A Venezuela e o “achismo”: a moda é apedrejar Hugo Chávez

Miguel Carvalho, em crônica para o site Visão, lamenta a onda de achismos que acom ete Portugal, ainda mais nesta época de Venezuela, Hugo Chávez e RCTV. “Pergunto: que diria e faria Cavaco Silva, presidente da República – democraticamente eleito

A Venezuela e o “achismo”


 


Por Miguel Carvalho


 


Um dos maiores problemas de Portugal é o achismo. O que é o achismo? Ora, o achismo é aquilo que substitui uma análise ponderada, equilibrada e aprofundada – tanto quanto possível – de argumentos. O achismo é opinião carroceira, de rua. É a teoria do taxista e do caminhoneiro. De todos nós, nas horas vagas. Diz-se, por tudo e por nada: “Eu acho que…”. E pronto! Fazer o quê?


 


O “acho que” é tão legítimo como outra coisa qualquer. Eu já disse “acho que” numa conversa de amigos, em jantares. Digo muitas vezes, aliás. Em algumas crônicas até tem graça. Dependendo do tema, claro. O problema é outro: em Portugal o “acho que” foi elevado à condição de opinião e comentário encartado. Exercido e exibido por figuras e figurões de respeito.


 


A última moda do achismo português é baixar o pau sobre a Venezuela e Hugo Chávez. Duzentos ou 300 caracteres por diante e eis-nos diante do achismo de qualquer escriba. Vou tentar, pois, exercer também o meu direito ao achismo… mas com alguns condimentos mais.


 


Estive na Venezuela em 2003. Por duas ocasiões. Somado o tempo, quase dois meses. Na altura, o país atravessava dois momentos críticos: a ressaca de um golpe de Estado frustrado para apear Chávez do poder. E uma suposta “greve geral” promovida pelas associações… patronais.


 


Tempos difíceis


 


Todas as manhãs, por vezes à hora do almoço e sempre um bom bocado pela noite, ligava a televisão do quarto do hotel e fazia um zapping persistente e demorado pelos quatro grandes canais privados do país, responsáveis por 80% do espectro televisivo venezuelano. Não esquecia, também, o único canal estatal. Apesar de servir a propaganda chavista, era de longe mais equilibrado do ponto de vista noticioso e, sobretudo, pouco ou nada insultuoso com os adversários e a oposição política.


 


A programação e a informação dos canais privados Globovision, Televen, Venevision e da agora tão falada Rádio Caracas Television (RCTV) era de um nível tal que, até nos seus piores momentos, a TVI seria comparada à BBC. E estou a ser meigo.


 


Naquela altura, os canais privados tinham assumido editorialmente um combate contra Chávez e os seus apoiadores. Diziam-se solidários com a “greve geral” e praticavam.


 


Durante meses, suspenderam os blocos publicitários como forma de mostrar o seu compromisso cívico e solidário com a “greve” apoiada por empresários, associações patronais e sindicatos (a história do noivado entre sindicatos e patrões na Venezuela fica para outras núpcias, porque a boda é de monta).


 


Nesse período, a publicidade foi substituída por constantes blocos de propaganda que consistiam invariavelmente no seguinte: mobilizar o povo para as “manifs” contra Chávez, apresentar o presidente da Venezuela como “diabo”, “tirano” e responsável por uma tentativa de implantar no país “uma nova Cuba” – chegaram, inclusive, a usar-se imagens de Nossa Senhora de Fátima para “mostrar o caminho”.


 


Liberdade de expressão?


 


Em alguns debates supostamente plurais, faziam-se insinuações sobre a vida privada de Chávez, as suas origens sociais e outros mimos.


 


Pergunto: que diria e faria Cavaco Silva, presidente da República – democraticamente eleito, tal como Chávez – se, em direto, lhe fizessem o mesmo e dessem voz a cidadãos e dirigentes que, diariamente, lhe chamassem “porco” e “fascista”?


 


Curiosamente, os canais que podiam dizer e transmitir tudo isto eram os mesmos – são os mesmos – que naqueles dias e ainda hoje reclamam “liberdade de expressão”.


 


Estas televisões privadas já tinham mostrado os seus propósitos quando do golpe de Estado de 2002. Apoiado de forma mais ou menos assumida pelos Estados Unidos, o golpe durou dois dias. Tempo suficiente para que Chávez fosse derrubado por gente do aparelho militar e regressasse em seguida pela força de largos milhares de venezuelanos que cercaram o palácio de Miraflores exigindo a reposição da normalidade… democrática.


 


Durante essas 48 horas, os canais privados, nomeadamente a agora tão falada RCTV, pura e simplesmente não transmitiram o que se passava nas ruas. O golpe de Estado estava em curso, pessoas eram mortas em Caracas, a violência imperava. Nessas horas, os canais ofereciam à audiência… desenhos animados. O cerco dos apoiadores de Chávez ao Palácio não foi notícia. Houve um silêncio informativo. Cúmplice dos acontecimentos.


 


Quem melhor queira perceber do que falo pode ver na internet um documentário da autoria de jornalistas irlandeses já premiado em 12 dos mais importantes festivais internacionais: A Revolução não Será Televisionada (Chavez – Inside the Coup, no original) é um retrato fiel e fiável do que se passou. E o que se passou incluiu manipulação grosseira de imagens televisivas, bem ao estilo de algumas manobras na Casa Branca.


 


O filme, ao melhor estilo das grandes reportagens televisivas, passou no Doc-Lisboa, em 2004. Talvez fosse importante repetir a dose. Não em nome de Chávez ou da Venezuela. Mas em nome da tentativa de exercer um jornalismo sério, livre e independente. A ver se alguns de nós, pelo menos, não se transformam em idiotas úteis.


 


A não-renovação da RCTV


 


Em mais de 20 países, alguns dos quais da União Européia, as licenças para emitir no espaço público relativas a mais de duas centenas de canais de televisão e rádios não foram renovadas nos últimos anos. Coisa pouca, não é?


 


Atualmente, porém, a grande notícia é o caso da “censura” e do fechamento da Radio Caracas Television (RCTV), um grave atentado, diz-se, à liberdade de expressão.


 


A liberdade de expressão, parece-me, não pode ser confundida com uma informação irresponsável do ponto de vista social, cultural e ético. O escritor Mário Vargas Llosa, insuspeito de ser um partidário de Chávez e do rumo seguido pela Venezuela escreveu há dias, no El Pais, um artigo sobre “a civilização do espetáculo” onde, a dada altura, refere o seguinte: “Chegamos a este disparate: a que uma das mais importantes conquistas da civilização, a liberdade de expressão e direito de crítica, sirva de imunidade para a violação da privacidade, a calúnia, o falso testemunho, a insidia e demais especialidades do jornalismo sensacionalista”.


 


A RCTV, tal como os outros canais privados da Venezuela, tinha uma concessão de 20 anos para emitir no espaço público. Todas as outras licenças foram renovadas, menos a relativa a este canal. A Venezuela tem mais de cem emissoras de rádio e TV locais, comunitárias e privadas, em relação às quais não foi tomada idêntica atitude. O governo da Venezuela, discorde-se ou não da atitude, considerou que a RCTV passou das marcas ao sugerir, num dos seus espaços informativos e de forma mais ou menos camuflada, o assassinato do presidente Hugo Chávez.


 


No tempo em que governavam na Venezuela os presidentes amigos dos Estados Unidos e das democracias européias, a RCTV foi suspensa várias vezes. Em 1980, por sensacionalismo. Em 1981, por difusão de programas pornográficos. Em 1984, acabou condenada por ridicularizar o presidente da República.


 


A RCTV continua, sem concessão


 


Na Venezuela, até a chegada de Chávez, os ministros de Informação dos sucessivos governos eram escolhidos após uma consulta aos donos dos grandes grupos midiáticos para não ferir suscetibilidades, tal como pude confirmar em conversas com estudiosos da área dos meios de comunicação na Venezuela.


 


Acontece, por último, que a RCTV não foi fechada, como se disse e escreveu. A RCTV foi impedida de continuar a emitir no espaço público. Mantém as suas transmissões por cabo, satélite e internet, às quais milhões de venezuelanos podem continuar a aceder.


 


Refira-se, a título de curiosidade, que Ignacio Ramonet, teórico da comunicação, e Harold Pinter, prêmio Nobel da Literatura, estão entre os apoiadores da decisão do Governo venezuelano. O diário britânico The Guardian – tão citado pelas elites cá do burgo – publicou recentemente uma notícia – que o burgo ignorou – com a lista das personalidades que apóiam a decisão do governo venezuelano relativa à RCTV.


 


Por cá, a entrevista de Mário Soares ao Expresso valeu-lhe duras críticas nas colunas do “achismo” nacional. E por quê? Na seqüência de recente visita à Venezuela, Soares veio relativamente bem impressionado com o rumo do país e com o próprio Chávez.


 


“Quer contribuir para fazer uma espécie de União Européia na Ibero-América para o desenvolvimento sustentável da região. É um projeto político, de cooperação entre estados soberanos, voluntário, ambicioso e, ao contrário do que alguns insinuam, não militar”, disse.


 


Confesso: para mim, tanto dá que Soares elogie Chávez da mesma forma que elogiava o amigo Carlos Andres Perez, antigo presidente da Venezuela, que foi destituído do cargo e esteve preso por causa da sua “brilhante” governação. Mas é curioso que quem tanto o incensa por nada o enxovalhe agora na praça pública dos jornais, insinuando senilidade, por manifestar uma impressão positiva sobre o que se passa na Venezuela.


 


É tudo pacífico no país de Chávez?


 


Não, mil vezes não – como diria o Almada. E disso e de outros dados falaremos na próxima e última crônica sobre o tema.