Wagner Gomes: Reforma da Previdência, um beco sem saída

O sistema de aposentadoria é um dos temas mais importantes que o mundo do trabalho enfrentou ao longo da história do capitalismo. No Brasil, temos um sistema de Previdência Social altamente sofisticado, que funciona como instrumento público de distribuiçã

Em entrevista ao jornal Financial Times, publicada no dia 1º de abril de 2006, o ministro da Fazenda, Guido Mantega, disse que a Previdência Social já foi reformada e caminha rumo à estabilidade. Mesmo com os efeitos do aumento real do salário mínimo, que os neoliberais insistem em classificar como parte dos gastos correntes do Estado — ao lado de despesas com viagens, escritórios, computadores etc. —, são administráveis dentro do regime criado com a “reforma”. Mantega faz as contas. O aumento do mínimo custou R$ 5 bilhões. Só o combate às fraudes, com a unificação da fiscalização, pode gerar um resultado que cobre esse valor.


 


Esse raciocínio dá uma medida de como a visão do ministro da Fazenda se choca com a pregação religiosa dos adoradores do “mercado-deus”. Um setor do governo — no qual se inclui o ministro Luiz Marinho — diz que a “reforma” atingirá apenas quem está entrando no mercado de trabalho. Não se pode dizer, evidentemente, que todos deste setor são adoradores da “mercado-deus” — mas esta tese se insere na visão neoliberal de que a Previdência Social deve ser encarada como uma poupança que se acumula durante décadas para ser usufruída nos anos finais da vida do trabalhador. Em tese, o valor presente das contribuições deve ser igual ao valor presente das aposentadorias de cada pessoa.


 


Objetivos diferentes


 


A defesa da “reforma” pelo ministro resvala para esta lógica. De mexida em mexida, a Previdência Social está sendo levada para o caminho da sua extinção como instrumento público de distribuição de renda. De propósito, os adeptos da crença neoliberal estabelecem uma enorme confusão entre Previdência Social e assistência social. Nas contas brasileiras, elas aparecem misturadas, juntamente com a saúde, nos gastos da Seguridade Social. Mas é importante reconhecer que são coisas diferentes.


 


Assistência social é o que se gasta, em geral com os mais pobres, em programas de distribuição de produtos, serviços ou dinheiro, sem nenhum tipo de exigência financeira por parte dos beneficiários. É o caso, por exemplo, da distribuição de cestas básicas. Em um país pobre como o Brasil, programas desse tipo são importantes e bem-vindos. Mas é preciso não confundi-los com outros tipos de gastos. A Previdência Social não é o mesmo que assistência, e seus objetivos são diferentes. O conceito clássico de Previdência Social têm efeito redistributivo.


 


Formas de financiamento


 


O tema tem sido intensamente debatido, mas os números contraditórios devem estar confundindo muita gente. Vale a pena, então, revisitá-los, com base em informações do próprio governo. O escândalo está, como se sabe, na definição “governo central”, composto pelo Tesouro Nacional, Previdência Social e Banco Central (BC). Os últimos dados do Tesouro indicam que o “governo central” teve superávit primário de R$ 3,312 bilhões em março deste ano. Nas contas preliminares do chefe do Departamento Econômico do BC, Altamir Lopes, o setor público (União, Estados, municípios e estatais) destinará R$ 95,9 bilhões para o pagamento de juros ao longo de 2007. No ano passado, os gastos com juros somaram R$ 160 bilhões, ou 6,89% do Produto Interno Bruto (PIB).


 


Uma discussão séria sobre o assunto certamente incluiria essas contas. O problema a ser enfrentado é a ditadura do superávit primário. Os neoliberais fogem desse tema como o diabo da cruz. Mas advogam outras formas de financiamento da Seguridade Social, que implicam em tirar mais dinheiro dos trabalhadores. Uma fonte seria o Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS). Ele só deveria ser sacado em caso de desemprego. O restante deveria ser destinado ao fundo de aposentadoria.


 


Arquitetura sofisticada


 


Há ainda a questão das fraudes. Recentemente a Receita Federal fez uma operação de combate à sonegação da Contribuição para Financiamento da Seguridade Social (Cofins) e dos valores destinados ao Programa de Integração Social (PIS). Batizada de operação Eclipse, a ação teve como objetivo recuperar até R$ 10 bilhões apenas na cidade de São Paulo. Cerca de 6 mil empresas foram investigadas na capital paulista e outras 2 mil no restante do Estado. ''Há empresas que apresentam indícios de sonegação de até R$ 3 milhões em apenas um ano'', disse a delegada Roseli Mitsui Tomikawa, da Delegacia de Fiscalização da Receita em São Paulo.


 


A Previdência Social brasileira é uma arquitetura altamente sofisticada. O sistema foi montado de forma que contribuições acumuladas e aposentadorias a serem pagas não tivessem nada que ver umas com as outras. A partir de uma certa idade, todos têm direito de receber aposentadoria, a despeito de quanto foi pago ao sistema. Talvez o maior exemplo de justiça social deste modelo era a ausência de uma idade mínima na hora da aposentadoria. Valia o tempo de serviço.


 


Até a década de 50, só podia se aposentar quem completasse 50 anos. Em 1960, a data-limite subiu para 55 anos. Em 1962, o limite de idade caiu. Prevaleceu, desde então, um outro tipo de cálculo: a aposentadoria por tempo de serviço. Isso queria dizer o seguinte: quem trabalhasse 35 anos (ou 30, no caso das mulheres) podia se aposentar qualquer que fosse sua idade. A “reforma” de 1998 aboliu este mecanismo para adotar o fator previdenciário, que na prática restituiu a idade mínima. 


 


Vagabundos mentais


 
Para os neoliberais, isso gerou uma quantidade enorme de aposentadorias “precoces” no país e motivou o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso (FHC) a chamar de vagabundo quem se aposentava por esse sistema. Não havia nada de “precoce” nisso. Imagine o exemplo de alguém que começou a trabalhar aos 15 anos. Aos 50, poderia se aposentar. Já alguém que começasse a trabalhar mais tarde, conseqüentemente se aposentaria mais tarde. Num país de baixos salários e farta força de trabalho, onde há “precocidade”, injustiça ou “vagabundagem” nisso? Só os vagabundos mentais — ou os mal intencionados — podem advogar essa tese de FHC. 


 


Pelo raciocínio neoliberal, sim, a tese de ''privilégio'' defendida pelo ex-presidente faz sentido. Vejamos: um sujeito que ganha mais e conseqüentemente contribui mais terá uma aposentadoria maior do que o que ganha menos e contribui menos. O primeiro, ao contrário do segundo, certamente beneficiado por posses familiares, pode se dedicar aos estudos e retardar a sua entrada no mercado de trabalho. Aí sim teremos duas categorias de aposentados e podemos falar de “privilégios” para o primeiro. Por tudo isso, quando se fala em “reforma” da Previdência Social é preciso definir o lado — o do trabalho ou o do capital. Não há como fugir desta dicotomia.