Itaipu: conflito ou eqüidade entre Paraguai e Brasil?

As relações entre Paraguai e Brasil têm sido conflitantes em vários momentos da história, enquanto em outros têm sido cordiais. Durante a época da colônia, os bandeirantes de São Paulo realizaram periódicas caçadas de indígenas guaranis, protegidos nas re

Após a guerra, um limite que ficou pouco preciso foi o relativo aos Saltos do Guaíra, ou Sete Quedas do rio Paraná. O conflito alcançou um nível crítico na década de 1960, com a ocupação de tropas da ditadura militar brasileira da zona reclamada pelo Paraguai. Estava em vista o aproveitamento do imenso potencial hidroelétrico do rio Paraná, limítrofe entre Paraguai e Brasil a partir desse Salto. O conflito finalmente se resolveu com a Ata de Foz de Iguaçu (1966), na qual se reconheceu ao Paraguai o direito a um “justo preço” pela venda de excedentes e a dispor livremente de sua energia, ainda que reconhecendo ao Brasil a preferência de aquisição.
 
 


A ditadura de Alfredo Stroessner (1954-1989), apoiada pela sua similar brasileira, foi se consolidando com o tempo e isso tornou possível que em 1973, quando foi assinado o tratado de Itaipu, os conceitos de “justo preço” e livre disponibilidade da energia caíssem no esquecimento.



Pelo tratado de Itaipu, o Paraguai está obrigado a entregar ao custo de produção ao Brasil toda a energia própria que não possa consumir (atualmente mais de 90% da metade da geração total da hidroelétrica a que tem direito), sem possibilidade de vendê-la a outros países. O tratado estabelece uma ínfima “compensação pela cessão do direito de compra”, de tão somente US$ 2,3 por MWh, segundo o valor reajustado e vigente no presente momento. Esta compensação, não tem nenhuma relação com os preços de mercado e apenas se reajusta segundo a inflação dos EUA. Isso significa que se os preços do mercado energético (e elétrico) sobem, como tem sido nos últimos anos, os ingressos do Paraguai por exportar (ceder) sua energia ao Brasil são os mesmos, não importando quanto mais valha a energia.
 


Nenhum país cede o mais importante que tem ao custo de produção e menos no caso da energia de uma central hidrelétrica, cujos custos de geração são usualmente ínfimos. O custo do serviço de eletricidade de Itaipu tem sido artificialmente aumentado pelos roubos, cometidos pelas ditaduras militares paraguaia e brasileira, pela negativa das empresas elétricas brasileiras Furnas e Eletrosul de pagar o custo real do serviço em um primeiro momento (entre 1985 e 1996), o que fez aumentar o saldo da dívida, e pelos juros muito elevados e reajustes que aplica a Eletrobrás, a quase única credora de Itaipu, muito por cima dos níveis de mercado. A Eletrobrás cobrou desde um começo (1975) uma taxa de juros de 12% ao ano e desde 1997 uma taxa de 7,5% ao ano, mais o reajuste do dólar pela inflação nos EUA.
 


Diferente disso, o Paraguai conseguiu da Venezuela um crédito por apenas 2% ao ano de taxa de juros (sem reajuste) e do Japão – para o projeto hidrelétrico da represa de Yguaçú, em território paraguaio – a uma taxa de tão somente 0,75% ao ano. Inclusive a Argentina agora reconhece, segundo o Pré-acordo de Yacyretá, que nesse empreendimento não deve cobrar juros nem reajustes pelo que foi crédito do Tesouro argentino à Entidade Binacional Yacyretá, aceitando hoje que tal montante deve se considerar uma “contribuição” sem gerar juros, nem reajustes, e não um empréstimo.



Sobre a dívida de Itaipu, deve se realizar uma auditoria com profundidade, pois, com a desculpa da “binacionalidade”, nunca a Contraloría Geral da Nação de Paraguai teve acesso às contas de Itaipu. Uma obra que, de acordo com as consultorias internacionais, devia custar 2.033 milhões de dólares e acabou custando 20 milhões de dólares, executada em 85% por empresas brasileiras e financiada, em sua maior parte, pela Eletrobras, com juros tão elevados que, passados mais de 30 anos da assinatura do Tratado, não foram reduzidos, apesar de já ter sido pagos 25l milhões de dólares em serviços da dívida.
 


O caso mais emblemático é da dívida espúria, ocasionada pelas empresas brasileiras Furnas e Eletrosul, que durante dez anos pagaram menos que o custo da energia de Itaipu, levando 98% (e Paraguai 2%, também por debaixo do custo) gerando uma dívida vencida de 4.193 milhões de dólares que foi somada à dívida total, ao invés de ser paga proporcionalmente em função do consumo de cada país.
 


Será, em conseqüência, um ato de justiça eliminar a dívida espúria e toda a dívida gerada pelo superfaturamento das obras, assim como pelos juros cobrados por cima dos valores de mercado. Se, depois disso, ainda ficasse alguma dívida, essa deve ser paga com juros em níveis justos.
 


No entanto, em Itaipu, o fundamental para o Paraguai é o reduzido pago que obtém pela exportação de sua energia, a principal riqueza natural de que dispõe. O mesmo senso comum afirma que o Brasil não pode dispor de uma energia tão barata como a de Itaipu. O custo de geração real de Itaipu (gastos de produção, excluindo os benefícios) está hoje em torno aos US$ 2,5 por MWh, um dos mais baixos do mundo. Os gastos financeiros a favor da Eletrobrás estão artificialmente aumentados como já se indicou e, ao final das contas, são gastos que ficam no Brasil, pelo que o custo real de geração de Itaipu está basicamente constituído por sus ínfimos gastos de exportação. Segundo recentes licitações que tem realizado o governo brasileiro, as ofertas mais convenientes de geração elétrica baseadas em gás natural estão por cima de US$ 60 por MWh, um preço de mercado muito superior ao custo real de geração de Itaipu.
 


Em termos equivalentes de petróleo, a energia que o Paraguai exporta ao Brasil (cerca de 38 milhões de MWh por ano), equivale a 220 mil barris de petróleo por dia, uma quantidade considerável de energia.



Todo o petróleo que o Paraguai importa agora está em torno de 30.000 bpd, a sétima parte da hidroeletricidade que exporta ao Brasil. Porém, enquanto o Paraguai recebe, por ceder a imensa quantidade de energia que exporta, menos de US$ 90 milhões por ano, deve pagar por importar a sétima parte dessa energia (petróleo) um montante de US$ 750 milhões por  ano, como indicam as cifras oficiais. Ou seja, por exportar sete vezes mais energia de que importa, o Paraguai recebe do Brasil a terceira parte (incluindo “royalties”) do que paga por importá-la. Assim, sendo o país exportador da energia de mais qualidade (hidroelectricidade), o Paraguai, se empobrece em US$ 500 milhões por ano, no mesmo momento em que os preços da energia aumentam em todo o mundo. É como se o Kuwait ficasse pior quando os preços do petróleo se incrementam. Ninguém pode justificar uma situação assim.
 
 


Nenhum país do mundo cede sua principal riqueza natural a um preço ínfimo, a menos que o obriguem a tal, ou que se trate de uma espoliação da qual não possa se defender, porque  está submetida a uma despótica ditadura, como ocorreu com o Paraguai quando foi assinado o tratado de Itaipu. Quando isso acontece, não demora a surgir um movimento que reivindique condições justas. A Venezuela, há muito tempo submetida às negociações do petróleo, recebe hoje o preço de mercado justo por seus hidrocarbonetos. A partir da posse de Evo Morales na presidência da Bolívia esse país também recebe um preço mais eqüitativo pelo seu gás.
 
 


Hoje governam o Brasil o companheiro Luiz Inácio Lula da Silva e o Partido dos Trabalhadores, em aliança com outras forças políticas progressistas. De acordo com os princípios solidários que defendem, têm a obrigação de permitir a revisão dos injustos termos do tratado de Itaipu com o Paraguai.
 
 
O que pede o Paraguai? Justiça. Receber um preço justo, relacionado com os preços reais de mercado, pela imensa quantidade de hidroelectricidade que exporta ao Brasil. O conceito de “justo preço” já fora aceito pelo Brasil na Ata de Foz de Iguaçu de 1966, precursora do tratado de Itaipú. Paraguai deve receber o que realmente vale sua energia e não uma ínfima “compensação” distante de todo critério de mercado, imposta sob a ditadura de Alfredo Stroessner pela ditadura militar brasileira, quando o povo paraguaio não podia defender seus interesses livremente.
 
 


As forças políticas e sociais progressistas do Brasil estão convocadas a compreender e assumir essa problemática, mais ainda num momento de mudança que vive o Paraguai. Fernando Lugo, apoiado pelo Movimento Popular Tekojoja (“igualdade”, em idioma guaraní), tem as maiores probabilidades de ser eleito Presidente da República do Paraguai em abril de 2008, como o indicam todas as pesquisas eleitorais. Tekojoja, com Lugo como Presidente, pretende encerrar o capítulo de corrupção, ditadura, desigualdade e atraso no Paraguai, iniciado há 60 anos e que, por muitas décadas, contou com o entusiasmado apoio da ditadura militar brasileira. O povo brasileiro tem uma dívida histórica com o povo paraguaio que, caso se alcance uma solução eqüitativa no transcendental tema de Itaipu, ficará inteiramente saldada e, assim, juntos poderemos iniciar um processo de verdadeiro desenvolvimento eqüitativo e sustentável, no marco da integração regional.



* Ricardo Canese é integrante do Movimento Popular Tekojoja