descobriram onde eu estava e me prenderam. Depois vi que não só eu, mas havia outros – uns três. Descobri que o núcleo da direção é que foi preso na Lapa.

 Eu tinha uma dimensão do significado brutal do golpe desferido sobre nós. E eu, inequivocamente, estava atônito, na defensiva, esmagado por aquelas notícias tão nefastas que acabara de receber. Eis que, nesse exato instante, o comandante-geral da minha tortura – que dizia se chamar doutor Marcos – falou: "Haroldo, isso significa que o seu partido acabou".

Nessa hora, meu processo de defensiva se voltou todo. Eu levantei a voz, alto e bom som, e disse: "O sr. está enganado! O sr. não sabe que partido é este. Acabou é a ditadura, que está para acabar. Nós é que vamos para frente". E fiz um discurso prolongado. Eles escutaram atentamente o que eu falava embaixo do capuz. Mas fiz uma defesa do partido – uma defesa do Brasil, dos brasileiros, da luta.

Fiz uma denúncia séria dos massacres que eles fizeram. Disse para eles: "Vocês acabaram com aquelas duas pessoas. Estão dizendo aí – está lá no jornal – que teve tiroteio. Tiroteio nenhum! Não tinha nenhuma arma naquela casa. Eu que sei disso, porque eu freqüentava lá. Se não tinha arma, como é que houve tiroteio? Vocês estão mentindo. São mentirosos. Assassinaram!".

Depois que terminou isso, para completar a história, eu tinha perdido sangue e estava mais ou menos há umas 24 horas sem comer, porque não me deram comida. E com aquela emoção, e falando tanto, e tão exaltado, eu desmaiei. Eu sabia que, a partir daquele momento, ia começar o processo de tortura. Eu desmaiei e, logo em seguida, me recuperei. E eles já me levaram. O doutor Marcos ainda disse: "É, você decorou bem a lição."

 

Aldo Arantes, ex-deputado federal (PCdoB-GO)

No primeiro momento, eu não tinha uma idéia exata do que ocorreu. Até que fui preso e comecei a ser torturado. Os torturadores me disseram que, se fosse um ano antes, eu ia ser assassinado ali, naquela hora. Deu para perceber a gravidade da situação.

Comecei a tomar consciência da amplitude do acontecimento no avião, onde vi que outros companheiros tinham sido presos. Só mais tarde, quando houve essa liberação e eu conversei com meus advogados, foi que tomei consciência exata da dimensão do problema. Só aí descobri quem havia morrido, quem havia sido preso. Lá no Rio, a repressão mostrou o jornal para o Haroldo, mas para mim não mostrou.

Foi um impacto muito forte. Eu já sabia que aquilo representava uma perda muito séria para o partido. De qualquer maneira, havia a convicção de que, apesar daquilo, alguns dirigentes do partido não haviam caído, inclusive o João Amazonas. E havia a convicção de que a luta ia continuar.

 

Renato Rabelo, presidente do PCdoB

Claro que, como nós estávamos longe, não esperávamos por aquilo. A primeira coisa que vem na cabeça da gente é o seguinte: nós lá fora, sem poder voltar, e o partido atingido na cabeça. É um drama.

Ficamos uns dois, três dias ainda na China, transtornados, transtornados. Não comíamos, tamanho o impacto. O Amazonas praticamente deixou de comer. Ficou muito transtornado, porque ele dominava tudo isso, confirmou que o aparelho era esse, etc.

Tudo era muito duvidoso. Eu não sabia, àquela altura, o que estava minado. Pelos princípios do trabalho conspirativo, você não pode voltar e procurar mais ninguém, até as coisas se esclarecerem. Foi um trabalho muito penoso, difícil.

A gente constituiu um núcleo dirigente lá fora. O Arruda e o Amazonas – que eram as pessoas mais experientes – jogaram um grande papel. E começamos a fazer esse trabalho. Eu me desloquei para a Argentina, porque era mais próximo. Fiquei um tempo enorme na Argentina, sob ditadura também – mas lá não eu era conhecido. Fui ao Uruguai sob regime também totalitário.

Foi esse trabalho difícil o que procuramos fazer. O que passou pela cabeça foi isso: o destino do partido estava em jogo. Essa era a grande questão para nós. É sempre essa luta permanente e histórica do partido pela sobrevivência. Hoje a gente continua a mesma luta – a luta de sobrevivência dos comunistas, da existência do partido.