Wagner Gomes: Lula e o direito de greve

A decisão do governo Lula de propor a restrição ao direito de greve choca pela contradição que ela encerra. Sabe-se que a proposta saiu de um foco conservador, do qual o ministro do Planejamento, Paulo Bernardo, é atualmente um dos principais expoentes

É compreensível, do ponto de vista político, a defesa que Lula fez do ministro, mas o seu aval à restrição ao direito de greve é inaceitável. Principalmente porque, como ele mesmo diz, seu governo é em boa parte formado por ex-sindicalistas. A afirmação do presidente de que seu governo tem autoridade para estabelecer essa medida antidemocrática é ininteligível. Deveria ser o contrário: um governo chefiado por um ex-sindicalista deveria ter autoridade para coibir abusos como este proposto pelos interesses conservadores.


 


Lula há de se lembrar de sua defesa do direito de greve quando os empresários solicitaram aos dirigentes sindicais justificativas para a reivindicação de aumento salarial de 15% acima do índice oficial, em 1980. “A categoria entendeu que os 15% atendem aos seus desejos imediatos e nada mais. Não temos de dar explicações aos empresários. Se explicações resolvessem, não teríamos entrado em greve em 1978 e 1979”, disse o então presidente do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo e Diadema (SP).



Princípio constitucional



E mais: Lula atrapalha os trabalhadores ao dar guarida a esse tipo de proposta num momento em que os neoliberais investem com fúria contra a legislação sindical e trabalhista. Os sindicatos pelo país afora se defrontam com ações abusivas, que atentam contra o direito de organização dos trabalhadores com a falsa tese de reparação de danos causado à população por greves em serviços “essenciais”. Essas ações visam a punição dos sindicatos e nada tem a ver com os direitos do povo, como alegam certas autoridades dos ministérios públicos.



Mais do que isso: o direito de greve, convertido em princípio constitucional pelas grandes mobilizações populares que impuseram o fim da ditadura militar, foi aprovado em uma Assembléia Nacional Constituinte livremente eleita e soberana. Não cabe agora a restrição a esse princípio sagrado por meio de um golpe de mão — ainda mais por um governo com um escopo ideológico progressista.  O golpe é ainda mais inaceitável quando se analisa a trajetória política recente do país. Os trabalhadores reentraram em cena, após as brutais perseguições do regime militar, rompendo as barreiras legais à autêntica atividade sindical. Restringir o direito de greve, portanto, seria reduzir novamente uma grande parcela dos trabalhadores à condição de meros espectadores do processo político brasileiro.



Legislação obsoleta



Pode-se dizer que os conservadores do governo querem, com essa proposta, fechar os espaços por onde são lançados focos de luz sobre os males da atual política macroeconômica. Esses conservadores tentam cumprir um programa econômico assentado em premissas que podem ser definidas como selvagens. Ou seja: a superexploração repressiva da força de trabalho, fundada na concentração da propriedade e da renda e no controle político do país. Estamos, a rigor, diante de uma contradição típica da luta de classes, que extrapola os limites da questão econômica: como conciliar liberdades políticas, como o direito de greve, com este perverso modelo macroeconômico? Em tempos passados, essa contradição foi resolvida com leis ilegítimas e fascistas elaboradas nos gabinetes dos governos que assumiram o poder após o golpe militar de 1964.



Na batalha contra aquela ordem ditatorial, é oportuno lembrar o papel de Lula. Quando o ciclo de greves iniciado em 1978 se encerrou, em 1980, ele já era um dos principais responsáveis pela marcha para a derrocada da ditadura militar. Dali para a frente, o Brasil não seria mais o mesmo. O sindicalismo combativo havia ressurgido com força e desafiava a legislação obsoleta. Restringir o direito de greve, hoje, seria renegar todo esse passado. Seria renegar ainda todo o percurso de resistência ao projeto neoliberal, que durante a “era FHC” tentou reconstituir a ordem ditatorial do regime militar no que diz respeito ao tratamento dispensado aos movimentos populares.



Aglutinação de forças



Não há justificativa para este governo reascender a fogueira que em tempos passados mobilizou milhões de trabalhadores em defesa de seus direitos. Seria bom os patrocinadores dessa proposta serem alertadas sobre o potencial de conflitos que eles estão criando. Como diz o povo, em porteira que passa um boi passa uma boiada. O conhecido ideólogo das reformas sindical e trabalhista e consultor de entidades patronais, José Pastore, por exemplo, já disse que numa “moderna” forma de relações trabalhistas as negociações salariais não precisam necessariamente ser por meio dos sindicatos.   



A tese de que um caminho definido de desenvolvimento depende da aglutinação de forças interessadas em reascender as esperanças econômicas e sociais do povo é antiga. Os defensores dessa idéia sempre insistiram num amplo esforço para erradicar as bases históricas do autoritarismo e assim começar a moldar um projeto verdadeiramente nacional. O Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) tem como uma de suas deficiências o arrocho salarial determinado aos servidores. Mas para um projeto de desenvolvimento, os servidores públicos são essenciais. Por que, então, penalizar ainda mais essa categoria com a imposição de restrição ao direito de greve? 


 


* Wagner Gomes é vice-presidente da Central Única dos Trabalhadores (CUT)