“Um dia glorioso”: Ronald Freitas analisa o fim da cláusula

Leia o artigo de Ronald Freitas, dirigente do PCdoB, sobre o fim da cláusula de barreira. Ao analisar a derrota dessa medida no STF, o autor diz que o “julgamento foi mais um tijolo colocado no já secular processo de construção da nação brasileira. Um tij

Um dia glorioso


 


Por Ronald Freitas


 


Brasília, 7 de dezembro de 2006, plenário do Supremo Tribunal Federal (STF), 13h30. Uma delegação de dirigentes e parlamentares do PCdoB chegava àquele ambiente solene. A tradicional casa de Rui Barbosa, instalada em moderno espaço, criado por Niemeyer.


 


Fomos  ali assistir ao julgamento de uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADin) em que o PCdoB juntamente com outros Partidos minoritários no Congresso Nacional, haviam impetrado no já distante ano de 1995, contra a lei  9096/95, vulgarmente conhecida como 'a lei da cláusula de barreira'.


 


A sessão começaria às 14h, naquele momento o ambiente era preparado para os trabalhos. Funcionários experientes e vestidos a caráter, se movimentavam em uma intensa atividade. Carrinhos, semelhantes aos de supermercados, eram utilizados para colocar volumosas pastas contendo processos e livros, muitos livros, todos de direito ou temas correlatos. Além de serem instalados diante do lugar de cada um dos Ministros, um 'lap-top', detalhe de modernidade a se harmonizar com a arrojada arquitetura do ambiente.


 


Aos poucos o auditório ia se enchendo, chegavam políticos de vários Partidos, mas com destaque os dirigentes do PCdoB, PV, PRB, P-Sol, diretamente interessados no julgamento e PSB e PDT, solidários com a causa. Também acorreram ao plenário, advogados e  a imprensa, muita gente imprensa.


 


Às 14h e 20m soa uma campainha, o meirinho avisa a chegada dos ministros e todos os presentes se levantam. Adentram à sala, em fila indiana, os ministros que compõem a corte, tendo à frente a ministra Presidente, Ellen Gracie Northfleet. O momento é solene. Todos os magistrados envergam suas túnicas pretas. Tradição que se prolata no tempo, e não deixa de evidenciar resquícios do medievo. Os trabalhos são abertos, e a Ministra Ellen, coloca em pauta o julgamento  da ADIN, e passa a palavra ao relator da matéria; ministro Marco Aurélio de Mello.


 


Qual a causa desse público de políticos, de dirigentes partidários, estarem naquela tarde no Plenário do Supremo Tribunal Federal, para assistir o julgamento daquela ADin? Que matéria tão relevante, fazia convergir para aquele templo do Direito do Estado Capitalista Brasileiro partidos como o Comunista do Brasil (PCdoB), o do Socialismo e Liberdade (P-Sol) e o Republicano (PRB)?


 


O motivo era mais que relevante, ali seriam julgados os dispositivos de uma lei de 1995, que passava a vigorar plenamente a partir de 2007 e que se entrasse em vigor, cometeria um golpe contra a liberdade e vida democrática em nosso país. Pois a sua vigência afetaria de forma profunda a legalidade constitucional do Estado, e permitiria a imposição, pelos partidos conservadores e mesmo por alguns de extração progressista e popular, de uma ditadura da maioria.


 


A referida Lei 9096/96, surgiu como sendo o instrumento que os legisladores brasileiros produziram em cumprimento ao dispositivo constitucional de que os partidos políticos teriam funcionamento parlamentar de acordo com a lei. ( art.17, inciso IV da Constituição Federal/1988).


 


O resultado desse labor legislativo foi um desastre. Materializou-se nos dispositivos dos artigos 12 e 13, parágrafos e incisos da Lei dos Partidos Políticos(lei 9096/95), que por meio dos dispositivos citados, criou a reacionária 'cláusula de barreira', que estipulava: O Partido Político que nas eleições para a Câmara Federal, não alcance 5% dos votos válidos em todo o território nacional, e 2% em nove Estados,  não terá direito a funcionamento parlamentar, e terá uma participação irrisória nos recursos do fundo  partidário e no acesso aos horários gratuitos  de radio e TV.


 


Não ter funcionamento parlamentar foi considerado não ter direito a participar das comissões temáticas da  Câmara, não ter Líder de bancada e os instrumentos de trabalho daí decorrentes etc.


 


Acesso irrisório ao fundo partidário e a TV e radio gratuitos, significa que o fundo partidário seria dividido da seguinte maneira; 1% para todos os Partidos com registro no Tribunal Superior Eleitoral, e os 99% 'restantes', para os Partidos que cumpriram a 'cláusula de barreira'. E que o tempo gratuito de radio e TV, o 'Direito de Antena', seria 80, minutos anuais, 40 por semestre, para os Partidos que ultrapassassem a 'cláusula' e de 4 (quatro) minutos anuais, dois por semestre, pra os que não tivessem conseguido.


 


Orientados por opiniões, conceitos e posições políticas reacionárias e buscando criar uma realidade política no país que limitasse a disputa do poder político a poucos Partidos, esses legisladores, produziram então uma Lei que afrontava o espírito e a letra de nossa Constituição naquilo que são os seus fundamentos maiores.


 



-A garantia de igualdade, sem distinções, de  todos os cidadãos perante a lei, garantidos pelo art.5º/CF.


 


-A existência de pluralismo político, um “Dos Princípios Fundamentais”da República,  consignado no Art.1º inciso V, do Título I, da Constituição;


 


– Discriminaram entes indiscrimináveis, ao diferenciarem os papeis de Deputados, legitimamente eleitos, de acordo com o desempenho do  Partido nas eleições. Atitude vedada pelo Art.3º, inciso IV que define como um dos  'Objetivos Fundamentais da República', a promoção do 'bem estar de todos', e proíbe  qualquer forma de discriminação, na busca de atingi-lo;


 


– Interfere na competência dos poderes da república, ao estabelecer por meio de lei ordinária, que é promulgada pelo executivo, mecanismos de 'funcionamento parlamentar', matéria de competência exclusiva das casas legislativas. Ferindo a regra fundamental da separação dos poderes, definida pelo Art.2º da Constituição.


 


Além do que, os legisladores ao impor uma distribuição exageradamente desigual dos recursos do fundo partidário e do tempo de radio e TV,  cometeram um forte atentado ao princípio da igualdade de chances entre os Partidos. Pois se as regras, que foram estabelecidas pela lei entrassem plenamente em vigor, os Partidos atingidos, não gozariam de condições mínimas para divulgarem seus programas para a sociedade. Retirando na prática qualquer possibilidade de um partido que não cumpriu as exigências da lei de competir e crescer.


 


O relator da matéria expôs os fatos em julgamento, o posicionamento da Advocacia da União, o posicionamento do Supremo, frente a um pedido de 'Decisão Liminar', ajuizada ainda no ano de 1995, e que foi negado, e a palavra foi cedida aos advogados dos Partidos impetrantes e solidários. Dr. Paulo Machado Guimarães, advogado do PCdoB e Dr. Luis Antonio pelo PSB.


 


Fizeram brilhantes defesas, desenvolveram os argumentos que foram apresentados em memorial à corte e pediram a declaração de inconstitucionalidade da lei em exame.


 


O relator voltou a falar e proclamou o seu voto. Foi o momento alto daquele dia. Baseando-se em uma análise dos fatos de acordo com os elementos apresentados. Confrontando os dispositivos da lei 9096/95 com os princípios e normas existentes na constituição de 1988. Referindo-se ao contexto político-histórico em que a 'ação' se desenvolvia. Referenciando-se no direito comparado, e na existência de leis equivalentes em outros países. Fundamentou e pronunciou o seu voto. A lei 9096/95, nos artigos 12 e 13, parágrafos e incisos é inconstitucional.


 


Inconstitucional porque desrespeita o princípio de que todos são iguais perante a lei e a lei determinava condições de atuação parlamentar diferentes, para deputados que foram eleitos debaixo das mesmas regras legais.


 


Inconstitucional, na medida em que criava mecanismo para o exercício das funções parlamentares pela minoria, que as asfixiava e impedia que as mesmas pudessem vir a crescer. Estabelecendo uma verdadeira ditadura da(s) maioria(s).


 


Inconstitucional, pois ao estabelecer regras exageradamente assimétricas para a vida dos partidos políticos, desrespeita as regras da convivência democráticas, elemento constitutivo basilar de nosso Estado Democrático de Direito.  


 


Os demais ministros votaram com o relator. E demonstrando elevada compreensão do assunto submetido  a sua decisão, prolatou votos densos de conteúdo, fundamentados na melhor doutrina do direito e concluíram pela inconstitucionalidade da matéria apreciada. Assim, defenderam a liberdade de pensamento, organização e ação partidárias, para todos aqueles partidos que de acordo com as regras vigentes, atuam no país, e condenaram os ímpetos hegemonistas e exclusivistas de outros que conjunturalmente são majoritários.


 


Esses acontecimentos são prenhes de ensinamentos para todos nós, mormente para os comunistas. Durante os trabalhos do Tribunal, evocaram lembranças de outros momentos e de outros tribunais e julgamentos. Como a história evolui por caminhos tortuosos e muitas vezes imprevisíveis.


 


Com o fim da  II Guerra Mundial, terminou a ditadura do Estado Novo e o país viveu um período de relativa liberdade. No início, essa liberdade era significativa e os comunistas despontaram como uma força política ativa e expressiva no país. Nas eleições de 1946, elegeu 14 Deputados Federais e um senador, Luiz Carlos Prestes. Tendo essa bancada contribuído de forma destacada na elaboração da Constituição Federal de 1946.


 


Mas o exercício cotidiano da democracia, ampliava cada vez mais os espaços para os setores populares, progressistas e democráticos lutarem por suas reivindicações e propostas. O Partido Comunista do Brasil era o porta-voz parlamentar desses setores, era o difusor e organizador dessas demandas. Os ventos democráticos que sopravam no pós-guerra, despertavam esperanças de que a construção de um mundo mais fraterno, justo e pacífico estava emergindo da derrota da barbárie nazi-fascista.


 


Mas eclode a guerra fria. O mundo se divide em blocos, as elites brasileiras viram no novo cenário que se ia delineando uma oportunidade de manter seus privilégios. E para levarem à frente seus designos, engendraram uma provocação contra os comunistas e cassaram os direitos políticos do Partido Comunista e o mandato de seus deputados, todos legal e legitimamente eleitos. E pasmem, para que essa decisão fosse tomada, demitiram Ministros do Tribunal competente e nomearam outros, para dessa forma garantirem uma maioria que cumprisse suas decisões.


 


Passaram-se alguns anos e adveio uma nova ditadura, a dos militares, e com eles os tribunais de exceção, que 'julgavam' os combatentes da liberdade e da democracia, que se opunham ao 'dictat' dos militares. Tempos de chumbo, a turvar o horizonte das lutas libertárias de nosso povo.  


 


Hoje, com o avanço da democracia, com a evolução da sociedade, os comunistas são novamente parte ativa da nossa cena política, estão nos movimentos sociais, nos parlamentos, na administração pública, e um dos seus mais importantes quadros é o Presidente da Câmara dos Deputados  e em função disso assumiu por poucas horas a Presidência da República.    


 


Nesse cenário objetivamente agudiza-se a luta de classes, a luta política. E os comunistas são chamados a enfrentar novos desafios em decorrência do papel que  jogam. Foi nessas condições que enfrentamos a luta contra a 'cláusula de barreira'. E em certo sentido, quase 60 anos depois, a Justiça fez justiça. O Supremo Tribunal Federal, com base nos valores civilizatórios da liberdade, da igualdade, do direito das minorias, do respeito a Constituição e aos poderes constituídos, sustou o golpe, que as sempre reacionárias, elites brasileiras, pretendiam perpretar contra a nação e o povo. Decretou a inconstitucionalidade dessa aberração jurídico-política, a legalização entre nós da malfadada 'cláusula de barreira', presente na lei 9096/95.


 


Esse julgamento foi mais um tijolo colocado no já secular processo de construção da nação brasileira. Um tijolo de qualidade excepcional, pois ele traz a marca do estabelecimento dos fundamentos de uma nação e de um povo livre. É o tijolo da defesa da liberdade, da defesa da luta de idéias e de disputa legitima do poder, contra o arbítrio, contra o hegemonismo autoritário, de construção de um Brasil socialmente justo.