Ignácio: ''Você aceitaria essa ocupação no seu quintal? No Leblon ninguém aceitaria''

Cinco dias depois do programa Olho no Olho, apresentado por Jandira Feghali, debater a violência no Complexo do Alemão, uma megaoperação conjunta da PM e da Força Nacional na comunidade deixou um saldo de 19 mortos. Nesta entrevista, o professor Ignácio C

No programa levado ao ar no domingo (24), o professor Ignácio Cano afirmou que a ocupação da PM representa, num grau ainda mais acentuado, a infeliz política tradicional de segurança pública: ocupação de um território, combates constantes, número elevado de pessoas feridas por balas perdidas, número muito alto de vítimas mortais e um obstáculo completo à vida das pessoas. E advertiu: ''Não há, ao menos na aparência, nenhum plano que mostre qual será o benefício extraído em troca desse custo tão alto''. O próprio Coronel Carballo admitiu que a PM reproduz o modelo há 20 anos, sem êxito.
 

Abaixo, a íntegra da entrevista



Jandira Feghali– Vou iniciar com uma pergunta ao professor Ignácio Cano de uma moradora do Complexo do Alemão, que nos enviou uma mensagem. Ele quer saber a nossa visão da Ocupação da Polícia Militar no Alemão. Ou seja, qual a nossa avaliação disso tudo, porque mora lá e se sente sem direito de ir e vir.



Ignácio Canno — Essa ocupação da PM representa, num grau ainda mais acentuado, a política tradicional de segurança pública, o que é infeliz porque a gente tinha a expectativa de que este governo ia ter uma abordagem diferente, mais pautada na inteligência e na investigação. Essa ocupação surge, a princípio, pela morte de dois policiais, e a reação é a ocupação do território, combates constantes, um número muito alto de pessoas feridas por balas perdidas, um número muito alto de vítimas mortais também e um obstáculo completo à vida das pessoas que moram lá, sem que haja, pelo menos na aparência, nenhum plano que mostre qual será o benefício extraído em troca desse custo tão alto.



Imagine, se há um problema de invasão na nossa casa e a polícia vem e começa a trocar tiros na nossa própria casa.Tudo bem que seja para nos proteger, mas se coloca em risco a nossa vida, alguma coisa está muito errado. Essa operação representa muito bem essa política, assim como as falas do governo também representa essa visão tradicional: vamos para uma guerra, vamos ganhá-la e não vamos sair. E a comunidade se pergunta: cadê o benefício que vai ficar para a gente? Provavelmente, porque essa ocupação a longo prazo é insustentável, a polícia vai acabar saindo. Pelo menos os grupos especiais, porque se ficarem presos dentro do Complexo não vão poder agir no resto do Estado. E o que vai sobrar para a comunidade? A idéia de que é possível eliminar o crime lá até agora se mostrou infrutuosa em muitas ocupações desse tipo. Então, a dúvida é muito grande, o custo é enorme e o benefício muito duvidoso.



Jandira Feghali — Na mensagem dela, coronel, ela diz: acho que a política de segurança devia ser feita sem matar os inocentes, porque sempre quem sai prejudicado é a comunidade.



Ignácio Canno— De preferência sem matar ninguém. Não precisa matar para reprimir ninguém.



Jandira Feghali: É que, na cabeça do povo, reprimir o criminoso faz parte. Eles absorvem matar os criminosos, mas o inocente não. Então, na medida em que há esse número altíssimo de vitimas mortais inocentes, a pergunta que eu faço ao Coronel Carballo é: vocês estão convictos de que essa é a forma de reprimir o crime organizado? Qual o balanço de vocês? É uma ocupação pensando numa pacificação depois? Estão convencidos de que essa é a forma?



Coronel Carballo— Não, não. Eu digo com bastante convicção — e se nada for feito à situação tende a se agravar — que a situação que observamos hoje é resultado de um processo histórico que teve início em meados da década de 1950, quando o País deixou de ser tipicamente agrário e, em 20 anos — de 1955 a 1975 — se transformou em um país de característica urbana e industrial. Nesse processo, muitas pessoas deixaram o interior e se deslocaram para as grandes cidades, sem ter, por parte do Poder Púbico, a preocupação com o planejamento estruturado, em termos de infra-estrutura e de serviços demandados por essas pessoas.



Esse processo vem crescendo a cada mandato, a cada gestão, e o que temos hoje é uma situação fora do controle: as comunidades populares estão, cada vez mais, se expandindo, sem que haja a preocupação em trabalhar a questão da ocupação ordenada do solo urbano. Vivem em espaços informais de convívio social, onde o Poder Público é praticamente inexistente. Ao longo do tempo, esse processo de omissão e permissividade do Poder Público, principalmente o local, viabilizou algumas práticas criminosas, sobretudo as ligadas à dinâmica do narcotráfico e de contrabando de armas. Eu diria que enquanto essa questão não for tratada como a uma questão de Estado, nós não vamos chegar a qualquer lugar. A Polícia vai continuar atuando com o objetivo de conter a violência, porque só ela trabalha em cima desses efeitos. A polícia entra antes dos esforços de prevenção primária, ou seja, das ofertas de saúde, educação, lazer e trabalho. 



Jandira Feghali — Se essa é a visão que a polícia tem, e sabendo que essa política social não está sendo feita, por que continua a agir dessa forma? Qual o saldo disso? Quantos bandidos foram presos? Qual o armamento apreendido? Se não está adiantando, por que a orientação é essa?



Ignácio Canno— A grande pergunta é se, de fato, as intervenções da polícia têm conseguido evitar a violência.



Coronel Carballo– É uma encruzilhada. É que, associado a isso, existe uma questão histórica da Polícia Militar: a PM sempre se comportou e foi vocacionada para atuar como uma força aquartelada. De 1964 para cá, ela assumiu uma função de polícia para a qual não estava preparada: a polícia atuando com foco no inimigo interno, orientada para estouro de aparelho subversivo…



Jandira Feghali — Em defesa do Estado e não do cidadão, a famosa ideologia de segurança nacional.



Ignácio Canno — Esse processo é muito anterior a 1964, vem desde a formação das polícias no Brasil.



Coronel Carballo— Mas já houve, antes de 1964, uma outra Polícia Militar que tinha caixa de socorros, o policial que trabalhava no quarteirão. De 1964 para cá, ela assumiu uma função para a qual não estava preparada e isso só se agravou, porque o foco em relação a proteção e segurança do cidadão foi totalmente desviado. E hoje nós temos uma realidade extremamente violenta, traficantes extremamente armados, portando armas de alto poder ofensivo. O caso da Vila cruzeiro, por exemplo: traficantes estavam provocando a vitimização de pessoas para tentar retardar a situação da polícia. E o que a policia faz? Sai desse território?



Ignácio Canno — Às vezes, é melhor sair do que provocar 30 vítimas de balas perdidas. Se não tem um plano claro de pacificação das comunidades.



Coronel Carballo — O plano não deve ser da polícia, mas do Estado. As pessoas sempre acham que a polícia tem a solução para todos esses problemas, quando ela é apenas parte da solução.



Ignácio Canno— O coronel está nos oferecendo várias explicações históricas bem fundamentadas, mas o que temos que discutir aqui é: dadas às condições, que são realmente muito negativas, o que podemos fazer? Essa intervenção, por exemplo, perpetua o modelo reativo, quando a gente cansa de falar que tem que haver um projeto pró-ativo de segurança pública. Tem que haver uma estratégia, uma meta. Mas o que a gente vê é: mata-se dois policiais, se deflagra uma operação; mata-se o segurança da família do governador, ele chama as Forças Armadas. É um modelo reativo extremamente violento que longe de conter a violência estimula a violência.



Alguns dados importantes mostram que o contexto do Rio é extremamente violento. No entanto, os indicadores apontam que a intervenção da policia é ainda mais violenta. Se a gente compara todos os números — pessoas mortas e feridas, policiais assassinados, acusados que são presos ou mortos — com outras capitais, como São Paulo, e com outras realidades também muito violentas, a policia do Rio está sempre num patamar superior. Nós temos uma cultura de confronto armado dentro da polícia que temos que desativar. E esse tipo de operação, aparentemente, não beneficia ninguém. Só provoca mais violência, policiais são vitimados, há vítimas de balas perdidas e, no final das contas, será que a Vila Cruzeiro vai ficar pacificada?



A gente tem muitas dúvidas sobre isso. Eu sei que é muito difícil reagir, sobretudo sob pressão da opinião pública. Há também toda cultura da honra, muito masculina, tipo fomos desafiados, temos que manter a moral da tropa, temos que responder ao crime, quando o que importa é o bem-estar daquela população. Se fosse no seu quintal, por exemplo, você aceitaria uma operação com 30 pessoas feridas por balas perdidas, algumas delas mortas? Não aceitaria. Se fosse no Leblon ninguém aceitaria.



Coronel Carballo– Eu concordo com você, acho que é um saldo que a sociedade tem que debater. Considero que essa questão só vai ser minimamente equacionada a partir do momento em que a sociedade delimitar seu foco para as razões, as causas dessa dinâmica, falar só da polícia é trabalhar só no efeito. Existem outras esferas de poder que tem que participar ativamente e diretamente desse processo, e não digo só na prevenção.  Como essas armas chegam no Rio de Janeiro? Como é que as drogas chegam no Rio de Janeiro? O Rio não fabrica drogas, nem armas.



Ignácio Canno– Mas, coronel, esse tipo de argumento da responsabilidade das esferas de poder, a gente já está cansado de escutar, a culpa é do governo federal…



Coronel Carballo– O que eu quis dizer é que a ação isolada, focada exclusivamente no trabalho da polícia, não vai resolver o problema. Realmente, nós temos taxas de letalidade policial muito altas no Rio de Janeiro. Agora, o Rio tem uma característica de violência armada por parte de traficantes que nenhuma cidade brasileira tem, talvez nenhuma outra cidade do mundo tenha, com edição da Colômbia. 



Ignácio Canno — Em São Paulo, você tem inclusive grupos e ações do crime organizado que vitimizam policiais deliberadamente.



Coronel Carballo — É diferente. Não existe essa carga em termos de armamento e de poder ofensivo. Tivemos um caso recente, o daquele engenheiro que foi baleado no posto a dois quilômetros de onde estava efetivamente o policiamento. Então, as armas são de alto poder ofensivo… A maioria delas são fuzis, AK 47…



Ignácio Canno— A maioria das armas apreendidas pela polícia são pequenas…



Coronel Carballo— Nós temos um cenário diferenciado. Se não houver um esforço conjugado dos três níveis — União, Estado e Município — nos espaços urbanos, a polícia vai continuar sofrendo esses feitos e a sociedade não vai ter como avançar nessa questão, porque o foco não pode ser unicamente policial.



Jandira Feghali — O coronel Carballo estava falando da necessidade da integração dos três poderes. É legítima essa questão? É. Mas como esse diagnóstico já está feito há muito tempo, o que a gente se pergunta é por que ele não acontece?  A gente já sabe há muito tempo qual é o papel da Polícia Federal, das Forças Armadas, da polícia do Estado, que a Prefeitura deveria ter assumido e que as droga e as armas não são produzidas no Rio de Janeiro. Mas, apesar de todo esse discurso que a gente ouve há muitos anos, a integração não ocorre. Só o caveirão continua entrando me as pessoas continuam pedindo socorro. Por que o integração, que a gente fala há muito tempo, porque não está acontecendo?



Ignácio Canno —As considerações do coronel de que a segurança pública não é só questão da polícia são completamente certas. É preciso que haja um esforço de prevenção e de integração social dos jovens dessas comunidades. Seria a solução de longo prazo. Mas há curto e médio prazo a gente precisa tomar umas medidas internas no sistema de segurança pública. E esse tipo de operação, como as feitas no Alemão e na Vila Cruzeiro, não ajudam a resolver nada. Só agudiza o problema. Coisa que a gente tem que enxergar: o grau de corrupção dentro do Estado é altíssimo, se a gente não encarar isso jamais vai resolver o problema da segurança pública.



Jandira Feghali — Você fala da corrupção dentro da corporação policial?



Ignácio Canno — Não somente, mas também dentro do Judiciário, do Legislativo, do Executivo. É como os policiais muito bem dizem, a corrupção não está só dentro da polícia. O problema é que você ter um corrupto com arma na mão é muito perigoso. Mas, se não resolver a questão da corrupção, nada vai ser feito nessa área. A gente tem que fazer um outro tipo de policiamento dentro das comunidades carentes — o próprio coronel chefiou um grupo especial muito bem sucedido, no Pavão-Pavãozinho — e não fazer operações tipo a do Alemão.



A gente também tem que encarar as questões estruturais e melhorar as investigações… A taxa de esclarecimento de crimes é baixíssima. De cada 100 homicídios, não mais de dez chegam a julgamento e têm sentenças.



Jandira Feghali — Você fala da impunidade?



Ignácio Canno — Sim. Isso é que tem que ser encarado.  Essa visão da guerra que o governador infelizmente está adotando, se espelhando no modelo colombiano da pior forma possível, é uma visão que só traz prejuízo para a sociedade. A gente embarca nessa guerra, mas essa guerra não pode ser ganha, porque as pessoas morrem e são substituídas, e a situação continua a mesma. Então, é preciso ter um plano e objetivos concretos, para além das questões sociais que precisam ser enfrentadas: a gente precisa mudar o tipo de policiamento e o modo de fazer segurança publica no estado.



Jandira Feghali — Coronel, uma coisa que sempre se falou aqui foi a necessidade da intervenção como política de Estado, todos nós concordamos com isso. O Poder Público tem que entrar com as políticas sociais, inclusive para ajudar as famílias, porque a criança sai da escola e se evade para aumentar a renda familiar. Mas há a questão do caveirão especificamente, que é um drama, um símbolo da criminalidade da pobreza. Como isso fica?  Houve, inclusive, a morte daquele menino, o Yuri, fica aquela frase que ele disse ''não me deixa dormir'', ou seja não me deixa morrer. Isso ficou muito marcado. Isso tudo tem uma dramaticidade muito grande, principalmente vindo da boca de uma criança e comove quem é pai e mãe. Portanto, por que essa história do Caveirão continua, já que também não protege os policiais? Eu sei que a polícia sozinha não resolve, mas é uma questão que está em pauta e nós precisamos resolver.
 

Coronel Carballo — Do ponto de vista técnico, o veículo blindado que o pessoal chama de Caveirão, na realidade, é um veículo de defesa, idealizado para salvar vidas. Mas, o que acontece? Esse veículo muitas vezes é usado de forma imprópria, justamente porque existe uma cultura interna na corporação que privilegia a idéia de força em detrimento da idéia de serviço. Ele é utilizado como veículo de ataque em vários momentos da ação operacional, única e exclusivamente por conseqüência de uma da cultura bélica da corporação que foi herdada lá trás como eu disse anteriormente…Como reverter isso?



Ignácio Canno — Eu queria só um pequeno aparte, para concordar com o Coronel Carballo. Muitos dos meus companheiros são completamente contra o Caveirão, mas na verdade, como o coronel, falou, se for bem usado, o Caveirão pode salvar vidas. O problema é a forma como vem sendo utilizado, e não o veículo blindado em si mesmo. Infelizmente, boa parte das campanhas e das pessoas que militam se posicionam contra o veículo, que virou um símbolo de uma política terrorista, quando, na verdade, temos que pensar em como usar o Caveirão para reduzir as vítimas dos confrontos e para salvar vidas.



Jandira Feghali — Outra coisa que não está bem explicada é a questão das intervenções da polícia nas comunidades sempre às 7h ou 8h da manhã, horário em que as crianças estão indo para a escola e os adultos para o trabalho. Por que isso?



Coronel Carballo — Existem condições táticas operacionais que desautorizam, a não ser em situação emergencial, qualquer tipo de intervenção policial a noite…



Jandira Feghali– Mas tiroteios só 7 horas ou 8 horas da manhã?



Coronel Carballo — A questão toda é pautada na seguinte lógica: a polícia atua com o intuito de neutralizar alguma ação ofensiva, por exemplo, no caso em que vimos aqueles jovens fazendo disparos contra — não deu para perceber exatamente contra quem –, mas certamente contra policiais e contra pessoas que estavam transitando naquele espaço de circulação. A polícia não pode também ficar meramente passiva diante de uma situação que ameaça comprometer a integridade física dos que estão passando no local. O que fazer? Nesse caso especifico, o veículo blindado te, que ir para o local e dissuadir a presença das pessoas que, no caso, estavam fazendo disparos contra a polícia, O blindado foi utilizado até para derrubar alguns muros que estavam facilitando aquele tipo de ação criminosa. E não houve nenhum tipo de vitimização, foi uma ação tecnicamente coerente.



E por que esse horário? Porque é o horário em que os policiais tem condições de visualizar melhor o que está acontecendo. O problema da escola tem que ser resolvido, parece que essa semana algumas escolas abriram, mas funcionando parcialmente, porque o problema é muito grave.



Jandira Feghali— Mas com duas horas de aula por dia, quase cinco mil crianças sem aulas.



Coronel Carballo — É porque o problema é muito grave, existem situações em que os jovens e as pessoas ligadas à dinâmica do tráfico estão criando obstáculos na via pública. Como desimpedir esses locais para que possa haver coleta de lixo regular, para que o caminhão que presta serviço de fornecimento e controle das linhas que fornecem energia possa trabalhar?. Aí, a polícia entra e ocorre o disparo.  E ela é obrigada a fazer o disparo também, até como medida de defesa. Mas o que a gente tem que discutir é como incluir outras ações e de que forma podemos contribuir, junto com as comunidades, no processo de ordenamento de uma ordem que não existe mais. Eu fico muito preocupado quando vejo jovens fazendo disparos de uma forma totalmente inconseqüente. O que fazer diante desse cenário — sair?



Jandira Feghali — O pior é que fica preocupante a inconseqüência dos tiros dos jovens e a inconseqüência dos tiros dos policiais…



Ignácio Canno — Tem que idealizar um plano de diferente de entrar atirando e disputar o território à bala.



Coronel Carballo— Que plano? O que fazer diante desse cenário?



Jandira Feghali — Fica aqui uma questão, Coronel, para o governo, quer dizer para os três poderes, para o Ministério da Justiça, para a Polícia Federal, mas particularmente para o governador: a gente tem que rever essa política de segurança, porque ela não condiz com as expectativas colocadas na própria campanha eleitoral e com as expectativas em relação a nova política de segurança do Estado. Eu sei que não é o senhor que formula a Política de Segurança. É uma política de Estado, e o governador precisa responder à população do Rio de Janeiro.



Coronel Carballo — Eu só acrescentaria, Jandira, o seguinte: o governador tem uma parcela de resposta, mas ele não pode responder sozinho.



Jandira Feghali — Mas é também uma questão que o governador tem que responder, logicamente se integrando aos outros níveis, mas o governador é o responsável maior pela Política de Segurança.



Jandira Feghali — Agora, uma pergunta para o Ignácio: o historiador José Murilo de Carvalho diz que, no Brasil, só há ''rigor com os miseráveis e com os pobres''. Não há igualdade perante a lei com as elites. Em um artigo, você fala do controle social sobre a polícia, por isso eu queria que você fizesse um comentário sobre as reflexões do historiador.



Ignácio Canno — Eu acho a colocação de José Murilo de Carvalho perfeita.O Estado foi criando para manter sob controle as populações subalternas e para manter os privilégios das classes altas. O maior exemplo disso é a prisão especial. Se você faz universidade tem direito a uma prisão diferente e melhores condições que o povão. Isso é um escândalo, um escárnio na cara de um Estado democrático, mas é que temos no Brasil, hoje. A partir daí, temos milhares de outros exemplos de como o Estado age diferente com uns e outros. A política de segurança pública tem que ser pensada, sobretudo para proteger as pessoas da Vila Cruzeiro e de lugares assim, porque são pessoas que não têm direito, não tem acesso à segurança privada e estão no pior dos mundos.


Ao invés de priorizar a guerra contra o crime, temos que priorizar a segurança dessas comunidades. Eu queria destacar que, para além das autoridades, a sociedade tem que refletir, porque a minha impressão é o seguinte: eu tenho muito respeito por várias pessoas que estão na cúpula da Segurança Pública do Rio hoje. Algumas delas, acho, são os melhores quadros que a gente teve há algum tempo. Mas eles entram e, ao invés de fazer o que a gente já conversou mil vezes — agir com planejamento, método e etc…–se vêem arrastados pela crise de ontem, por esse espírito de guerra. Parece que se o governador responder de outra forma estaria sendo fraco perante o crime –então ele diz: não vamos recuar, vamos manter a ocupação por tempo indefinido. Então, parece que eles se vêem arrastados por esse processo, e são arrastados talvez porque também uma parte significativa da sociedade mantém essa idéia da guerra e de que nós temos que nos proteger contra o crime indo àqueles locais e sendo o mais violento e truculento possível.



É preciso parar com isso, porque esse modelo não funcionou e não vai funcionar nunca. Nem que seja pela prova empírica do fracasso, nós temos que pensar outra maneira de fazer segurança pública.



Coronel Carballo– Eu concordo e iria até mais longe: essa prova já foi produzida há muito tempo, nós estamos reproduzindo essas práticas há mais de 20 anos. A desigualdade social associada à dinâmica de funcionamento do Estado é uma questão estrutural. A polícia faz parte de um sistema de justiça criminal que tem seus problemas, de natureza organizacional e gerencial, sobretudo na área de gestão. Na medida do possível, estamos tentando trabalhar essas questões. Agora, em qualquer lugar do mundo a atividade policial é uma atividade cara, demanda recursos Hoje, nós temos um policial desmotivado, porque ganha muito pouco. E um policial desmotivado, aquele que vai interagir com a comunidade, está sujeito a uma série de situações que comprometem a segurança dele e da comunidade.  É um policial obrigado a complementar a sua renda em atividades paralelas e isso se transforma em fadiga, cansaço e estresse. E a sociedade consente, porque vê no policial aquele profissional que tem o ethos ocupacional parecido com um gari social, responsável pela limpeza da escória humana. Essas discussões têm que ser colocadas, porque, enquanto não atacarmos essas causa, fica muito difícil sair dessa situação.



Jandira Feghali — Para nós, fica o absoluto convencimento da necessidade de repensarmos, mais uma vez, a política de segurança pública do Estado. Esse programa, em momento algum, generaliza a visão da corporação policial nem de todos os técnicos da segurança pública. Sabemos do esforço que bons policiais fazem, mas também temos que reconhecer os erros da policia. Sabemos da importância do binômio repressão e prevenção, mas precisamos encarar como política de Estado e dela faz parte um planejamento que proteja o cidadão e não o mate ou o violente. E que, finalmente, não tenhamos mais que ouvir, todos os dias, pedidos de socorro de parentes, amigos, filhos e de pessoas que perdem o direito de ir e vir.