Altamiro Borges: Visões opostas no Congresso do PSOL

Cerca de 800 delegados com direito a voto e outros 600 observadores de todo o país participam, de 7 a 10 de junho, do 1º Congresso Nacional do Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), no Campus da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Nascido de uma fratu

Unidos na oposição frontal ao governo Lula e na campanha presidencial de Heloisa Helena, agora é hora do acerto de contas, definindo melhor a correlação interna de forças. O 1º Congresso do PSOL deve explicitar as divergências no seu interior e promete ser dos mais encarniçados. As 14 teses apresentadas para o debate da militância deixam escancaradas as visões antagônicas sobre o papel deste partido. A cansativa leitura destes documentos evidência certa esquizofrenia no seu interior, já que as concepções são diametralmente opostas. Será necessária engenhosa costura para preservar a unidade no PSOL. Rachas futuros inclusive não estão descartados – e há até quem torça discretamente para que ocorra certa decantação nesta jovem organização.



Revolução na esquina ou acúmulo de forças?



As visões antagônicas surgem já na leitura das diversas tendências sobre a correlação de forças no mundo, o que é fundamental na definição da política do PSOL. Alguns grupos, mais voluntaristas, apostam na rápida radicalização da luta de classes e vêem no horizonte imediato, na próxima esquina, a revolução socialista. A Corrente Socialista dos Trabalhadores (CST), do ex-deputado Babá, por exemplo, exagera no seu otimismo ao garantir taxativamente que “entramos numa nova conjuntura mundial, marcada pelo fracasso da ofensiva imperialista”. As condições já estariam maduras para a revolução, que só não vinga devido “à cumplicidade dos velhos aparatos reformistas e stalinistas… Estamos vivendo uma época história não reformista”.



Já outras correntes, atentas à fase de defensiva estratégica da luta do proletariado, prevêem um prolongado processo de acumulação de força, o que exigiria uma tática mais flexível e ampla. Até a tese do Movimento de Esquerda Socialista (MES), que a exemplo da CST é oriundo de um racha do PSTU, é mais cautelosa na análise da situação internacional, numa flexão surpreendente. “Depois de mais de duas décadas de ofensiva neoliberal, o signo da situação está mudando”, registra, precavido, o texto da tendência da deputada Luciana Genro. Mais explícita na constatação da “indiscutível defensiva” é a tese apresentada pelo deputado Chico Alencar e por renomados intelectuais gramscinianos, como Leandro Konder e Carlos Nelson Coutinho:



“É inevitável constatar que o socialismo saiu da ordem do dia após a queda do muro de Berlim… Como um objetivo visível e viável, ele deixou de estar na ordem do dia para os próprios partidos, movimentos e forças que trazem o socialismo inscrito nos seus programas e estatutos”. Adotando o “pessimismo da razão” do comunista italiano Antonio Gramsci, a tese registra a atual contradição. “O impulso de destruição social, que sempre esteve embutido na lógica da acumulação capitalista, está mais visível. Até nos países centrais do capitalismo se produz um padrão de desigualdade antes reservado para a periferia… Não é por acaso que o novo milênio começa exibindo sinais de resistência… Há, no entanto, um paradoxo. Quando a alternativa socialista ao capitalismo se torna mais imperiosa, a bandeira do socialismo não está posta no dia-a-dia”.



A mesma leitura, de que atual fase é de acumulação de força e de que a revolução socialista não se encontra na próxima esquina, aparece, com diferentes abordagens, nas teses de outras importantes correntes internas do PSOL – como a Ação Popular Socialista (APS), do deputado Ivan Valente, e o agrupamento Enlace, que reúne ex-militantes das correntes petistas Democracia Socialista (DS) e Articulação de Esquerda. Já a tese encabeçada pelo histórico lutador Plínio de Arruda Sampaio, um dos últimos a deixar o PT, apresenta uma avaliação sui generis. Concorda que a fase atual é de defensiva da luta pelo socialismo, mesmo assim rejeita qualquer projeto de transição, democrático-popular, e prega uma idílica “revolução socialista mundial”.  



América Latina: avanços ou traições?



As diferenças ficam ainda mais gritantes e palpáveis ao se analisar a situação da América Latina, que vive um período inédito de ebulições e mutações. No seu radicalismo estéril, a CST concentra os seus ataques no governo de Hugo Chávez, taxado de forma simplista de “nacionalista burguês, que não tem uma estratégia de ruptura com a dominação imperialista… Chávez apóia e defende Lula e o governo escravocrata da China. Isso é o mais puro stalinismo… Não podemos construir um novo partido no Brasil, nos diferenciado do PT, do stalinismo e da social-democracia, e, ao mesmo tempo, brindar apoio político a um governo que, em nome do socialismo do século 21, subordinar os organismos do movimento de massas”.



A histeria da CST contra a revolução bolivariana se dá por motivos internistas. Ela procura se diferenciar de outras correntes do PSOL, que “baseadas na experiência venezuelana, defendem a existência do capitalismo ‘pós-neoliberal’ e propõem a estratégia chavista para o continente”. Outras seitas ainda mais residuais neste partido vão além no sectarismo. É o caso da minúscula Práxis. “O governo Chávez é burguês e, como tal, é um inimigo dos trabalhadores e do socialismo… O MAS de Evo é um partido pequeno burguês e camponês reformista… A Alba não se funda em reivindicações operárias nem anticapitalistas… Não podemos capitular diante desses governos, como faz o MES, que tenta atribuir a Chávez e a Evo um caráter de classe que eles não têm”, dispara o grupelho, que inicia a sua tese com o slogan surrealista “um chamado às armas”.



Com exceção destas seitas, as demais correntes internas do PSOL, que gozam de maior maturidade política e representatividade social, não vacilam em saudar o rico processo de mudanças na América Latina. Mesmo achando que “a busca de ‘soluções nacionais’ é absolutamente irrealista e utópica”, o texto encabeçado por Plínio de Arruda afirma que os governos de Chávez, Evo e Correa “são antiimperialistas e situam-se como oriundos de setores sociais intermediários”. Já a tese assinada por Chico Alencar deve causar calafrios nos sectários ao “acrescentar até a Argentina de Kirchner” no campo progressista e ao defender o Mercosul.



“O gradual crescimento da luta popular e antiimperialista na Venezuela depois da eleição de Hugo Chávez originou nova realidade política e geopolítica no continente… Estamos diante do que talvez seja o ciclo mais promissor para transformações sociais no continente em toda sua história”, afirma o Enlace. “A Venezuela cumpre importante papel no fortalecimento do pólo de esquerda e antiimperialista no continente”, concorda a APS. Numa conversão surpreendente, é o MES de Luciana Genro que parte para o confronto direto contra as visões mais dogmáticas. Após afirmar que o governo Chávez é a “expressão política de um nacionalismo revolucionário”, ela polemiza: “Nosso apoio à Venezuela não pode ser mera expressão de solidariedade… Não podemos fazer como alguns setores de esquerda que tem como eixo atacar o governo Chávez”.



Diferenças táticas diante do governo Lula



Se na análise da situação mundial o antagonismo é flagrante, já no combate frontal ao governo Lula as 14 teses do congresso do PSOL apresentam uma aparente similaridade. “O governo Lula é hoje o principal inimigo dos trabalhadores”, decreta a CST. “Lula vem representando uma nova etapa da implantação do neoliberalismo no Brasil”, arremata o Enlace. “Lula e o PT aliaram-se ao grande capital e ao imperialismo, dando continuidade ao modelo neoliberal implantado por FHC… A afirmação do PSOL, como alternativa de poder, exige uma oposição frontal ao governo Lula… Fechou-se o ciclo do PT e do lulismo e iniciou-se novo ciclo de formação de uma nova direção política”, teoriza o MES. A toada é a mesma nas outras teses.



Mas se há concordância no diagnóstico, as divergências surgem novamente com força ao se discutir a tática diante desta realidade. Grupos ultra-esquerdistas inclusive até acusam uma guinada “direitista e eleitoreira” da atual direção do PSOL. Para a seita de Babá, MES, APS e Enlace pretendem “domesticar” a oposição ao atual governo. “Por isto houve os que defenderam o voto em Lula no segundo turno, votaram em candidatos do PT aos governos estaduais, como no Pará, ou defenderam o voto em Aldo Rebelo como um ‘mal menor’ na eleição da Câmara Federal”. Para ele, a nova agremiação sofre “a pressão de muitos setores que se filiam como se fossemos uma legenda e só querem ser candidatos, sem dar importância ao projeto político”.



O principal alvo da CST, até porque ambos têm a mesma origem e foram os fundadores do PSOL, é o MES, que teria engrossado o caldo das correntes “reformistas” que defendem uma frente antineoliberal, “até com setores da burguesia e das Forças Armadas”, e que hoje priorizaria a via “eleitoral e institucional”. Diante da temida direitização do partido, a CST radicaliza o seu discurso e prega maior aproximação com o PSTU e o ingresso na Conlutas. “O PSOL não poderá se coligar com os partidos que não sejam de esquerda… Os mal considerados ‘progressistas’ estão todos na base governista. Nosso dever é desmascará-los e não salvá-los da inevitável decadência”, afirma a tese, num evidente auto-exílío sectário.



No mesmo rumo, os “revolucionários” da seita Práxis alertam: “Vivemos hoje uma pressão eleitoralista por parte de correntes, dirigentes e parlamentares que se assumida pelo congresso desfigurarão nosso partido… Está colocada a necessidade da unidade das correntes e militantes de esquerda do PSOL” para “impedir sua ‘direitização’”. Para os saudosos do anarquismo, o centro da atividade partidária deve ser a “ação direta”, já que a disputa eleitoral desvirtua e corrompe. “Hoje, o PSOL vive a tensão entre dois projetos antagônicos: um de cunho eleitoreiro, representado pela APS, Enlace e MES, e outro socialista… O primeiro, claramente oportunista, tenta transformar nosso partido num PT que dê certo”. Segunda a Práxis, essa guinada se deu “a partir da entrada da APS, com objetivos meramente eleitorais, e do brutal giro à direita dado pelo MES”.



Uma plataforma antineoliberal ou socialista



Mas o problema do PSOL não é apenas o de derrotar estas visões mais dogmáticas e sectárias. Mesmo entre as forças mais “lúcidas” há sensíveis nuances na definição da tática. A APS é a única que, explicitamente, defende a adoção de um programa democrático-popular como forma de aproximação do objetivo socialista. “A desorientação que marcou o período recente deve-se ao abandono do programa democrático e popular, instrumento que o PSOL assume como mais adequado para a atual situação da luta de classes… Venezuela, Bolívia e Equador têm demonstrado que governos democráticos e populares encontram enorme resistência das elites locais e do imperialismo, porque colidem frontalmente com a dinâmica atual do capitalismo dependente”. Com base nesta plataforma, a APS propõe a constituição de uma ampla frente antineoliberal. 



Já o Enlace, que tem entre seus líderes alguns dos mentores do programa democrático-popular, não endossa essa idéia nem apresenta algo em seu lugar. Após caracterizar o governo Lula como “social-liberal” – e não neoliberal –, a tese constata que “a força do governo Lula, acentuada pelos resultados eleitorais, bem como pela adesão a ele da maior parte da esquerda, torna o quadro difícil para os socialistas”. Daí propor, como tarefa tática, a união de “todos os setores que se dispõem a lutar, independentemente da filiação partidária… É necessário que o PSOL estabeleça diálogo crítico permanente com os setores que até agora fizeram uma ruptura parcial com o governo Lula e o PT… O PSOL deve contribuir para impulsionar uma recomposição abrangente da esquerda brasileira, com a consciência de que esse processo será prolongado e não linear”.



Mesmo sem adotar um programa transitório, o MES também adere à política das alianças mais amplas e à plataforma antineoliberal. “Nossas possibilidades de dialogar com setores de massas são reais, o que torna tão criminosa uma política partidária centrada na propaganda, distanciada da agitação”. Após ilustrar com o recente ingresso de “dirigentes combativos do PDT” gaúcho, diz que a “principal contradição da realidade brasileira” não se dá entre o capital e o trabalho e defende uma frente que incorpore “a pequena burguesia, micro empresários… e setores das Forças Armadas… Nosso desafio é encabeçar uma frente que impulsione a luta pela ruptura com o imperialismo… O nosso esforço deve ser nas ruas e na disputa eleitoral. Devemos, logo, buscar alianças eleitorais”, afirma a tese da pré-candidata à prefeitura de Porto Alegre. Inacreditável!



Também neste campo menos sectário, a tese assinada por Chico Alencar conclui: “Na necessária mediação política com outras forças e representações de classe que o espaço institucional obriga, aprendemos que é decisivo manter a firmeza estratégica, combinada com a flexibilidade tática que evita o isolamento e faz avançar a luta nos patamares possíveis: o PSOL sonha alto com os pés no chão. E busca parceiros pontuais, para batalhas específicas, além dos aliados estratégicos… É necessário fazer alianças táticas com todos os setores que conjunturalmente ou setorialmente tenham divergências com o neoliberalismo… Não foram poucos os que, mesmo tapando o nariz, sufragaram Lula para não o ver tucanato e sua escancarada política neoliberal de volta… O PSOL não deve se tentado ao sectarismo da auto-afirmação dos ‘duros e puros’”.



Ainda neste campo, a única tese que destoa é a encabeçada por Plínio de Arruda. Mesmo reconhecendo que “não estamos às portas da revolução”, ela rejeita “qualquer alternativa neokeynesiana” de desenvolvimento nacional e prega a “estratégia da revolução socialista como objetivo e necessidade para os povos”. De forma incisiva, defende que é preciso “superar o programa democrático e popular que serviu de norte estratégico para o projeto de mudanças da maior parte da esquerda brasileira, mas que está esgotado”. Com esta postura utópica, ela propõe alianças estreitas, “que reafirmem a nossa opção classista e socialista e que possibilitem a formação de uma frente de esquerda… tal como o PSOL efetivou em 2006” – com o PSTU e o PCB.



Partido de quadros ou de massas



Por último, as mesmas visões antagônicas citadas acima se expressam ainda na discussão sobre a concepção de partido. A CST e outras seitas pregam um partido de quadros, fechado e ultra-centralizado. “Ou o PSOL avança na sua unidade política – o que não significa pensamento único, mas marco estratégico comum – ou continuará a ser uma frente de tendências, grupos e indivíduos. Neste segundo caso, funcionará combinando instâncias e acordos, situação que não poderá durar eternamente”, prevê a CST. Já o grupo Práxis faz duras críticas à hegemonia interna dos parlamentares, à ausência de instâncias “democráticas” e ao burocratismo.


 


No extremo oposto, o Enlace adverte que “a questão de reforçar a abertura do partido e de fazê-lo crescer é decisiva… Toda abertura do partido implica incorporar mais companheiros às decisões e, portanto, reduzir o peso relativo das primeiras gerações que começaram a construção do partido”, cutuca. A APS, outro força retardatária, defende que o partido “saia de uma lógica internista e se afirme como alternativa de esquerda e socialista… Não queremos um partido que se limite a dar testemunho de pureza das convicções”. E o MES insiste que “o caráter socialista e revolucionário do nosso programa não pode limitar a entrada daqueles que ainda não tem solidez ideológica para assimilá-lo completamente. Isto seria um grave erro, pois estaríamos transformando o PSOL num partido de quadros, o que nos levaria inevitavelmente ao dogmatismo”.


 


Como se observa, as divergências no interior do PSOL são abissais – são antagônicas. O único ponto mais sólido de unidade neste partido – que mais se parece com uma frente bastante hibrida – é a oposição frontal ao governo Lula. Tudo indica que suas correntes menos sectárias, como APS, Enlace e MES, uniram forças para isolar e derrotar os grupos mais esquerdistas e dogmáticos. Há até riscos de novo rachas. Mas nada está definido. O final de semana promete ser tenso para os que se embrenharam na construção do PSOL.



Altamiro Borges é jornalista, membro do Comitê Central do PCdoB, editor da revista Debate Sindical e autor do livro “Venezuela: originalidade e ousadia” (Editora Anita Garibaldi, 3ª edição).