“Frente fria”: Rússia renasce como potência e ameaça EUA

Por Neil Buckley (Financial Times)
Enquanto um míssil balístico anticontinental era disparado em vôo-teste do cosmódromo russo de Plesetsk, no domingo passado, os fantasmas da Guerra Fria pareciam estar despertando. O presidente Vladimir Putin

Na reunião do G8 na Alemanha, nesta semana, Putin propôs um local alternativo para instalar o radar do sistema antimísseis, o Azerbaijão, e o presidente George W. Bush ofereceu iniciar um “diálogo estratégico” com Moscou sobre o tema. Mas reparar as relações entre os dois lados vai exigir destreza diplomática. A questão é se o aparente descambo rumo a um novo impasse nuclear pode ser revertido, e como.


 


Parte da resposta talvez consista em compreender o que está por trás da atitude agressiva da Rússia. Na entrevista que concedeu a jornalistas ocidentais na semana passada, Putin deixou uma pista importante. “Queremos ser ouvidos”, disse.


 


No momento em que a Rússia desfruta de uma recuperação econômica movida pelo petróleo, desagrada profundamente a Moscou o fato de o Ocidente ainda tratá-la como potência derrotada. Com ou sem razão, a Rússia crê que há 15 anos vem sendo obrigada a engolir as iniciativas da política externa ocidental, vendo suas objeções serem desprezadas.


 


A Rússia acredita, sobretudo, que o Ocidente quebrou a promessa feita no início dos anos 1990 de que a Otan não seria ampliada em direção ao leste. Em lugar disso, a aliança militar hoje engloba não apenas alguns ex-satélites soviéticos – mas também as três antigas repúblicas soviéticas do Báltico. Moscou desconsidera o fato de que essas novas democracias pediram para ingressar na Otan, movidas pela desconfiança residual que sentiam da Rússia. Em lugar disso, a Rússia enxerga tentativas de cercá-la.


 


“Há anos as pedras do Muro de Berlim vêm sendo distribuídas como suvenir”, disse Putin em fevereiro, em Munique, num discurso que marcou uma virada na atitude da Rússia em relação ao Ocidente. “E agora estão tentando nos impor novos muros e linhas divisórias.”


 


Bálcãs


 


Um segundo motivo de ressentimento russo é a província de Kosovo, que se separou da Sérvia. A Rússia sempre viu o bombardeio da Sérvia pela Otan, em 1999, como uma agressão injustificada que arrancou um pedaço de uma nação eslava irmã. Ela enxerga as iniciativas ocidentais atuais de conceder a independência a Kosovo como simples tentativa de concluir o trabalho.


 


A Rússia também acha que Putin foi esnobado em seus esforços para construir um relacionamento novo com o Ocidente após o 11 de Setembro. O presidente russo foi o primeiro líder estrangeiro a telefonar a Bush após os ataques terroristas. Mais tarde, ele apoiou as bases americanas na Ásia central, ex-soviética, para ajudar a ação adotada no Afeganistão.


 


Entretanto, em lugar de conquistar a parceria entre iguais pela qual ansiava, meses mais tarde a Rússia viu os Estados Unidos abandonarem o Tratado de Mísseis Antibalísticos, de 1972, o que abriu o caminho para os planos do sistema de defesa antimísseis. Em 2003, os Estados Unidos passaram por cima das objeções de Moscou e outros países ao invadir o Iraque.


 


Depois, houve o que a Rússia vê como ingerência inaceitável em seu quintal, com as revoluções pró-democráticas na Ucrânia e Geórgia, que tiveram respaldo ocidental. Moscou desconsidera as fraudes eleitorais que desencadearam os eventos e atribui a culpa ao que vê como uma aliança dúbia entre grupos oposicionistas e ONGs financiadas com recursos do exterior, diplomatas e “oligarcas” russos exilados.


 


Embora o Ocidente acuse a Rússia de usar seus recursos energéticos como arma política, há alguma base para a afirmação de Moscou de que foi a lógica econômica pragmática que a levou a elevar para níveis de mercado os preços do gás natural subsidiado que cobrava das ex-repúblicas soviéticas – embora algumas tenham conseguido períodos de transição mais longos que outras.


 


A Rússia insiste em seu direito de conservar sua influência em Estados ex-soviéticos, algo que o Ocidente rejeita. Também se opõe à “agenda da liberdade” de Bush e insiste que as tentativas de impor a democracia ocidental são imperialistas e estão fadadas ao fracasso.


 


A defesa antimísseis é a questão na qual Moscou decidiu tomar posição com mais força – embora Washington diga que o sistema não está voltado contra a Rússia, mas contra o Irã. Moscou teme que as estações que os Estados Unidos querem implantar na Polônia e na República Tcheca possam, mais tarde, abrigar equipamentos capazes de atingir mísseis russos.


 


Questões domésticas


 


Cliff Kupchan, ex-funcionário do Departamento de Estado e analista na consultoria Eurasia Group, de Nova York, diz que o Kremlin quer reverter os casos nos quais crê que outros países tiraram vantagem da fraqueza da Rússia na década de 1990. Isso inclui esforços para controlar os “oligarcas” e para renegociar contratos com a Royal Dutch Shell e a operação russa da British Petroleum.


 


No entanto é quase certo que considerações domésticas venham agravando as invectivas antiocidentais. Andrei Illarionov, ex-assessor de Putin e hoje crítico confesso do presidente, cita as eleições de 2008, quando Putin deve deixar o poder. A Rússia, sugere Illarionov, está agravando os problemas em suas relações com o Ocidente “para induzi-lo (o Ocidente) a recorrer a declarações ou mesmo a ações que, então, poderiam ser retratadas como ingerência nos assuntos internos”.


 


Como, então, o Ocidente deve reagir? Analistas em Moscou e observadores da Rússia em Washington dizem que está claro que Putin quer uma concessão dos Estados Unidos. Kupchan diz que o Ocidente precisa reconhecer que a Rússia está de volta como grande potência – mas destacar que essa posição vem acompanhada da responsabilidade de exercer um papel global construtivo.


 


“A realidade do sistema internacional de hoje é que a Rússia está rapidamente se convertendo numa grande potência não-alinhada”, disse ele, “mais na linha da China ou da Índia que como parceira júnior ou discípula do Ocidente”.


 


* Artigo republicado neste domingo (10) pela Folha de S.Paulo