Ana Paula Bernardes: Meu surto na Flip. Emoções e sensações

Eu surtei na Flip. Resolvi parar tudo para contar. Confesso ainda não ter conseguido elaborar bem a sensação que me acometeu, mas, ainda assim, sou capaz de descrever parcela do meu sentimento.


 


Por Ana Paula Bernardes *

Tentando explorar o mercado editorial e trazer novas experiências e desafios para a Anita Garibaldi, eu parti para Paraty com três amigos do mercado, disposta a olhar tudo, a aprender, a viver e trazer experiências, para o nosso universo, ainda tão restrito no tema.


 


Confesso ter ido de peito aberto. Sem preconceitos e certa de, no mínimo, passar um final de semana agradável com companhias agradáveis.


 


Ao chegar, estacionei meu carro nos fundos da casa da D. Célia. Uma figura já familiarizada com o evento que de cara já nos bajulou em troca de supostos regalos que poderíamos trazer na volta.


 


Entramos na primeira tenda.


 


Eis que me deparo com um artista plástico, do qual tenho em minhas mãos um projeto de um livro que tento captar patrocínio há mais de um ano – e pouca, ou nenhuma atenção, consegui para este projeto. Orgulhei-me ao vê-lo tão badalado por todos, mas frustrei-me ao perceber que o meu povo não entendeu a importância da aproximação com a arte que ele nos propiciou.


 


Ali, vendo o Nuno mediar a mesa sobre Nelson Rodrigues, comecei a sentir a distância entre a minha realidade e tudo aquilo que me cercava. Sentada na última fileira da platéia, fui sentindo o palco se afastar cada vez mais de mim.


 


Eu surtei. E olha que estava sem uma taça de vinho na cabeça, ainda.


 


Na verdade, não foi bem um surto, mas um momento de tristeza pelas nossas incapacidades ou impotências, frente a uma realidade de limitações pessoais, políticas e intelectuais minhas e do universo que eu escolhi.


 


Vivi a frustração de um trabalho mal concluído ou ainda sequer andado. Vivi uma espécie de epifania lispectoriana provocada por um encontro.


 


Como os ovos do conto de Clarice, não foi a pessoa em si, mas os sentimentos que o encontro despertou.


 


Os ovos que caem e desnudam uma realidade.


 


Olhei aquele cenário todo, as pessoas, a paisagem e tive um sentimento profundo de conflito entre o sensacional do momento e a distância com o ideal.


 


Ao mesmo tempo que eu me regozijava com aquele debate, eu não conseguia deixar de pensar o quão distante estava tudo aquilo do que penso e acredito ser a democracia da cultura. Mas eu estava ali. Vivendo e sentindo e participando. Não é pra isso que a gente milita? Não é pra se meter no meio das coisas e disputar idéia? Não é para entender a realidade imposta e tentar modificá-la em prol de um projeto? Então, raios!, por que é que eu estava me sentindo tão só? Como se estivesse pensando pra mim, sofrendo por mim.


 


Me veio à cabeça todo o profissionalismo envolvido nesta festa, toda a grana toda a qualidade das discussões. E então a realidade: a serviço de quem? Com que função?


 


Estavam na mesa figuras renomadas da cultura, discutindo Nelson Rodrigues.


 


Olhei para os lados e percebi que aquela audiência não precisava daquela festa para ter acesso à nata da cultura, mas ainda assim a discussão era maravilhosa e interessante. Me veio à cabeça a D. Célia. A figura que emprestava os fundos da casa aos estacionamentos da alta burguesia da Flip que ali estava muito mais para ver e ser vista, com pouco ou nenhum interesse pelo quanto aquilo afetava a vida da D. Célia.


 


Senti-me chata, pouco interessante. Por que é que eu sempre tenho que dar uma cara de engajamento pra tudo? Enquanto todos riam e vibravam com o excelente nível dos painéis, eu sofria pelo momento ser tão restrito e elitizado. Será que eu não podia dizer para mim mesma: “Menos, Ana Paula! Dá para esquecer de tudo e se divertir um pouco?”.


 


Não. Não dá. Plagiando parte da fala de Nelson Rodrigues, eu sou eu e meus conflitos. No caso, minhas crenças, minha ideologia.


 


Não conseguia parar de pensar nos desafios que se impõem a quem quer democracia. Não aquela democracia do voto, da eleição, do momento, mas a democracia de fato. Aquela que garante a isonomia do acesso. Aquela que daria à D. Célia a condição de sair do seu casebre mal-ajambrado e empobrecido e atravessar uma única ponte para deleitar-se com Nelson Rodrigues, com Alan Pauls, com Paulo Lins, com o universo de gente indo e vindo pelas infinitas reflexões. Com o maravilhoso teatro “marginal” do Bortolotto, com a cerimônia pura e sincera do Bosco Brasil e com a interpretação de Paulo José, ao ler um texto brilhantemente, mesmo acometido pelo mal de Parkison.


 


Eis que meus olhos voltam-se para o meu universo. Senti-me mal por não conseguir fazer com que aqueles que comungam das minhas idéias entendam a importância de eventos e momentos como esse. Não é possível mudar a lógica da sopa sem meter a mão nos ingredientes e na panela.


 


Em meio ao mar de sensações e emoções, eu tive um maravilhoso encontro com o meu desafio: antes de disputar idéias com a massa, restam as disputas de idéia no interior da minha massa. Com o meu povo. Anos luz ainda de entender a importância de meter a mão nesta cumbuca e mexer estes ingredientes até que eles tomem uma forma palatável e eficiente para cumprir papel.


 


Estar ali Muito Longe de Casa com Ishmael Beah propiciou-me estar mais perto de casa com o Paulo Lins e seu Buscapé da guerra mais brasileira contra a exclusão.


 


Olhar aquele teatro fútil e superficial, ainda que maravilhoso e encantador, provocou os meus sentimentos. Gerou demandas muito maiores das que eu imaginava fazer parte daquele universo.


 


Ali, eu percebi que o desafio de publicar conteúdo é muito maior que o livro. Publicar conteúdo é fazer chegar às idéias. Repercuti-las, torná-las digeríveis e compreensíveis ao mais amplo espectro da população. É disseminar, é distribuir, é democratizar.
É, enfim, ajudar a D. Célia a atravessar a ponte.


 


* Ana Paula Bernardes é diretora-executiva da Editora Anita Garibaldi