“O Labirinto do Fauno”: Fábula para derrotar os fascismos

“No tempo em que todos se preocupavam com a morte, sobrava pouco tempo para pensar na imortalidade”, diz Ofélia, a protagonista de O Labirinto do Fauno. Nesse primoroso filme de Guillermo Del Toro, assistimos à vitória da guerrilha republicana

Alguém já foi à exposição dos murais que narram a vitória do levante húngaro estudantil em 1956? Quem já assistiu à ópera baseada na vitória da Comuna de Paris? Quantos foram à exposição fotográfica da gloriosa marcha de Allende sobre os restos mortais de Pinochet?


 


Quantos testemunhos há, na história da humanidade, seja ela estética ou política, moral ou científica, de quem bebeu vinho com Sócrates depois do seu desmaio sob efeito da cicuta?


 


Há inúmeras maneiras de descrever as necessárias ausências nesses acontecimentos. Será que do fato de que essas vitórias e esse encontro com Sócrates não existiram se segue que não podemos ir à exposição dos murais que narram a vitória do levante húngaro estudantil, em 1956?


 


Essa não é uma questão, dentre as inúmeras – pelo menos aparentemente -, sobre a finalidade da obra de arte, é claro. É uma questão oferecida como chave para a defesa do caráter de obra-prima do filme O Labirinto do Fauno (México/Espanha, 2006), de Guillermo Del Toro, que foi atacado em artigo de André Lux). E não porque o filme precise, evidentemente.


 


O Labirinto do Fauno é um filme extraordinário, cujo rigor formal resulta num trabalho impecável. Não deixa de impressionar (porque não se trata de uma surpresa) que o filme tenha sido bem recebido na Europa e muito mal recebido nos cinemas dos Estados Unidos e também no Brasil. O que torna o filme extraordinário é uma raríssima, tanto mais atualmente, perspectiva sobre a História.


 


Uma perspectiva que privilegia, platônica e em detrimento das promessas da velocidade, o sentido das formas e das escolhas que perseveram na, apesar e pela história. Uma perspectiva politicamente capenga, na América Latina, e moralmente destruída, nos Estados Unidos.


 


Talvez a escassez das atuais perspectivas histórias de que o cinema (também) parece estar cativo tenha produzido uma espécie de “sombra” sobre um filme como o Labirinto. Uma sombra que se traduz numa certa hostilidade, invariavelmente destinada aos possíveis excessos, imagéticos ou dramáticos, cometidos por Del Toro. Tudo se passa como se, dada a saturação imagética, jornalística e política da agenda da violência e da guerra, estas não sejam inteligíveis como fábula.


 


Em contrapartida, nenhuma fábula, ainda que aparente, merece respeito no universo narrativo que seqüestrou toda metáfora e tenta, incessantemente, levar com ela a lógica, na bagagem rasa do espetáculo triunfante. Gostaria de conseguir dizer que o gesto narrativo de Del Toro tem sua grandeza na inversão e no diálogo, deliberados e bem-sucedidos, entre uma narrativa fabulosa e uma histórica.


 


Uma inversão que talvez possa ser descrita com a lembrança de uma certa exposição de arte, realizada na Dinamarca, em junho de 1963, que contou com três murais, da artista e militante situacionista Michele Bernstein, companheira de Guy Debord, por ela chamados de “antiquadros”, narrando a “Vitória da Comuna de Paris”, a “Vitória dos Republicanos Espanhóis” e a “Vitória da Grande Revolta Camponesa de 1358”.


 


A lembrança da exposição “situ” faz todo sentido, se prestarmos atenção ao desvio entre fábula e história que Del Toro promove, no Labirinto.


 


A vitória fabulosa sobre o franquismo


 


Quem já viu o filme terá se perguntado, em determinada altura, o que o Fauno tem a ver com o malvado e caricato – é isso mesmo! – capitão fascista. O que faz o Fauno, no filme, afinal? Como nem se trata de uma fábula, nem de um filme infanto-juvenil, o sentido de um Fauno exigindo o cumprimento de tarefas de uma menina parece um expediente patético. Não o é.


 


O Fauno é uma versão grega (Pã), se assim se pode dizer, do nosso curupira. É um ser mítico longevo, porém mortal, que protege os seres da floresta, das matas e rios. Espécie esperta de protetor, o Fauno engana, apresenta charadas, causa o “descaminho” de caçadores no meio da mata, etc. Em todas as suas variantes, ele só se comunica com quem nele confia, aqui, na Espanha ou na Jamaica, e desde sempre, as crianças.


 


Pois qual a relação entre essa figura mítica e o resto do filme? O que pode haver de platônico nessa personagem, aparentemente mais próxima da dimensão irracional e evasiva da experiência, diante da opressão?


 


O filme se passa em 1944, cinco anos após o término da Guerra Civil Espanhola, considerada a última guerra romântica da história. Uma guerra por idéias de mundo e de humanidade, e de resistência à ocupação, ideológica e militar do fascismo, na Espanha.


 


A guerra que também marcou a América Latina e a resistência que iluminou os ideais mais generosos e românticos em praticamente todos os continentes, ao fascismo que condenou a Espanha a uma ditadura de quase quarenta anos.


 


Del Toro nos transporta para a resistência ao fascismo no pós-guerra civil. Para uma resistência organizada na floresta, onde estavam guerrilheiros republicanos sobreviventes e metaforicamente protegidos pelo Fauno.O ser mítico, então, não é parte de qualquer expediente evasivo, mas operador da “vitória” sobre o franquismo. Uma vitória de mesma natureza que aquela oferecida por Bernstein, nos seus anti-quadros daquele junho de 63.


 


Pois o que o diretor mexicano nos oferece é a fábula de uma vitória que “não ocorreu na história”, e na qual o franquismo é reduzido a uma caricatura de brutalidade que pretende subjugar a imaginação – e por ela será, ao final, derrotada.


 


Não deixa de ser eloqüente a denúncia de André Lux do aspecto caricato do personagem fascista. O personagem é o próprio fascismo (não o capitão), cujos homens, em comparação tão monstruosa, não podem ser outra coisa que não variantes do Coringa, o ardiloso inimigo do Batman ou coisas ainda mais patéticas e saturadas (como os representantes da elite que deu suporte ao franquismo, do padre glutão às esposas da elite militar presentes à mesa do capitão).


 


O realismo do filme não está no tratamento dos personagens, individualmente tomados. Daí porque não cabe reclamar profundidade nem, tampouco, realismo daquelas caricaturas. A fábula, tomada como fábula, nesse filme, é a que conta, como aparente pano de fundo, a vitória fictícia dos republicanos espanhóis. Uma vitória que talvez Bernstein, naquele junho distante, também tivesse em mente.


 


A vitória dos rastros de humanismo, na história


 


O realismo e a profundidade habitam, de modo desconcertante, a outra narrativa, com o Fauno e a pequena Ofélia. A contrapartida da vitória que não ocorreu, sobre os franquistas (é o caso de lembrar que o fascismo espanhol sobreviveu às derrotas nazi-fascistas impostas pelos soviéticos e pelos aliados), é a narrativa que nos é oferecida com a aparência de fábula e que porta o argumento do filme.


 


Dizer que o Fauno conduz a vitória do humanismo sobre a brutalidade fasci também será dizer que a sua relação com a criança nada tem de evasiva ou mesmo irreal. Esse filme não é a história de uma criança infeliz que inventa uma terra paralela onde habita um super-herói que salvará a todos e destruirá os malvados.


 


Quem viu o filme sabe que algo dá errado nessa aparente fábula infantil, na narrativa do encontro da pequena Ofélia com o Fauno. André Lux aponta com boa razão, aliás, que a pequena Ivana Branquero não parece estar à altura da dramaticidade exigida por uma decisão meramente evasiva, de uma criança buscando “fugir” da realidade.


 


Como não há tal fuga, não há tal dramaticidade e, bem dizer, ela não se impõe. No lugar do drama, quem sabe um bom argumento? Em vez de sangue, que tal a consciência? Em defesa da vida, vale o sacrifício? Se sim, qual? Em respeito aos que virão e à comunidade que vem, algum gesto é devido?


 


Quanto vale uma vida, em 1944 e hoje? Aqueles que repugnam a idéia do sacrifício próprio, que não aceitam o outro e combatem a igualdade estão mesmo mortos, na mesma cova que Franco, Hitler, Mussolini, Pinochet e Milton Friedmann?


 


Essas não são questões que se apresentam diante de uma fábula ou de uma história fantasmagórica. Parecem-se até, sem muito boa vontade, bastante próximas da agenda humanista que ainda resta – ou não?


 


Tornou-se um lugar mais ou menos comum a observação de Lacan, segundo a qual “o símbolo se manifesta, de início, como morte da coisa, e essa morte constitui no sujeito a eternização de seu desejo”. Finda a guerra, restam homens, consciências e futuro. É sobre essas coisas que a imaginação e o mito incidem – e devem incidir! Aliás, ontem, hoje e sempre.


 


O Fauno surge como função de retorno à caverna, lembrando a jornada de descoberta do que gera as aparências e as sombras, apresentada ao mundo por Platão. Pode aparecer como sombria e gótica essa jornada, para a pequena Ofélia.


 


Se levarmos a aparente fábula a sério, porém, poderemos ver que não é de sofrimento, mas de redenção; e não é de morte, mas de vida, que Del Toro nos fala. A menina, a infância, tem três tarefas para retornar e iluminar o reino de sombras em que, segundo Platão, consiste a realidade, tal como a vemos.


 


E qual é a operação de retorno? Em primeiro lugar, derrotar o parasita que está destruindo e que pôs a Espanha em guerra, o fascismo (cujo símbolo é o ambivalente e pouco aprazível sapo, parasitando uma árvore, metáfora desde sempre da vida, usada no filme), arrancar das suas tripas a chave para enfrentar outro perigo: o monstro que tem os olhos nas mãos e oferece a abundância como parte de uma trapaça, para devorar as crianças.


 


O perigo de deixar-se seduzir pelo abundante reino da ganância – o monstro mais terrível e nefasto do cinema dos últimos anos – tem como garantia o risco da desobediência, sem a qual já a infância não pode iluminar a realidade sombria, liberando-a das amarras da aparência.


 


A consciência que pode desobedecer adquire o poder do bem e do mal e responde por isso, redimindo os injustiçados, de ontem e de hoje. Nada de fabuloso, salvo as aparências. Não é por ser símbolo que não pode ser verdade, podemos aprender desde Platão.


 


Muito pelo contrário, se as formas sobrevivem às aparências, quer dizer: se mesmo diante do movimento de transformação, da mudança, da destruição, “há um certo ser do não ser” que reclama existência, conforme também Platão nos ensina, no Sofista, então a realidade se pode mostrar para quem vive sob as amarras, sim. Pode se apresentar como símbolo e, bem dizer, assim é bem melhor – ou mais belo, simplesmente.


 


O Fauno é a figura que estabelece as condições de possibilidade para derrotar o fascismo, em todas as suas caricaturas. Bem como a de, indo de par com essa derrota, as condições de possibilidade de transmissão, pela infância, de uma outra história. Uma história, nos diz Del Toro, humanista, solidária, em harmonia com a natureza e feita pelas consciências capazes de sacrificar-se pelo outro, pela inocência dos bebês, pela comunidade que vem.


 


Essa transmissão “na, apesar e pela história” tem a dupla “aparição”, no filme, de um bebê, logo após a união das duas narrativas. A fábula da vitória republicana sobre os franquistas tem na morte desses personagens o nascimento da luta republicana como símbolo de humanismo e dignidade; a aparente fábula do Fauno que vai reconduzir a princesa Moana para o reino subterrâneo tem na sua morte heróica e teológica o nascimento do símbolo da comunidade que vem, da redenção na terra, das opressões passadas, todas.


 


Como é símbolo, nos é dito ao final, está aí para quem sabe para onde olhar e ver os rastros da passagem das Ofélias, das infâncias, pelo mundo, “na, apesar e pela história, lutando pela imortalidade”.


 


É assim que podemos assistir, graças ao primoroso e impecável trabalho de Del Toro, à vitória da guerrilha republicana sobre Franco e visitarmos o reino dos “belchiores da humanidade”, em que a infância, como origem da história, se realiza na comunidade que vem.


 


Quem ainda não viu e gosta da humanidade, não sabe a maravilhosa jornada que o aguarda, em busca da verdade e da realidade, perdidas no reino da guerra abundante, que interdita o tempo e a procura do sentido, nas fábulas e na história.


 


A maravilhosa jornada que a imaginação e o mito podem garantir, se ainda há alguma garantia, para perseverarem em sua eterna condição de bebês da história.


 


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