Robert Fisk: Iraquianos clamam por justiça contra britânicos

“A partir do momento que bati à porta da casa de Daud Musa al-Maliki, em Basra, eu compreendi que alguma coisa terrívelmente errada havia ocorrido com o Exército Britânico no sul do Iraque.


Eu já havia visto a brutalidade dos militares britânicos

De lá fui visitar Kifah Taha, violentamente surrado pelos britânicos diante de Baha Musa. A tal surra lhe deixou seqüelas nos órgãos genitais. Ele me disse que os soldados apelidavam os prisioneiros com nomes de craques de futebol — Beckham era um dos nomes que eles usavam — enquanto batiam neles ao redor dos campos de prisioneiros em Basra. Contou-me histórias de prisioneiros que foram forçados a ajoelhar em cascalho, que foram esmurrados e chutados nos genitais, nos rins, nas costas, ombros e forçados a colocar as cabeças dentro de vasos sanitários.



Tudo isso foi reunido com provas pelos ex-prisioneiros — e pelo pai de Baha Musa — para ser levado até a Corte Suprema, depois que uma corte marcial realizada após a morte de Musa resultou em apenas uma única condenação, com um soldado aprisionado por um ano e demitido do exército por “maltratar” prisioneiros.



Tem uma velha regra geral que eu sempre aplico a exércitos no campo de batalha. Se você descobriu uma história de abuso, pode apostar que existem cem outras histórias que nunca serão reveladas. Novas revelações de “desaparecimentos forçados”, seqüestro e tortura em prisões britânicas estão aparecendo em Basra. Tropas americanas estão sendo questionadas sobre matanças ilegais e torturas no Iraque. Se uma moça é estuprada e assassinada e sua família é massacrada por uma unidade americana no sul de Bagdá, como de fato ocorreu, quantos outros foram massacrados nas mesmas circunstâncias e que nunca descobriremos?



A atrocidade em My Lai, no Vietnã, foi revelada pouco depois de ter acontecido. Mas foi mais de 40 anos depois da Guerra da Coréia que soubemos que soldados americanos dispararam contra milhares de refugiados desarmados civis coreanos, porque temiam que soldados da Coréia do Norte estivessem escondidos no meio deles. Quantos ataques aéreos no Afeganistão e no Iraque mataram civis inocentes e jamais foram noticiados, porque jornalistas não estão mais a salvo para viajar para essas áreas remotas e perigosas?



Voltando um pouco, eu só descobri o que aconteceu a Baha Musa porque ainda era — em 2004 — relativamente seguro andar em Basra, batendo nas portas das pessoas, visitando hospitais, entrevistando parentes de mortos sem o medo de ser raptado ou de ter o pescoço cortado. A jovem esposa de Baha Musa havia falecido poucos meses antes dele, de um tumor no cérebro e suas duas pequenas crianças estavam sentadas na sala, diante de mim, me olhando como se eu fosse um criminoso de guerra. O avô delas, Daud, disse-me então, como já havia jurado no enterro do filho, “Para mim, ele não era apenas meu filho, ele era meu amigo”.



Sua indignação com o fracasso da corte marcial britânica, que não julgou ninguém pela morte de Baha, foi traduzida pelo seu juramento, um grito lancinante de um bom homem iraquiano que esperava que as tropas britânicas estivessem ali para protegê-los, não para matar seu filho. Ele chegou até mesmo a acreditar em um oficial que prometeu procurar Baha e dois dias depois foi chamado para reconhecer o corpo fraturado de seu filho.



Como nós fracassamos com essas pessoas! Que tipo de cultura criou esses jovens, que tratam os prisioneiros civis com tal maneira, xingando-os e — se seus documentos estiverem de acordo — chamando-os de “merda”, tratando-os como animais? Vieram de Glasgow, ou Cardiff ou Londres ou de alguma prisão — sim, muitos dos soldados britânicos são ex-prisioneiros, ex-convidados de Sua Majestade, que sabe tudo sobre regras na prisão e abusos na prisão.



Como os americanos torturaram homens em Abu Ghraib — sendo oficialmente permitidos a fazer isso, como nós sabemos hoje — sem perceberem que eles estavam rompendo as regras mais ordinárias de humanismo? Seria o resultado, talvez, desses jogos violentos, desses mundos virtuais documentados de forma chocante por Tim Guest em seu novo livro, “Second Life”, onde a dor não machuca, onde as vidas são somente “virtuais” e onde matar é tão fácil?



Sim, eu sei que os velhos disseram, que nossos caras estão lá lutando contra isso, arriscando suas vidas no fronte, ocasionalmente correndo sob o fogo de balas traçantes, em meio ao medo e ao drama de uma batalha, que são apenas algumas maçãs podres, etc. Isso é o que foi dito sobre o 1.° Batalhão, o Regimento de Paraquedistas, quando eles mataram 14 católicos inocentes em Derry, no ano de 1972. Primeiro Regimento? É o sal da terra! Talvez eles estivessem estressados depois de tanto perigo e abuso — mas o tal Primeiro Regimento era um batalhão da reserva na época, confinado às cercanias do Palácio nos arredores de Belfast.



E os soldados em Basra? Eles estavam surrando seus prisioneiros no conforto de seus acampamentos — Naturalmente, a velha prisão de Ali, o Químico — na relativamente segura Basra nos meses seguintes à invasão.



Agora está tudo em cima, naturalmente. O Iraque é um inferno dos diabos e os velhos clichês sobre “corações e mentes” estão tão esturricados como a areia do deserto. Talvez ainda existam corações e mentes dentro da Zona Verde de Bagdá ou em outras “zonas verdes” no Oriente Médio onde nossas forças ocidentais se abrigam de seus inimigos em versões modernas dos velhos castelos das Crusadas, que uma vez foram erguidos na Terra Sagrada. Mas a moral alta — se isso chegou a existir depois da invasão ilegal de Tony Blair e George Bush — há muito tempo que não existe mais.



Nós deixaremos o Iraque com todos os nossos sonhos em cacos, e isso será também legado aos iraquianos — homens como Daud Musa, levando a eterna tristeza da morte de seu filho até o fim de seus dias — para criar uma nova nação, sem a dor e a tristeza que nós abandonaremos para eles.


 


Fonte: The Independent