Wagner Gomes: Reforma da Previdência, um beco sem saída
O sistema de aposentadoria é um dos temas mais importantes que o mundo do trabalho enfrentou ao longo da história do capitalismo. No Brasil, temos um sistema de Previdência Social altamente sofisticado, que funciona como instrumento público de distribuiçã
Publicado 21/05/2007 20:18
Em entrevista ao jornal Financial Times, publicada no dia 1º de abril de 2006, o ministro da Fazenda, Guido Mantega, disse que a Previdência Social já foi reformada e caminha rumo à estabilidade. Mesmo com os efeitos do aumento real do salário mínimo, que os neoliberais insistem em classificar como parte dos gastos correntes do Estado — ao lado de despesas com viagens, escritórios, computadores etc. —, são administráveis dentro do regime criado com a “reforma”. Mantega faz as contas. O aumento do mínimo custou R$ 5 bilhões. Só o combate às fraudes, com a unificação da fiscalização, pode gerar um resultado que cobre esse valor.
Esse raciocínio dá uma medida de como a visão do ministro da Fazenda se choca com a pregação religiosa dos adoradores do “mercado-deus”. Um setor do governo — no qual se inclui o ministro Luiz Marinho — diz que a “reforma” atingirá apenas quem está entrando no mercado de trabalho. Não se pode dizer, evidentemente, que todos deste setor são adoradores da “mercado-deus” — mas esta tese se insere na visão neoliberal de que a Previdência Social deve ser encarada como uma poupança que se acumula durante décadas para ser usufruída nos anos finais da vida do trabalhador. Em tese, o valor presente das contribuições deve ser igual ao valor presente das aposentadorias de cada pessoa.
Objetivos diferentes
A defesa da “reforma” pelo ministro resvala para esta lógica. De mexida em mexida, a Previdência Social está sendo levada para o caminho da sua extinção como instrumento público de distribuição de renda. De propósito, os adeptos da crença neoliberal estabelecem uma enorme confusão entre Previdência Social e assistência social. Nas contas brasileiras, elas aparecem misturadas, juntamente com a saúde, nos gastos da Seguridade Social. Mas é importante reconhecer que são coisas diferentes.
Assistência social é o que se gasta, em geral com os mais pobres, em programas de distribuição de produtos, serviços ou dinheiro, sem nenhum tipo de exigência financeira por parte dos beneficiários. É o caso, por exemplo, da distribuição de cestas básicas. Em um país pobre como o Brasil, programas desse tipo são importantes e bem-vindos. Mas é preciso não confundi-los com outros tipos de gastos. A Previdência Social não é o mesmo que assistência, e seus objetivos são diferentes. O conceito clássico de Previdência Social têm efeito redistributivo.
Formas de financiamento
O tema tem sido intensamente debatido, mas os números contraditórios devem estar confundindo muita gente. Vale a pena, então, revisitá-los, com base em informações do próprio governo. O escândalo está, como se sabe, na definição “governo central”, composto pelo Tesouro Nacional, Previdência Social e Banco Central (BC). Os últimos dados do Tesouro indicam que o “governo central” teve superávit primário de R$ 3,312 bilhões em março deste ano. Nas contas preliminares do chefe do Departamento Econômico do BC, Altamir Lopes, o setor público (União, Estados, municípios e estatais) destinará R$ 95,9 bilhões para o pagamento de juros ao longo de 2007. No ano passado, os gastos com juros somaram R$ 160 bilhões, ou 6,89% do Produto Interno Bruto (PIB).
Uma discussão séria sobre o assunto certamente incluiria essas contas. O problema a ser enfrentado é a ditadura do superávit primário. Os neoliberais fogem desse tema como o diabo da cruz. Mas advogam outras formas de financiamento da Seguridade Social, que implicam em tirar mais dinheiro dos trabalhadores. Uma fonte seria o Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS). Ele só deveria ser sacado em caso de desemprego. O restante deveria ser destinado ao fundo de aposentadoria.
Arquitetura sofisticada
Há ainda a questão das fraudes. Recentemente a Receita Federal fez uma operação de combate à sonegação da Contribuição para Financiamento da Seguridade Social (Cofins) e dos valores destinados ao Programa de Integração Social (PIS). Batizada de operação Eclipse, a ação teve como objetivo recuperar até R$ 10 bilhões apenas na cidade de São Paulo. Cerca de 6 mil empresas foram investigadas na capital paulista e outras 2 mil no restante do Estado. ''Há empresas que apresentam indícios de sonegação de até R$ 3 milhões em apenas um ano'', disse a delegada Roseli Mitsui Tomikawa, da Delegacia de Fiscalização da Receita em São Paulo.
A Previdência Social brasileira é uma arquitetura altamente sofisticada. O sistema foi montado de forma que contribuições acumuladas e aposentadorias a serem pagas não tivessem nada que ver umas com as outras. A partir de uma certa idade, todos têm direito de receber aposentadoria, a despeito de quanto foi pago ao sistema. Talvez o maior exemplo de justiça social deste modelo era a ausência de uma idade mínima na hora da aposentadoria. Valia o tempo de serviço.
Até a década de 50, só podia se aposentar quem completasse 50 anos. Em 1960, a data-limite subiu para 55 anos. Em 1962, o limite de idade caiu. Prevaleceu, desde então, um outro tipo de cálculo: a aposentadoria por tempo de serviço. Isso queria dizer o seguinte: quem trabalhasse 35 anos (ou 30, no caso das mulheres) podia se aposentar qualquer que fosse sua idade. A “reforma” de 1998 aboliu este mecanismo para adotar o fator previdenciário, que na prática restituiu a idade mínima.
Vagabundos mentais
Para os neoliberais, isso gerou uma quantidade enorme de aposentadorias “precoces” no país e motivou o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso (FHC) a chamar de vagabundo quem se aposentava por esse sistema. Não havia nada de “precoce” nisso. Imagine o exemplo de alguém que começou a trabalhar aos 15 anos. Aos 50, poderia se aposentar. Já alguém que começasse a trabalhar mais tarde, conseqüentemente se aposentaria mais tarde. Num país de baixos salários e farta força de trabalho, onde há “precocidade”, injustiça ou “vagabundagem” nisso? Só os vagabundos mentais — ou os mal intencionados — podem advogar essa tese de FHC.
Pelo raciocínio neoliberal, sim, a tese de ''privilégio'' defendida pelo ex-presidente faz sentido. Vejamos: um sujeito que ganha mais e conseqüentemente contribui mais terá uma aposentadoria maior do que o que ganha menos e contribui menos. O primeiro, ao contrário do segundo, certamente beneficiado por posses familiares, pode se dedicar aos estudos e retardar a sua entrada no mercado de trabalho. Aí sim teremos duas categorias de aposentados e podemos falar de “privilégios” para o primeiro. Por tudo isso, quando se fala em “reforma” da Previdência Social é preciso definir o lado — o do trabalho ou o do capital. Não há como fugir desta dicotomia.