Documentário revê e atualiza marco da luta armada no Brasil

Por André Cintra
Hércules 56 não estreou nos cinemas nacionais para formar um díptico com O que É isso, Companheiro?. Só o tema é comum: o seqüestro, em 1969, do embaixador americano no Brasil, Charles Burke Elbrick, e seus impacto

O seqüestro foi organizado por duas organizações revolucionárias – a Dissidência Guanabara (DI-GB, depois MR-8) e a Ação Libertadora Nacional (ALN). Trinta e sete anos depois, numa mesa cercada por câmeras e microfones, Da-Rin reuniu cinco remanescentes desse plano para rever, sem sentimentalidade, a ação. Não há dúvidas entre eles – e não haverá dúvidas nem para o espectador mais desligado da história do Brasil: foi uma das maiores façanhas da luta armada contra o regime militar (1964-1985).


 


Em 4 de setembro de 1969, os guerrilheiros encurralaram Elbrick e seus seguranças no Rio de Janeiro, capturando com certa facilidade o embaixador. Para soltá-lo, as organizações impuseram duas condições: a divulgação, em rede nacional, de um longo manifesto (clique aqui para lê-lo na íntegra) e a libertação de 15 presos políticos. A lista – abarcando militantes de diferentes organizações – trazia nomes como Flavio Tavares, José Dirceu, Maria Augusta Carneiro Ribeiro, Ricardo Zarattini e Vladimir Palmeira.


 


O regime atendeu às duas exigências. O manifesto foi transmitido em TV, rádio, jornais e revistas. Um avião da FAB, chamado Hércules 56, conduziu até o México os presos – todos com a cidadania brasileira já cassada. O embaixador foi liberado em 7 de setembro, e a maioria dos presos se exilou em Cuba.


 


Escolhas acertadas


 


Silvio Da-Rin buscou uma reconstituição ''crítica, e não nostálgica'', conforme disse na pré-estréia de Hércules 56 em São Paulo. ''Eu queria falar com todos os sobreviventes, senão não teria filme'', acrescentou o diretor, que colheu ótimos depoimentos de todos os presos políticos vivos – 11 ao todo -, além dos organizadores do seqüestro.


 


O entrevistado que mais se destaca – e que demonstra mais convicção e orgulho pela luta armada – é Franklin Martins. No filme, o jornalista e atual ministro da Secretaria de Comunicação Social conta que foi dele a idéia de realizar a operação. O plano foi prontamente aceito na DI-GB e recebeu a indispensável adesão da ALN.


 


Era à ALN, por sinal, que pertencia Virgílio Gomes da Silva, coordenador da operação. O embaixador, uma vez detido, ficou escondido na casa do jornalista Fernando Gabeira, que mal aparece no filme. Uma pergunta: se Gabeira cedeu o cativeiro e escreveu o mais famoso livro sobre o seqüestro, por que não foi entrevistado?


 


''O que importava era falar com os 'generais', e ele (Gabeira) era 'soldado raso''', argumenta Da-Rin ao Vermelho. O filme sustenta seu diretor: os entrevistados citam Gabeira apenas duas ou três vezes – e de forma marginal.


 


Balanço


 


Com seu documentário, Da-Rin visou a uma mensagem para ''estes tempos ultraliberais, pós-modernos, antiutópicos''. Hércules 56 talvez seja didático demais por isso, mas narra a história do seqüestro sem nunca perder o viés político. A preocupação em teorizar sobre luta armada e revolução está sempre clara.


 


Para além da premissa aventureira que guia o livro de Gabeira – e em vez das simplificações mal-intencionadas que costuram o filme de Bruno Barreto -, Hércules 56 faz, sim, um balanço crítico e ainda tem méritos formais. À apresentação integral do manifesto, em narração tensa e solene, sobrepõem-se cenas da repressão militar e da reação do povo ao truculento regime.


 


As imagens de época são expressivas para todos os momentos da narrativa, incluindo as gravações dos presos políticos fora do Brasil. Destacam-se, nesse ponto, a chegada e a estada no México, além da reunião do grupo com Fidel Castro em Cuba. O filme também passa a limpo dúvidas e curiosidades, como a ausência de Carlos Marighela no seqüestro e a forma como se definiu o nome dos 15 presos e os termos do manifesto.


 


Ação válida?


 


A maioria dos entrevistados dá a entender que o saldo político do seqüestro foi negativo. De um lado, as duas reivindicações foram atendidas; os grupos revolucionários poderiam – quem sabe? – exigir que até mais do que 15 presos fossem soltos. Mas o que se viu, com a subseqüente ascensão de Emílio Garrastazu Médici, foi o endurecimento do regime militar, que prendeu, torturou e assassinou cada vez mais.


 


Para Vladimir Palmeira, um dos presos políticos soltos, o resultado foi ''um desastre''. Opinião da qual Franklin Martins discorda: se houve erros pontuais, a luta popular também se fez presente. Segundo o jornalista, vencer não é a única forma possível de triunfo em muitos momentos históricos – e é devido à luta e ao povo que o Brasil está melhor sem os militares no poder.


 


Já que o romantismo de O que É isso, Companheiro? não serve como acréscimo, nem como contraponto, vale a pena encadear Hércules 56 ao lado do ótimo Batismo de Sangue, lançado há duas semanas. A história de Batismo se baseia em fatos verídicos posteriores ao seqüestro de Charles Elbrick. E mostra quão mais dura ficou um regime abertamente contrário ao povo brasileiro.


 



Treze dos 15 presos políticos libertados se preparam para o embarque. De pé, a partir da esquerda: Luís Travassos, José Dirceu, José Ibrahim, Onofre Pinto, Ricardo Vilas, Maria Augusta, Ricardo Zarattini e Rolando Frati. Agachados: João Leonardo, Agonalto Pacheco, Vladimir Palmeira, Ivens Marchetti e Flávio Tavares.


 


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