John Bellamy Foster: Marxismo e Imperialismo

O Vermelho reproduz aqui entrevista realizada por João Aguiar, estudante de sociologia português, para odiario.info com John Bellamy Foster, editor da revista Monthly Review e professor de sociologia na Universidade de Oregon, EUA.

João Aguiar (JA) – Neste ano de 2007 passam 140 anos da publicação do Primeiro Livro de O Capital. Na sua perspetiva, qual a atualidade dessa obra magna do pensamento de Marx para compreender a realidade contemporânea do capitalismo?



Bellamy Foster (BF) – O objetivo de Marx em O Capital era explicar o capital como uma relação social no máximo sentido dialético possível e descrever as suas leis de desenvolvimento. Eu penso que ele foi bastante sucedido neste aspecto. Ele próprio afirmou que as “melhores partes” do seu trabalho eram aquelas que se referiam à distinção entre valor de uso e valor de troca, entre trabalho e força de trabalho, e a análise da mais-valia como independente das formas particulares de lucro, juro e renda. Estas contribuições serviram para separar a sua análise dos economistas clássicos anteriores. Apesar disso, creio que foi o conceito de taxa de mais-valia (ou taxa de exploração) que se evidenciou como a maior conquista de Marx. Anexo a isto, eu enfatizaria as suas noções da incessante transformação da produção (requerendo uma divisão do trabalho cada vez mais detalhada), o exército industrial de reserva (ou a população relativa excedente) e a concentração e a centralização do capital. As contribuições de Marx para se compreender o capitalismo contemporâneo são melhor apreendidas se se ler o Primeiro Livro de O Capital a partir do seu final, onde ele apresenta os resultados e pré-condições da lei da acumulação do capital (incluindo o exército de reserva, a concentração e polarização dos rendimentos e da riqueza, a concentração e a centralização do capital) e a acumulação primitiva. Hoje em dia, salientaria ainda o conceito de “falha metabólica”, pela primeira vez introduzido na seção final do capítulo sobre a Maquinaria e a Indústria Moderna, dado que se encontra aí a base da crítica ecológica de Marx.


 


JA – No Prefácio à primeira edição alemã de O Capital (1867) Marx diz o seguinte: “o país industrialmente mais desenvolvido mostra ao menos desenvolvido apenas a imagem do seu próprio futuro”. Poderemos deduzir daqui que Marx tinha em mente que o sistema mundial capitalista se tornaria mais ou menos homogêneo e uniforme e sem a profunda polarização a que hoje assistimos entre centro e periferia? Estaria Marx a pensar que o aconteceu na transição entre o feudalismo e o capitalismo na Inglaterra seguiria os mesmos passos no desenvolvimento econômico do resto do mundo?



BF – Vale a pena relembrar o contexto desta afirmação de Marx no prefácio de Marx. Ele estava a descrever aos seus leitores alemães que apesar da sua análise se basear no que se estava a passar no Reino Unido, o país capitalista mais avançado na altura, ela também se aplicaria à própria Alemanha. Aqui ele até cita as Sátiras do poeta romano Horácio (Livro 1, Sátira 1), onde Horácio na sua crítica à ganância dos ricos, dizia àqueles que pensavam que a crítica não se aplicava a eles “mudem o nome, e a história fala de vocês”. A Alemanha, afirmava Marx seguiria o mesmo caminho tipo básico de desenvolvimento que seguiu a Inglaterra, refletindo uma “necessidade de ferro” do capitalismo.



Esta passagem tem sido bastantes vezes citada para indicar que o pensamento de Marx sobre o capitalismo teria uma natureza linear de sucessão de estágios, em que todas as noções teriam necessariamente de passar. Todavia, Marx nunca aderiu a tal tipo de interpretações rígidas e nos seus últimos escritos apontou claramente para a tendência para o desenvolvimento desigual e destorcido e dando conta de caminhos alternativos de desenvolvimento. O mais conhecido desses caminhos alternativos é o chamado modo de produção asiático, que apesar de algumas insuficiências na sua conceitualização, é demonstrativo da descolagem de Marx em relação ao padrão simples e linear. A partir dos finais dos anos 1860 concentrou-se nas relações de dependência da Irlanda e da Índia, em particular, recolhendo ensinamentos dos movimentos de resistência desses países. No final da sua vida defendeu a tese de que a próxima revolução teria lugar na Rússia, então um país semi-periférico.



Assim, a tese “a história fala de vocês” claramente dominou o pensamento marxista até aos anos 50 do século 20. Naquela altura era claro (dado que o volume de produção industrial no mundo subdesenvolvido tinha passado de mais de 60% do total mundial em 1830 para apenas 7% em 1950) que a noção de que todos os países se deveriam desenvolver a partir de uma linha assente nos poderes capitalistas originais era falsa. Há 50 anos Paul Baran escreveu “A Economia Política do Crescimento” que introduziu uma nova aproximação marxista às questões do imperialismo e do desenvolvimento, sendo fonte de inspiração para os teóricos da dependência e do sistema-mundo. Baran observou que a visão de Marx sobre a trajetória dos países menos desenvolvidos foi idêntica à que sucedeu nos países desenvolvidos em zonas do globo como a Europa Ocidental ou as ex-colônias européias na América do Norte e na Austrália. Contudo, afirmou que a forma diferente como o imperialismo penetrou na América Latina, na África e na Ásia criou uma realidade diferente: um sistema imperialista em que os povos e os territórios da periferia estavam remetidos a uma condição de constante dependência. Assim, estas condições tendem a persistir (e a aprofundar-se), apenas podendo ser quebradas através de um corte drástico com o sistema seja por via das linhas de uma restauração Meiji no Japão (feita em moldes autoritários e que se fechou à maioria, para não dizer a toda a periferia) ou pela via de uma revolução.



JA – Quais foram as principais contribuições de Marx para a posterior edificação da teoria do imperialismo (Lênin, Rosa Luxemburgo, Bukhárin, etc.)?



BF – A análise de Marx acerca da concentração e da centralização da produção levou à criação do conceito de capitalismo monopolista que foi fundamental para autores como Hilferding, Bukhárin, Lênin, Baran, Paul Sweezy entre outros. Lênin definiu imperialismo de uma forma sintética de capitalismo monopolista, dando-lhe uma especificidade histórica ao que seria chamado de imperialismo clássico. Os escritos de Marx sobre o colonialismo/imperialismo, incluindo aqueles sobre o sistema mundial no contexto do capital industrial exerceram uma forte influência tanto sobre Lênin como sobre Rosa Luxemburgo. Teóricos marxistas mais recentes – Kenzo Mohri [Monthly Review, abril de 1979], Suniti Kumar Ghosh [Monthly Review, Janeiro de 1984] e Teodor Shanin [Marx Tardio e a Via Russa] – evidenciaram os componentes principais da dependência e da análise dos sistemas mundo encontrada nos escritos dos últimos anos de vida de Marx.



JA – Hoje em dia assistimos a uma onda de privatizações, destruição de serviços públicos, ataques aos direitos sociais, políticos e econômicos dos trabalhadores. De que forma podemos relacionar o neoliberalismo com o imperialismo? Qual a importância de se combinar ambos os conceitos?



BF – Os economistas marxistas vêem cada vez mais o neoliberalismo como a contrapartida ideológica do imperialismo, da financeirização do capitalismo (ver a este respeito o artigo sobre este tema no número de abril de 2007 na revista Monthly Review, e o ensaio “Capital monopolista e financeiro” de dezembro de 2006 da mesma revista). As realidades dominantes do sistema mundial capitalista (tanto no centro como na maioria dos restantes países) nas últimas três décadas têm passado pelas seguintes orientações: 1) a tendência para o abrandamento da taxa de crescimento (ou até mesmo casos de reemergência de estagnação econômica); 2) monopolização crescente com um crescimento continuado da força das multinacionais e grandes grupos econômicos; 3) a financeirização do capitalismo. Estes três fenômenos relacionam-se entre si.



A monopolização contribui para a estagnação e a financeirização é fruto da estagnação (já que o capital procura encontrar maneira de utilizar o excesso de capital-dinheiro que não encontra um retorno lucrativo suficiente em oportunidades de investimento na economia produtiva). Isto gerou uma nova fase do capitalismo monopolista que podemos referir como capital financeiro-monopolista ou capital global financeiro-monopolista. Daqui surgiu a ideologia neoliberal que reflete o papel liderante da finança neste período e dos aspectos distintivos da última fase da globalização, estando todos relacionados com a expansão da finança mundial. Este período é igualmente um período de declínio na hegemonia dos EUA. As hegemonias declinantes tendem a apostar crescentemente no poder financeiro e militar para tentar inverter a situação e para tentar reforçar o seu poder produtivo em decréscimo. Isto é certamente evidente na fase atual do imperialismo onde o objetivo é expressamente dito como o de criar um “Novo Século Americano”. A realidade subjacente a isto é de estagnação e de financeirização dos centros capitalistas. Isto não é produto apenas da mudança de ciclos de hegemonia mas sobretudo da lógica do próprio capitalismo monopolista.



JA – Lidamos com um mundo de guerras promovidos pelo imperialismo estadunidense no Iraque, Afeganistão, etc. Ao longo dos anos Paul Sweezy, Harry Magdoff e mais recentemente você e outros autores como Samir Amin têm escrito na Monthly Review contra as teses e argumentos de uma certa auto-proclamada esquerda, que tende a relacionar essas guerras imperialistas com a mera vontade de uma determinada Administração na Casa Branca e não relacionando George W. Bush com o sistema imperialista. É quase como se a guerra no Iraque tivesse sido causada apenas pela loucura ou pela vontade de um indivíduo. Nesse sentido, pode explicar-nos como é o imperialismo – enquanto sistema econômico, político e social – que é a causa real das guerras de invasão e ocupação no Iraque e no Afeganistão?



BF – Qualquer observador informado, seja de direita ou de esquerda não duvida, que estamos perante um imperialismo às escancaras. Outros entretanto vêem-no como meramente como uma política ou uma aberração atribuída aos neoconservadores ou aos militaristas. Muitas vezes também se sugere que um punhado de conspiradores ou uma cabala tomou conta da Administração estadunidense. O mais famoso defensor desta tese, que é muito popular entre os liberais, é Gore Vidal. Mas Michael Mann e muitos outros têm argumentado no mesmo sentido. Emergiu como a visão dominante entre os críticos liberais à guerra. Tal interpretação pressupõe que se deu um desvio na política externa americana e uma cisão no seio da classe dirigente. Nenhum dos casos é real. Uma explicação mais adequada foca aspectos que explicam cinco fatos centrais do nosso tempo: 1) estagnação econômica; 2) globalização financeira; 3) declínio da hegemonia dos EUA; 4) o desaparecimento da União Soviética; 5) uma renovada corrida aos recursos naturais. Isto criou um forte imperativo para o ressurgimento do imperialismo e um estímulo para que os EUA criassem uma efetiva hegemonia global, colocando-se no lugar de uma potência supranacional. Este impulso é apoiado pelas classes dirigentes estadunidenses (incluindo os elementos dominantes em ambos os partidos Democrata e Republicano) e tem um apoio transnacional entre os seus aliados (principalmente o Reino Unido). Este processo está fadado para o fracasso mas entretanto têm sido lançados potenciais destrutivos sem precedentes por todo o mundo. Num artigo da Monthly Review que eu e Brett Clark escrevemos para um encontro em Portugal, chamamos a este processo “império da barbárie”.



JA – No actual contexto como é que o imperialismo tem sido, ou não, contestado pelos intelectuais estadunidenses? Ao mesmo tempo, pode dar-nos um breve esboço do movimento operário norte-americano e que papel tem tido no movimento contra a guerra no Iraque?



BF – A maioria dos intelectuais norte-americanos apoia o imperialismo dos EUA. Contudo, os intelectuais liberais opõem-se a certas aventuras e são mais favoráveis a uma espécie de imperialismo econômico do que militar, geralmente rejeitando este último. Assim, existem contradições. Uma resposta de esquerda genuína existe nas franjas do sistema mas sem presença política real no momento, a não ser manter uma certa capacidade para ir levantando questões mais consequentes na praça pública. Mesmo assim existe um potencial para o crescimento de uma esquerda progressista e radical. A oposição ao imperialismo é sem dúvida a principal preocupação da esquerda radical dentro dos EUA, no centro do sistema imperialista. Mesmo sendo pequena essa oposição consegue fazer a diferença no covil do lobo.



O movimento operário estadunidense está em regressão no presente mas está enformado de contradições e têm aparecido novas potencialidades de crescimento à esquerda, prometendo novas fases de ascenso. Até agora o movimento operário não tem tido uma forte influência no movimento contra a guerra no Iraque. A maioria da população opõe-se à guerra – muitos deles associados ao partido Democrata e mesmo ao movimento operário. Mas muita desta oposição não é tanto uma oposição ao imperialismo mas mais contra um esforço de guerra falhado. Escusado é dizer, contudo, que a esperança nesta área, como em muitas outras, passa pelo ascenso de um movimento operário radical, possivelmente em aliança com o movimento anti-globalização, capaz de desafiar o capitalismo. Mas, neste momento, ainda existem poucos sinais nesta direção. Assim, a actual fase do imperialismo dos EUA irá continuar até que as contradições se desenvolvam ainda mais e novas forças opositoras surjam. Não será preciso acrescentar que tal fato é inevitável.