Lafer, o sem-sapatos, entra de sola no bate-boca da diplomacia

Mais um diplomata intervém sem muita diplomacia na polêmica atiçada pelo ex-embaixador do Brasil nos Estados Unidos Roberto Abdenur, em entrevista à revista Veja. Agora é Celso Lafer, que foi ministro de Relações Exteriores de Fernando Henrique Cardoso e

“Partilho inteiramente de suas impressões”, disse Lafer nesta terça-feira (6), sobre as declarações de Abdenur à edição da Veja que está nas bancas. Tal como o ex-embaixador nos EUA, que vem de se aposentar, o ex-ministro começou por explorar uma minúcia insignificante, mas que parece ter causado irritações no Itamaraty: a indicação de livros a serem lidos. Para Lafer, coisas assim “são simplesmente vexatórias. O que Abdenur quer ressaltar é uma certa lavagem cerebral. Uma coisa muito ruim, que resulta numa diplomacia de qualidade discutível”, agregou.



Ataque a Chávez: não podia faltar



“Hoje há uma politização da carreira (no Itamaraty), que obedece a critérios de entusiasmo e adesão ao governo”, disparou ainda o ex-ministro. E atacou também a posição unânime do Mercosul ao aceitar a adesão da Venezuela — terceira maior economia sul-americana, depois do Brasil e da Argentina.



“O (presidente Hugo) Chávez, com as suas posições, construiu os Estados Unidos como um inimigo. E ele orienta por aí a sua política externa, inclusive com alianças estranhas, como a que fez com o Irã. O Brasil, ao defender a incorporação da Venezuela ao Mercosul, coloca a identidade do bloco à prova. Para Chávez, o que interessa é conflito, justamente o que não é interessante para o Brasil”, disse Lafer, omitindo o reconhecimento por Washington do fugaz governo golpista de 11 de abril de 2002, que prendeu Chávez numa ilha, fechou o Parlamento e suspendeu a Constituição, antes de ser derrubado por uma rebelião do povo pobre.



O episódio dos sapatos tirados



O ex-chanceler tem como passagem mais marcante de sua carreira o incidente ocorrido em 31 de janeiro de 2002. quando, intimado pela polícia do Aeroporto Internacional de Washington em plena histeria antiterrorista pós 11 de Setembro, retirou seus sapatos e deixou-se revistar, sem fazer respeitar o cargo de chefe da diplomacia brasileira. A seguir, em Nova York, voltou a aceitar a humilhação.



Em 2003, ao empossar o novo chanceler, Celso Amorim, Lula mencionou o episódio, ao dizer que a diplomacia brasileira “não é a que tira os sapatos”. Lafer revidou escrevendo que, “se o governo Lula transpuser para a política externa sua visão à sindicalista de operário versus patrão, há risco de complicar a vida”. Desde então é um cáustico adversário da política externa independente do Brasil.



Abdenur e Veja, ontem e hoje



Já Abdenur tem outra trajetória, que pode ser avaliada inclusive pelas páginas da Veja. Quando ele estava para assumir a embaixada em Washington, a revista agraciou-o com o seguinte parágrafo, no artigo A turnê de Lula pelas ditaduras (Veja 17/12/2003):




“O grupo se define como defensor da PEI – política externa independente. Independente, é claro, dos Estados Unidos – mesmo que, no intervalo, se possam perfeitamente fazer declarações deslumbradas em benefício de ditadores como Kadafi e o sírio Bashar Assad. O último do grupo a ascender na carreira foi o embaixador Roberto Abdenur, escalado para assumir o posto de embaixador do Brasil em Washington no ano que vem. Amigo do chanceler Amorim, Abdenur, além da barba, tem outras afinidades com o chefe. No governo de Itamar Franco (1992-1994), Roberto Abdenur foi secretário-geral de Celso Amorim, que ocupou o posto de chanceler. Quando dava as cartas na política externa no período militar, esse grupo tentou aproximar o Brasil da África e aderiu ao bloco dos países 'não-alinhados', cuja ação era sempre muito alinhada quando se tratava de condenar os Estados Unidos e fazer vista grossa aos desmandos da extinta União Soviética.”



Em algum momento de sua estadia em Washington, Abdenur perdeu, não a barba, mas a amizade por Celso Amorim, da qual trata agora no passado (“Fomos grandes amigos”). Em troca, ganhou a simpatia da Veja, que esta semana abriu-lhe as páginas amarelas para falar mal da diplomacia brasileira, da “dimensão exagerada dada à cooperação entre os países menos desenvolvidos”, das relações com a Índia e principalmente a China, de Hugo Chávez, que para ele “está acabando com a democracia na Venezuela”.



A reação de Celso Amorim



Celso Amorim, lamentou nesta segunda-feira as críticas do ex-amigo na Veja. “Um embaixador com um posto como Washington e que tem dúvidas tão sérias sobre a política externa brasileira tem uma maneira muito clara de manifestar isso”, disse o chanceler, dando a entender que a postura eticamente correta de Abdenur teria sido entregar o cargo já que não concordava com a linha adotada. Ele deixou o cargo compulsoriamente, ao exceder o limite de dez anos para diplomatas servirem fora do país, e não por “um ranço” de “setores minoritários”, como insinua na entrevista.



“Lamento notar que o embaixador tenha escolhido o momento da sua remoção definitiva para fazer esses comentários”, disse o ministro. E agregou que as críticas feitas pelo embaixador são “oportunas para quem quer criticar a política externa brasileira”.



Não se pode agradar a todos…



É sabido que a política externa brasileira tem críticos, e biliosos. Basta lembrar o ex-governador Geraldo Alckmin no segundo turno da eleição presidencial de outubro passado. Mas possui também defensores. A começar pelo corpo diplomático brasileiro, que na sua grande maioria assistiu com alívio ao fim da “diplomacia que tira os sapatos”.



A política externa brasileira dos últimos anos pode ser avaliada por critérios mais objetivos que as injúrias de um Lafer ou a meia-volta-volver de Abdenur. Seus resultados podem ser medidos por exemplo pelo volume do comércio mundial e do superávit comercial do país. Ou pela quantidade e pelo teor das referências ao Brasil na imprensa estrangeira. Ou pelo protagonismo que adquiriu em articulações internacionais como o G20 e as negociações da Rodada de Doha. Ou ainda por pesquisas junto à opinião pública de diferentes países.



Todos esses referenciais indicam o seu êxito. O que só faz enfurecer seus oponentes de sempre, de Celso Lafer à Veja. Paciência. Não se consegue satisfazer a um só tempo aos adeptos e aos adversários da diplomacia que tira os sapatos.



Veja a íntegra da entrevista na Veja



A título de complemento, veja abaixo a íntegra da entrevista de Roberto Abdenur à Veja (7/2/2007), e tire suas próprias conclusões:




Veja – O senhor está se aposentando depois de 44 anos de trabalho no Itamaraty e parece muito incomodado com a situação da diplomacia brasileira.



Abdenur – Existe um elemento ideológico muito forte presente na política externa brasileira. A idéia do Sul–Sul como eixo preponderante revela um antiamericanismo atrasado. Isso tem se manifestado dentro do Itamaraty de diversas maneiras. Está havendo uma doutrinação. Diplomatas de categoria, não apenas jovens, são forçados a fazer certas leituras quando entram ou saem de Brasília. Livros que têm viés dessa postura ideológica. É uma coisa vexatória. O Itamaraty não é lugar para bedel.



Veja – De que outras maneiras a doutrinação ideológica se manifesta no Itamaraty?



Abdenur – Há um sentimento generalizado de que os diplomatas hoje são promovidos de acordo com sua afinidade política e ideológica, e não por competência. Eu vi funcionários de competência indiscutível ser passados para trás porque não são alinhados. Há intolerância à pluralidade de opinião. O Itamaraty sempre teve um prestígio singular na diplomacia internacional pela continuidade da política externa, pelo equilíbrio, pela excelência de seus quadros e pelo apartidarismo. O Itamaraty precisa resgatar o profissionalismo a salvo de posturas ideológicas, de atitudes intolerantes e de identificação partidária com a força política dominante no momento.



Veja – Essa situação que o senhor descreve já aconteceu antes?



Abdenur – Nunca, nem na ditadura militar. De 1964 até o início do governo Ernesto Geisel, na primeira década do regime militar, adotou-se uma política externa simplória, baseada na ideologia anticomunista. Isso foi imposto à força pelos militares. Mas nunca houve tentativa de convencer os diplomatas dessa ideologia. O rumo foi imposto e se exigia o seu cumprimento, mas não se cobrava dos profissionais nenhuma afinidade com a ideologia que definia aquele rumo. Do governo Geisel até o fim do governo FHC, a pressão ideológica desapareceu. Agora, infelizmente, as decisões são permeadas por elementos ideológicos.



Veja – A difusão dessa política externa ideologizada é responsabilidade do ministro Celso Amorim ou do secretário-geral Samuel Pinheiro Guimarães?



Abdenur – Samuel, Celso e eu fomos grandes amigos, e eu tenho recordações muito gratas do tempo em que fomos amigos.



Veja – O senhor disse que foi amigo de Celso Amorim e de Samuel Guimarães. Com o verbo no passado.



Abdenur – Fica no passado. Fomos grandes amigos.



Veja – O senhor ficou magoado com a maneira como saiu da embaixada de Washington?



Abdenur – Acho que já falei demais.



Veja – Substantivamente, houve pontos positivos na política externa brasileira no primeiro mandato do presidente Lula?



Abdenur – Sim, sem dúvida. O Brasil engatou uma parceria com Índia, Japão e Alemanha para obter uma cadeira definitiva no Conselho de Segurança da ONU. É luta válida, que vai trazer resultados. Acho muito bom o que o governo tem feito para abrir novas frentes de comércio com países árabes, com o Sudeste Asiático, com a Ásia Central, com a África. Acho muito positiva também a forma inovadora de trabalho com o Ibas (grupo que reúne Índia, Brasil e África do Sul). É a primeira vez que três países grandes, de três continentes diferentes, se unem para buscar iniciativas conjuntas. Acho que o Brasil tem conduzido com amplo equilíbrio e proficiência as negociações da Rodada de Doha. O Brasil é um jogador decisivo, tem uma atuação de liderança no G20 muito importante. Há ainda a questão do Haiti, onde lideramos pela primeira vez uma ação de países latino-americanos em favor da paz. Enfim, houve acertos…



Veja – E os erros substantivos?



Abdenur – A minha maior crítica à atuação do Itamaraty está na dimensão exagerada dada à cooperação entre os países menos desenvolvidos como eixo básico da nossa diplomacia. Com a queda do Muro de Berlim, desapareceu completamente o paralelo que dividia o mundo em Ocidente e Oriente. O meridiano Norte-Sul não desapareceu de todo, mas se desvaneceu. O diálogo Norte-Sul é uma realidade. A esta altura da vida, com o mundo em transformação vertiginosa, não vale mais valorizar tanto a dimensão Sul-Sul. Isso é um substrato ideológico vagamente anticapitalista, antiglobalização, antiamericano, totalmente superado. A nossa relação com a China e com a Índia também apresenta equívocos. É preciso ter parceria com os dois países, mas eles não podem ser considerados nossos aliados.



Veja – Há uma tendência no Itamaraty de priorizar as relações com os países da América do Sul em detrimento dos Estados Unidos?



Abdenur – Não é positivo superestimar o valor das afinidades ideológicas. Tem prosperado no Itamaraty uma idéia de que uma maior afinidade ideológica entre os governos da América do Sul tornaria nossa vida mais fácil. Estamos vendo que não. Apesar das afinidades que existem entre o Brasil e outros países da região, estamos enfrentando problemas para consolidar o Mercosul.



Veja – É crescente a influência de Hugo Chávez em países como Bolívia e Equador. Como o senhor avalia essa mudança de poder na América Latina?



Abdenur – Fui embaixador no Equador de 1985 a 1988 e, durante aqueles anos, a população mais pobre, de origem indígena, não tinha poder nem influência na vida política. A ascensão dessas camadas indígenas da população, como ocorre no Equador, na Bolívia e no Peru, é positiva. Mas há uma diferença básica entre Evo Morales e Hugo Chávez. O Morales vem de baixo, é um líder camponês que virou presidente da República. Mal comparando, uma trajetória semelhante à do presidente Lula. Já Chávez caiu de pára-quedas, tentou um golpe, depois chegou ao poder pela via democrática. Infelizmente, ele está acabando com a democracia na Venezuela.


Veja – O que o senhor acha da defesa feita pelo governo brasileiro a favor da entrada da Venezuela no Mercosul?



Abdenur – Foi um erro ter incorporado de chofre a Venezuela ao Mercosul. Devíamos ter privilegiado o aperfeiçoamento do Mercosul sobre a expansão a qualquer custo. Foi vexatório ver Chávez na última reunião dizendo que o Mercosul era um corpo que precisava ser enterrado. Chávez tem idéias sobre economia que não se coadunam com os pressupostos do Mercosul. Ele tem idéia de regresso ao escambo, de troca de mercadorias. Isso obviamente é um passo para trás. O Mercosul tem um compromisso democrático. Democracia, é bom lembrar, não é só realização de eleições. Acho que o Brasil tem a responsabilidade de soltar a voz para tornar menos cômoda a vida de governos autoritários e ditatoriais na região. Não se pode ignorar o que está acontecendo na Venezuela. O Brasil deve expressar claramente seu compromisso democrático amplo, profundo e irrestrito e denunciar situações como a que Chávez criou na Venezuela.



Veja – Como o senhor avalia a relação do Brasil com os Estados Unidos nos três anos em que serviu como embaixador em Washington?



Abdenur – Pode parecer paradoxal, mas a relação do Brasil com os Estados Unidos prosperou significativamente nos últimos anos. Graças a uma pessoa que manda muito no governo brasileiro, uma pessoa de extremo pragmatismo e lucidez, que é o presidente Lula. Ele não esconde seu desagrado com algumas coisas que o governo Bush tem feito, particularmente no Iraque. Mas Lula sabe que uma relação melhor com os Estados Unidos é de interesse do Brasil. Quando fui assumir a embaixada, ele me disse: “Roberto, quero deixar como legado para o futuro bases ainda mais sólidas e mais amplas na relação entre os dois países”. Como embaixador, tive algumas dificuldades, mas nada que fosse impeditivo.



Veja – O senhor não deixou o cargo de embaixador espontaneamente, correto?



Abdenur – Há no Brasil setores, embora minoritários, que têm aversão aos Estados Unidos, inclusive dentro do governo e do Itamaraty. Há esse ranço, mas isso não atrapalhou meu trabalho. A relação Brasil-Estados Unidos nunca esteve tão bem. Lula inclusive deve visitar o presidente Bush nos próximos meses.



Veja – Apesar dessa relação forte com os Estados Unidos, a Alca está em compasso de espera.



Abdenur – O Brasil está, na melhor das hipóteses, deixando de ganhar dinheiro. O mercado americano está se aproximando dos 2 trilhões de dólares. Seria vital para o Brasil ter vantagens preferenciais, de parceria, com os Estados Unidos. Não estou dizendo que deveríamos ter assinado a Alca de qualquer jeito, mas deveríamos ter seguido com a negociação. Os Estados Unidos têm assinado vários acordos de comércio bilaterais, e nós temos perdido competitividade no mercado americano. Nós estamos estacionados há dez anos em 1,4% do mercado americano. Há vinte anos, nossa participação era de 2,2%. Eu lamento que o único aspecto da relação Brasil-Estados Unidos em que não houve progresso tenha sido o comércio. Foram mínimos os recursos alocados para promoção comercial nos Estados Unidos pelo governo brasileiro.



Veja – Qual é a imagem do presidente Lula nos Estados Unidos? Ele ainda é um político respeitado ou sua imagem foi deteriorada pelos escândalos de corrupção?



Abdenur – É uma imagem positiva, os escândalos de corrupção não repercutiram muito por lá. Ele é o líder de uma democracia estável, um governante que tem uma biografia louvável. O governo Lula tem merecido respeito mundo afora por conciliar uma política econômica pragmática com políticas sociais efetivas e uma política externa séria. Isso começou com Fernando Henrique, mas o governo Lula avançou.



Veja – O senhor disse em um evento no ano passado em São Paulo que a China é nossa concorrente, não nossa parceira. O senhor mantém essa avaliação?



Abdenur – Fui nomeado embaixador na China no governo Sarney, trabalhei quatro anos e meio lá, tenho autoridade para falar desse país. Nós não podemos ter uma visão romântica daquela China do passado, pobre, atrasada, camponesa, isolada do mundo. A China deu um salto extraordinário e hoje é uma potência. Tem um comércio exterior de 1,8 trilhão de dólares, oito vezes o do Brasil. Nós temos de atualizar a visão da China e ver que, sem deixar de ser parceira valiosa, é cada vez mais nossa concorrente dentro do mercado brasileiro e no exterior. Isso não quer dizer que devamos construir uma muralha e nos fechar aos chineses. Pelo contrário. É preciso manter uma parceria estratégica com a China em novos termos e não ter ilusões. Quando criamos mitos e queremos dar a impressão de que a China é nossa aliada, que nós a lideramos, é uma bobagem. A China hoje busca o capitalismo, a globalização, o mercado.



Veja – O senhor acha que o Brasil errou ao reconhecer a China como economia de mercado?



Abdenur – Acho que foi precipitado. Embora o Estado chinês como produtor e empreendedor esteja diminuindo de tamanho, ele ainda interfere muitíssimo na economia, usa instrumentos arbitrários. Ao reconhecermos a economia de mercado, nós abrimos mão de usar mecanismos de defesa contra os produtos chineses. Isso tornou inevitável uma entrada cada vez maior de produtos chineses no Brasil. O prejuízo é inevitável.



Veja – A divulgação dessa posição do senhor sobre a China causou problemas dentro do Itamaraty?



Abdenur – Causou, sim.



Veja – É verdade que seu amigo antigo, o ministro Amorim, exigiu que o senhor se retratasse publicamente?



Abdenur – Não quero fulanizar essa discussão.