União Africana debaterá criação de Estados Unidos da África

A Cúpula da União Africana (UA) de 1 a 3 de Julho na capital ganense, Accra, coloca-se como difícil e controversa a julgar pelas divergências da liderança política do continente no seu posicionamento diante do tema central do encontro: a criação dos Es


Tudo indica que o impasse que começou a desenhar-se logo desde as Cúpulas anteriores quando a idéia federalista renasceu por iniciativa de Muamar Kadafi da Líbia, quase quatro décadas após a primeira tentativa de Kwame Nkrumah do Gana, exige agora sinergias redobradas para concessões mútuas entre os dois campos em confronto sob pena de desembocarem na divisão do continente.



Se a pertinência do projecto em si consegue fazer unanimidade, o mesmo já não acontece em relação à velocidade e à estratégia a adoptar, isto é, quando, como e por onde começar. Enquanto uns consideram África pronta para avançar já para a unificação, outros pedem mais tempo para o seu amadurecimento.



Mas este conflito parece não constituir surpresa diante da diversidade de assimetrias das sociedades africanas, desde a multiplicidade etnocultural e religiosa aos desequilíbrios das suas morfologias econômicas e democráticas.



Há também a tentação de extremismos ou tradicionalismos a que algumas mentes poderão não resistir na hora de definir critérios e defender aquilo que consideram suas identidades histórico-culturais e políticas, numa batalha que tem à sua frente fases nevrálgicas como a escolha da língua oficial, da laicidade ou não do Estado, do regime político e do sistema de Governo, entre outras.



Acresce-se a isso a inegável constatação de que em Àfrica a soberania nacional ainda constitui, na maior parte dos casos, uma reserva intocável e a noção de supranacionalidade estadual um tabu, pois são ainda uma espécie rara no continente líderes políticos com manifesta predisposição para ceder.



Esta realidade já foi por exemplo admitida por alguns países incluindo Angola, atual representante da região Austral da África no Conselho de Paz e Segurança (CPS) da UA. Com efeito, este país realçou, durante a última Cúpula Ordinária da organização, de 29 a 30 de Janeiro de 2007 em Addis Abeba, na Etiópia, que os Estados africanos ainda não estão suficientemente preparados para “sacrificar” as suas soberanias nacionais, a curto prazo, em nome de um Governo único.



Assim, a diplomacia angolana entende que, apesar de o princípio do Governo da União ser “bom e eceite por todos” é necessário ainda aprofundar estudos e amadurecer a idéia: “É preciso primeiro consolidar-se as estruturas nacionais, depois as regionais, para posteriormente apostar-se na integração continental”.



Este ponto de vista é partilhado por outros países membros das duas regiões geopolíticas a que Angola pertence — a Comunidade de Desenvolvimento da África Austral (SADC) e a Comunidade Econômica dos Estados da África Central (CEEAC) – que encaram os Estados Unidos de África como um objectivo “nobre e exequível mas que deve passar por uma estratégia gradual consubstanciada no reforço dos blocos geo- econômicos regionais”.



Um deles é a África do Sul, um dos pesos pesados da SADC, se não mesmo do continente, que também proclama que a idea da união nunca esteve em dúvida, mas o modelo de integração capaz de ajudar a acelerar o desenvolvimento económico e a fortalecer a governação democrática em África.



“Será que estão já reunidas as condições para a criação da União dos Estados Africanos com um Executivo capaz de garantir a harmonização de políticas com fundos próprios? Ou devíamos apostar mais na racionalização das comunidades econômicas regionais (CER) como seus alicerces? interrogou-se recentemente a chefe da diplomacia sul- africana, Nkosazana Dlamini Zuma.



É que os processos integracionais nas múltiplas comunidades regionais actualmente existentes acusam um acumulado défice de progressos, algumas décadas após a sua criação. Em todas elas, por exemplo, desde a SADC até à CEN-SAD (Comunidade dos Estados Sahelo-Sarianos) passando pela CEEAC, pela EAC e pela CEDEAO (Comunidade Econômica dos Estados da África Ocidental), os resultados já atingidos ainda deixam muito a desejar.



Aqui, algumas exceções vão para esta última que, no domínio da livre circulação de pessoas, chegou até à adoção de um passaporte comum em vigor desde 2003 e pensa evoluir para uma comunidade sem fronteiras até 2020.


No geral, há marasmos comuns que concorrem para o ceticismo da corrente prematurista ou gradualista, que milita a favor duma unificação política não precipitada mas como corolário da harmonização econômica, tal como sugerida por Angola e outros países incluindo mesmo alguns da CEDEAO, um bloco de 15 Estados onde, à semelhança da CEN-SAD, predomina a tendência contrária que inversamente vê na integração política um catalizador da união econômica.



Cabo Verde e a Costa do Marfim estão, por exemplo, entre os membros da CEDEAO que torcem também contra a instauração dos Estados Unidos de África, a curto prazo, numa ruptura com a posição assumida pelos “gigantes” regionais, a Nigéria e o Senegal, que consideram não haver mais tempo a perder para a materialização do sonho de Nkrumah.



Se o chefe de Estado senegalês, Abdoulaye Wade, tem afirmado publicamente estar disposto a aceitar a sua “despromoção” de Presidente da República a governador estadual num contexto de uma África federalizada, já o Governo cabo-verdiano diz peremptoriamente ser ainda “muito cedo” para se criar neste momento, e de forma brusca, os Estados Unidos de África e, em vez disso, defende também “uma integração africana em fases e de forma sustentada” .



“Não podemos colocar à frente dos interesses africanos situações institucionais que poderão prejudicar o desenvolvimento. Não é momento de criar os Estados Unidos de África mas sim de criar Estados mais fortes, com critérios de convergência”, advoga o primeiro- ministro cabo-verdiano, José Maria Neves.



Neves considera que os Estados Unidos de África “não podem ser criados no vazio” e cita como exemplo a União Européia (UE) onde, segundo ele, antes de se criar a moeda única em 1991, procurou-se a convergência econômica.



“Na África ainda não se chegou a esse patamar de entendimento nem há critérios de convergência mas sim disparidades grandes entre os países”, disse. “Por isso não fazem sentido, neste momento, os Estados Unidos de África apesar das transformações positivas e encorajadoras ocorridas nos últimos tempos no continente”, prosseguiu, numa alusão às perspectivas de um crescimento mais sustentado e da transformação da NEPAD (Nova Parceria para o Desenvolvimento de África) numa agência para o desesenvolvimento.



A estas inquietações, a Costa do Marfim, por seu turno, acrescenta os “vários problemas que ainda persistem no continente, como guerras e crises políticas e socioeconômicas” para justificar também a sua adesão à corrente dos que pedem mais tempo para se amadurecer a idéia enquanto se aposta no esforço regional.



“Trabalhemos para a consolidação das economias e deixemos os Estados Unidos de África para as gerações vindouras. Em vez da criação do Governo continental, se deveria consolidar primeiro os blocos econômicos regionais”, advogou a embaixadora da Costa do Marfim em Angola, Anne Ganhouret.



Insistindo que apenas o reforço das organizações sub-regionais proporcionará a África os meios com os quais vai dotar-se para falar em uníssono com os seus “adversários econômicos” do Norte, a diplomata disse que dificilmente se pode falar de uma União Africana coesa “enquanto não houver um mercado regional comum, as matérias- primas forem quase hipotecadas nos mercados mundiais e existirem micro-Estados que não conseguem absorver o que produzem”.



Mas o campo oposto, que entre os seus protagonistas tem no Senegal um dos seus porta-vozes mais destacados ao lado da Líbia, que assume a autoria da proposta, contrapõe que se hoje os processos de integração regional estão bloqueados, é precisamente porque não se deu ouvidos a Kwame Nkrumah quando lançou pela primeira vez, em 1963, a idéia do afrofederalismo, pelo que os que comungam desta visão devem avançar para a sua materialização.



“Meter a economia à frente da política, ou a unidade e a integração econômicas à frente da integração política é colocar a charrua à frente dos bois”, considera o ministro senegalês dos Negócios Estrangeiros, Cheikh Tidiane Gadio, para quem os Estados africanos que estão prontos (para a unificação) não devem ser penalizados pelos que não o estão, mas devem avançar para o Governo único e esperar que estes últimos a eles se juntem quando estiverem prontos.



Por isso, esta Cúpula de Accra tem temas bastantes para entrar nos registros como uma das mais importantes na história do continente. Além de se realizar na terra onde nasceu Nkrumah, primeiro presidente de Gana e hoje tido como o pai ou pioneiro da idéia do federalismo panafricano, ela tem o privilégio de constituir o primeiro verdadeiro teste para os líderes africanos no confronto dos argumentos que os dividem a favor da causa que os une: África.