O novo papel de Jô Soares: o pitbull da Globo

Por Cristina Charão
Há cerca de 20 anos, Jô Soares inaugurou na TV aberta brasileira um gênero televisivo clássico nos Estados Unidos: o programa de entrevista do entrevistador showman. Um cenário com fotos da cidade grande, uma mesa com canecas, um

O gênero fez sucesso e, durante certo tempo, ser um entrevistado do Jô era sinônimo de status e é certo que houve momentos em que o comediante levou mais a sério a função de entrevistador do que a de showman.


 


Na última quarta-feira, Jô Soares inaugurou um novo estilo de programa: o programa de entrevistas do entrevistador pitbull.Pode-se dizer que, desde que voltou à sua velha casa, a Rede Globo, o cômico-intelectual exacerbou o lado entretenimento de seu programa. Seu espaço no início da madrugada tornou-se mais uma peça da esperta estratégia da emissora de usar mais da metade do seu tempo de programação para a meta-propaganda.


 


O episódio da última quarta, entretanto, foi além. Em estilo besta-fera (pincelado de estranho senso de humor), Jô Soares tornou-se porta-voz dos interesses das Organizações Globo na disputa que esta trava com o Ministério da Justiça pela modificação da legislação que estabelece a Classificação Indicativa de Obras Audiovisuais.Especificamente, dedicou dois blocos de seu programa a entrevistar o ator Guilherme Weber (contratado da casa) e o diretor Felipe Hirsch.


 


O trabalho que ambos realizam no teatro, a peça A Educação Sentimental do Vampiro, valeria o convite. Baseada na obra de Dalton Trevisan, está sendo apresentada em um projeto de popularização do teatro, bancado pelo Sesi-SP. O tema da peça (os personagens do sub-mundo urbano), a obra de Trevisan, as iniciativas de formar público para teatro, tudo isso poderia pautar a conversa de Jô com Weber e Hirsch.


 


Ataque vil


 


Mas a escolha para começar a conversa foi a adição da frase ''Esta peça é recomendada para maiores de 16 anos por conter cenas de violência e nudez total'' à gravação que antecede o espetáculo – e que dá também as indicações de segurança. Esta é uma das maneiras previstas na regulamentação da classificação indicativa para explicitar a recomendação feita pelo grupo de classificadores.


 


A piada poderia ficar apenas no muxoxo de Weber sobre o ''clima'' quebrado pelas palmas e risos do público diante do anúncio de que alguém tirará a roupa no palco. E a quebra do clima seria uma piada-reclamação que poderia ser estendida ao anúncio de que os extintores estão do lado de fora da sala.


 


Porém, para o novo maior pitbull da TV brasileira, esta passagem transformou-se em deixa para uma seqüência de comentários que, ora disfarçados por tentativas de ser gracioso, ora ditos em tom de reprovação indignada, tornaram-se o mais direto, elaborado e vil ataque das Organizações Globo à nova regulamentação da Classificação Indicativa.


 


O argumento de que indicar a idade apropriada para uma criança ou adolescente entrar em contato com determinados conteúdos (como sexo, violência e uso de drogas) em obras artísticas no teatro, cinema e TV, segundo critérios públicos, é o mesmo que censurar – ou seja, proibir arbitrariamente que determinado conteúdo circule socialmente – é o mantra das emissoras de TV desde que a Portaria 264/07 entrou em vigor. Na entrevista, foi também o mantra do pitbull.


 


''Isso se aproxima muito perigosamente da censura'', repetiu algumas vezes, desde a abertura do programa, quando ele deveria apresentar os entrevistados, mas preferiu dar o nome do ator e do diretor, apenas, e dizer que bateria um papo com eles sobre a ''assustadora'' classificação indicativa.


 


Tentando colocar a Constituição – ''que foi tão mudada que a gente não entende mais nada'' – embaixo do seu braço, disse que a medida vai contra a liberdade de expressão. E, no embalo, afirmou que o Estado não pode assumir a função da educação das crianças, que cabe aos pais.


 


O machado, o ''martelinho'' e a ignorância


 


É preciso dizer ao grande cômico que a Constituição não serve apenas aos interesses de poucos, mas equilibra os direitos de muitos. Por esta razão, ela prevê tanto o direito à liberdade de expressão quanto o das crianças e adolescentes crescerem e serem educados em ambientes propícios ao desenvolvimento sócio-psicológico saudável. E que, por esta razão, é preciso legislar para que um direito não se sobreponha ao outro, e é esta a função cumprida exemplarmente pela Portaria 264.


 


É preciso, ainda, lembrar que a Educação é tarefa compartilhada constitucionalmente pela família e pelo Estado. A ação de um complementa a do outro, e este é um princípio respeitado na sua integridade pela Classificação Indicativa, que não proíbe a veiculação de conteúdos, mas se solidariza com os pais no trabalho de escolher o que seus filhos e filhas podem ou devem assistir.


 


Mas a entrevista não se limitou à repetição dos argumentos de sempre. Fazendo uso de suas habilidades de comediante, Jô Soares leu trechos da portaria. Com voz satírica, citou que alguns critérios usados na classificação referem-se à nudez (se parcial ou total), às características das cenas de sexo e o tipo de arma usada nas cenas de violência. Mais sátiro ainda, perguntou: ''Se eu matar com um machado, não pode, mas se for com um martelinho, pode?''.


 


Provavelmente, também não. Só que a tentativa do representante do ''esquadrão de elite pela liberdade das empresas de comunicação'' de ridicularizar os critérios da classificação perde a graça quando se lembra que o conteúdo da nova regulamentação é de fato criterioso porque reflete uma discussão ampla e longa, cujo resultado foi democraticamente acertado, inclusive com os mandantes da grande mídia.


 


Ora, mas para quê perder a piada, não é mesmo? Para que lembrar este detalhe sério quando o que vale é colocar todo o seu talento para ser engraçadinho a serviço da defesa dos direitos daqueles que são, neste país, os únicos a terem seus direitos respeitados – ainda que na base da intimidação feita durante 24 horas, em mensagens enviadas pelo espectro público eletromagnético?


 


Quem é racista?


 


O título de piada sem graça, no entanto, fica para a comparação da Classificação Indicativa ao nazismo. Segundo Jô Soares, a idéia de que os selos de indicação tenham cores diferentes para cada uma das faixas etárias (10, 14, 16 e 18 anos) lembra a prática nazista de estigmatizar os presos nos campos de concentração também por cores. ''Não era lá nos campos de concentração que cada um tinha um emblema com cor diferente? Judeus, presos de guerra, presos políticos…'', comentou o jocoso senhor.


 


Houve, ainda, uma piada grosseira sobre o fato de o selo da classificação ''apropriado para maiores de 18 anos'' ter de ser apresentado na cor preta. ''Quer dizer que quem tem menos de 18 anos não pode ter acesso a conteúdos pretos, negros? E além disso, parece até racismo.'' Racismo de quem? A esta altura, já não era possível vislumbrar qualquer sentido no que falava o pitbull global, babando a sua raiva – ou a de seus chefes.


 


Hirsch e Weber, por terem se prestado ao papel de coadjuvantes, ou co-ajudantes, na cena de violência antidemocrática de Jô Soares, ganharam o privilégio de um bloco a mais de entrevista. Desta vez, o tema foi – finalmente! – a bela peça que encenam. A chamada para um próximo bloco por tema tão ''comum'' quanto uma peça, porém, só ressalta o triste papel assumido pelos dois (se Weber ainda fosse o galã da novela das oito, talvez, quem sabe, não seria tão estranho…).


 


Assim como marca, em definitivo, a estratégia deliberada – de Jô? de sua produção? daqueles que mandam em Jô e na sua produção? – em não abrir o espaço para o contraditório. Os outros 15 minutos com o ator e o diretor poderiam ser 15 minutos com algumas das pessoas-chave no processo de discussão da Portaria 264.


 


Espaços delimitados


 


Porém, na noção distorcida de democracia e liberdade que constrói a Globo, minuto a minuto nos espaços jornalísticos, nos de entretenimento ou quase-entretenimento e na propaganda corporativa, não cabe quem não defende o direito de a dona da mídia fazer o que queira a despeito do direito alheio. A despeito do direito do povo brasileiro exercer o controle do que circula pelo ar dos brasileiros. A despeito do direito de crianças e adolescentes não serem violentados pelo desejo empresarial de vender quinquilharias.


 


Por outro lado, há espaço para todos que queiram ou sujeitem-se a vociferar as verdades globais. Há espaço, inclusive, para Jô Soares.