Regina Novaes fala da relação entre violência e juventude

A antropóloga Regina Novaes pesquisa temas relacionados a favelas há uma década. Considerada uma das principais estudiosas das questões da juventude no país, ela analisa, nesta entrevista, a crise do Rio e os efeitos da violência na rotina dos jovens,

O país vivenciou, recentemente, mais um episódio de violência, protagonizado pela polícia e pelos traficantes, no complexo do alemão, no Rio de Janeiro, com mortes de civis. Como preservar a sociedade civil numa guerra como essa?


Regina Novaes – Acho que a história está se repetindo. Houve boa intenção no começo, uma aproximação, a possibilidade de usar a inteligência, no caso do Complexo do Alemão. Mas as coisas são tão intrincadas, difíceis, a comunidade está sofrendo e os jovens estão morrendo por serem moradores daquele espaço, pobre e violento, e isso é muito grave. No Rio, têm setores que estão a favor, porque acham que essa é a forma, que não tem outra saída, porque a comunidade também é dominada e humilhada pelo tráfico. Então, quando ataca o tráfico dá a impressão que vai gerar um alívio na comunidade. Eu acho que aí é que está o grande problema, a forma como está sendo feito. Existe o despreparo policial, e a corrupção policial, que se explicitam nesse momento. É um paradoxo grande. Tem uma polícia que quer promover a segurança daquele espaço, onde durante tanto tempo, o poder público esteve ausente, mas essa presença acaba redundando contra os moradores, porque não há limites entre os atos legais e os ilegais. Por outro lado, dizer que a pessoa que morreu era bandido é uma forma sumária de falar em pena de morte, porque, nem sempre são bandidos, são jovens que estão sendo assassinados e, no caso de ser bandido, seria importante exercer o estado de direito, onde ele pudesse ser preso, julgado, condenado e não morto dessa forma.


 


Existe um meio termo?


Regina – Estamos passando por um momento difícil, como se as respostas estivessem desgastadas. Por exemplo, a palavra ocupação social é uma expressão que foi cunhada nesse espaço, o problema é ter a ocupação policial junto com a social, criar naquele espaço possibilidades de continuidade e de alternativas de trabalho, lazer, um espaço de convivência. Esse é o caminho, a fórmula pode estar desgastada, mas esta idéia, antiga, não foi colocada em prática ainda. Ter a possibilidade de a comunidade ser destinatária dos serviços de segurança pública prestados pelo Estado. Mas, o que acontece é que, ao invés de ser isso, tem momentos, como se fossem espasmos, e aí se coloca estamos em guerra. Mas, a vida cotidiana não muda, aquele espaço continua sendo o da carência em todos os sentidos – da saúde, do saneamento público, de calçadas, de espaços de convivência – ou seja, a ocupação acontece e depois as favelas são novamente abandonadas, sem investimento social, criando um ciclo vicioso.


 


A solução é fazer investimento social para valer?


Regina – É, mas investimento social para valer tem que ser algo que mude a forma de morar naquele espaço, um serviço de infra-estrutura estabelecido, que não seja uma coisa tão frágil, que acabe rapidamente. De repente, muda de governo e se  interrompe, a palavra chave, aliás, é interrupção. Começa, parece que as coisas vão caminhar, mas são interrompidas e a  vulnerabilidade continua até o próximo caso.


 


Ainda tomando a violência no Rio como discussão, tivemos, de um lado, os jovens do Complexo do Alemão, como vítimas, e, de outro, os jovens da Barra da Tijuca que agrediram uma empregada doméstica. Como você analisa essa ambigüidade no comportamento da juventude?


 


Regina – Nós vivemos numa sociedade com enorme desigualdade social e existem muitas juventudes. Há os que moram no asfalto, na favela, no campo, negros, brancos (…) embora seja o mesmo tempo cronológico, a gente diz que há juventudes, no plural, que é uma forma de abordar a diversidade da juventude. Ao mesmo tempo, existem traços que são comuns aos jovens num tempo histórico, que é a questão do ciclo de vida. Juventude é o momento entre a infância e a vida adulta, como se fosse um tempo de moratória social, e esse é um tempo onde se arrisca mais, o jovem tem adrenalina para soltar, disposição para aventura, correr riscos, em todos os níveis, algumas vezes até com crueldade. Esse traço une todos, podemos dizer que é um ponto comum. No entanto, apesar de perceber a disposição para o risco, tem uma diferença brutal entre eles.


 



No primeiro grupo, o que espancou a empregada, os jovens têm um enorme campo de possibilidades de acesso para escolher, enquanto para a juventude que está na favela, as escolhas são muito mais reduzidas, embora elas existam. Nem todos os jovens da favela optam pelo caminho do tráfico de drogas, há muitos que encontram formas de trabalhar, inovam, criam, encontram seu sustento, tem grupos culturais, uma terceira via, tem muito jovem na favela que tem outras escolhas, mas as opções são muito mais reduzidas.


 



A juventude é o
espelho da sociedade


 


No caso do primeiro grupo, o que leva o jovem a essa violência? Falta limite na educação, seja em casa ou na escola?


Regina – Às vezes, a escola foi repressiva, mas não o suficiente, não teve com eles (os jovens) um processo educativo, que os colocasse dentro da sociedade em que vivem, dentro do Brasil, de forma que aproveitassem a juventude para ser  criativos. E pode acontecer de, às vezes, tanto os pais como a escola, reproduzirem valores do ter e não do ser, da sociedade da competição. Esses jovens estão numa ditadura do consumo, e da competição, e ficam tensos com isso, mesmo estudando.


 


Em toda guerra há uma forte envolvimento de lideranças religiosas. Como você avalia essa questão?


 


Regina – A juventude é o espelho da sociedade. Nada que acontece na juventude não acontece na sociedade. Ao mesmo tempo, ser jovem nesse tempo, de alta globalização, de reestruturação no emprego, da insegurança de como vai ser o futuro,  faz com que a juventude seja não só o espelho da sociedade, mas um espelho agigantador dos problemas da sociedade (…).
Como já disse, a juventude é o tempo de construção de identidade, que a sociedade prometeu para a juventude que seria um tempo de moratória social para a transformação, para passar a vida adulta, mas esse tempo é muito menos de planejamento e mais de insegurança. A tecnologia tem um ritmo tão forte nos dias de hoje, que nem as carreiras podem ser bem planejadas, é um tempo muito duro nesse sentido.


 


Ao mesmo tempo, o progresso que separou a Igreja do Estado, e fez com que o Estado ficasse laico, e a religião fosse uma questão de foro íntimo, não aconteceu desta forma, porque hoje você tem as religiões mais enfraquecidas – há competiçao até mesmo no campo religioso – mas, ao mesmo tempo, no mundo inteiro, as grandes religiões são chamadas a interferir nas questões de violência, de guerra, discriminação. Quero dizer com isso que a religião não é questão de foro íntimo, porque o Estado não deu conta de promover o bem comum, então as religiões são evocadas para se colocar no espaço público toda vez tem uma questão de violência.


 


O jovem vive num tempo de mercado trabalho mutante e restritivo, de violência exacerbada, por um casamento cruel entre o tráfico de drogas, que é internacional, maior que nosso país, onde as democracias locais não dão conta, porque essa questão extrapola as fronteiras e tem, ainda, toda a questão da indústria bélica, e o despreparo das policias. Mas, retomando o que eu dizia, ser jovem nesse tempo, significa também ter medo de sobrar e morrer de forma precoce e a religião torna-se um caminho para buscar o sentido da vida, uma busca existencial. A diferença dessa geração para gerações passadas, em termos de juventude, é que vivemos num país católico, onde a grande maioria é batizada e, esse ato, no passado, representava uma forma de entrar na sociedade, os jovens seguiam as religiões de família e uma minoria tornava-se ateu, através de uma adesão ao marxismo, a uma causa social, existencialista, ou um movimento intelectual, que buscava na política, ou na filosofia, uma forma de dar sentido a vida. Esta geração não tem mais fortemente a opção por esse movimento. Depois da guerra fria, não existe mais essa coisa da história como sentido maior. Então, é uma geração de muita busca. Nunca se teve no Brasil tantos jovens que não seguem a religião dos pais, muitos vão passar por várias religiões, viram evangélicos, vão para o camdomblé, seguem as religiões orientais ou partem para o esoterismo. O que mais cresce, em termos de Senso, é o sem religião, mas se for perguntar sobre isso, ele é sem religião, mas não é ateu, nem agnóstico, é alguém que busca o espaço religioso para encontrar um sentido para dominar seu medo de sobrar e de morrer de forma violenta e precoce, porque essa juventude conhece a morte de pares, vizinhos, irmãos, jovens que morreram. De outro lado, há jovens, como no caso dos da Barra, que saem atacando as pessoas, porque acham que, pelo fato de serem jovens, podem fazer isso, a morte está longe.


 



A religião torna-se
um recurso cultural


 


A pergunta que se faz é: até que ponto essa busca no campo religioso não está ligada a uma vivência juvenil, que é mais cheia de questões e perguntas do que em outras gerações. De uma maneira geral, o que se esperava – que a ciência fosse caminhar, o Estado fosse separar da Igreja, a religião fosse de foro íntimo – não aconteceu. O Estado não dá conta do recado, os próprios jovens buscam diferentes religiões, ou seja, a juventude vive num campo religioso plural, e experimenta mais. Se voltarmos no ponto da favela, existe, dentro da favela,  um crescimento enorme do pentecostalismo, porque os pentecostais têm várias denominações e pastores do local. A pessoa que se converte esquece o passado, começa uma vida nova, e isso torna-se um recurso cultural, permite recuperar a dignidade, permite a possibilidade de sociabilidade, de certo lazer, de se arrumar no domingo. A roupa marca sua diferença. Outra coisa importante são os festivais (gospel, rip hop) e os jovens começam a estudar. Então, tem uma série de recursos que são colocados, que não são ideais, mas fazem parte de respostas que essas comunidades estão se agarrando, por isso não pode dizer que não é bom.


 


A escola prepara o jovem para conviver com a violência dos dias atuais?


Regina – Quando se fala em escola, primeiro, tem que destacar que existem dentro do sistema escolar professores e diretores  muito dedicados, que acreditam na educação e dedicam a vida inteira para isso, dedicados a causa. Outra coisa que quero destacar é que, para o jovem que está fora da escola, não estar na escola é uma carência, porque a condição juvenil é poder estudar, ter uma chance, é um ideal, eles gostariam de estar dentro da escola, ela é muito importante para identidade desses jovens.


Agora, avaliando a realidade, nos últimos tempos, houve um divórcio muito grande no casamento entre a escola e o trabalho. Esperava-se que fosse promissor, mas, a escola mudou muito pouco, oferece um currículo distante, separa teoria e prática – o aluno pode ter uma aula de física sofisticada e não saber trocar uma lâmpada –, e a escola tem que rever isso, fazer um recasamento dessas duas coisas e rever os tipos de carreira, o ensino profissionalizante, preparar para novas ocupações, para que a juventude possa reinventar o mundo do trabalho, criar novas formas de empreendedorismo. A grande questão no mundo de hoje é que a escola não é o único lugar de educação. É preciso fazer uma revisão de paradigmas e isso tem que acontecer rápido e de forma profunda.



A construção de
uma nova escola


 


Existe algum movimento no país nesse sentido, para a construção de uma nova política pública para a educação?


Regina – Tem algumas experiências em escolas de classe média, onde já se pensa outra forma de ensinar. Neste governo,  esse acúmulo de experiências localizadas das ONGs, escolas particulares, foi incorporado e está se tentando, mas é muito difícil, porque vem com idéias novas e uma estrutura antiga, então, muitas vezes, a própria estrutura rejeita essas coisas. Mas  há um movimento subterrâneo colocando essas questões e se empenhando, inclusive, para que a questão da educação seja modificada desde a alfabetização até a universidade. É um paradigma novo, que precisa mudar. A família mudou, os arranjos familiares, hoje, são outros, existe a adoção de crianças por casais homossexuais, ou seja, novos laços familiares. E  a escola? A escola nesse processo todo está precisando dar uma virada, novas formas de aprendizado, novos espaços, o que fazer com quem perdeu a escola, que está fora da escola?


Participei do PróJovem – programa nacional de inclusão de jovens – e considero uma boa semente, mas como toda semente depende muito do terreno onde cai. Em alguns lugares, a gente chegava com a idéia e encontrava dificuldades de execução, mas é um  programa experimental, uma semente que pode ser melhorada, um caminho interessante para pensar formas de educação diferenciada.


 


O programa Um Computador por Aluno pode contribuir para melhorar esse processo, ou é preciso, primeiro, rever a estrutura existente para depois incorporar a tecnologia?


Regina – Dá para caminhar junto. No mundo de hoje, não pode haver uma hierarquia, porque, senão vai criando outros hiatos. A idéia do computador é fundamental não só para para aprender, ter recursos tecnológicos, mas principalmente pela idéia da rede, da internet do mundo virtual na comunicação, na produção criativa. Há experiências incríveis do uso do computador, dos sites, como, por exemplo, a do movimento Rip Hop. Não dá para resolver um problema e depois o outro, tem que estar junto.


 


Em que medida a cultura digital pode ser uma aliada no combate a violência?


Regina – A cultura digital pode subverter a ordem da escola mais tradicional, porque vai potencializar a escola. Não é escola ou cultura digital, mas acontecem ao mesmo tempo e podem ter influências mútuas, aí a coisa dá certo, porque o mundo de hoje é assim, não adianta colocar muros, ao invés de fazer fronteiras a idéia é estimular passagens. Com isso, tem que fazer  um processo de educação mútua e ouvir os jovens, que são jovens no tempo da cultura digital. O tamanho do mundo se modificou, a forma de estar no mundo se modificou, temos uma geração que é a geração da imagem, tudo é visto, e é importante ouvir a experiência juvenil. Esse intercâmbio, em termos de valores democráticos, é muito importante.


 


Qual o caminho (ou os caminhos) mais indicados para inserir o jovem na sociedade, evitando as desigualdades sociais e  políticas assistencialistas?


Regina – Um bom caminho é convocar os próprios jovens, e convocá-los com sua diversidade. Esse caminho pode ser interessante porque há uma tendência, inclusive internacional, da juventude como ator social, com demandas específicas. As pesquisas mostram que as grandes mudanças que ocorreram no mundo recaíram mais sobre os jovens. A sociedade precisa fazer com que o jovem tenha um diálogo entre si também para não escamotear as diferenças  do jovem da Barra e o da favela, mas acreditando que tanto um quanto o outro tem demandas com relação ao Estado, ao poder público, que são comuns. É preciso estabelecer uma pauta mínima de interesse de todos e necessário convocá-los para formar uma força  social, construir uma política que enxergue o jovem sob todos os níveis governamentais e construir espaços reguladores disso, como os conselhos municipais, estaduais e nacionais da juventude.


 


Como você vê as políticas públicas colocadas hoje? Funcionam?


Regina – A Secretaria Nacional da Juventude, o PróJovem e o Conselho Nacional da Juventude nasceram em 2005 e muitos programas já vinham de governos anteriores. No primeiro mandato do governo Lula deu para ter uma idéia do que seria a política da juventude. Ainda não há consciência de todos os ministérios da importância, não a do jovem, mas a importância de se ter paradigma na forma de pensar, construir essa política. Neste segundo mandato, há um grupo interministerial tentando perceber como os programas se complementam e se sucedem enquanto alternativas para o jovem. Se essa idéia for adiante teremos políticas com maior eficácia. Na verdade, há uma dinâmica dos ministérios que, muitas vezes, não se encontram na ponta, e se isso não acontecer, não será possível dar o próximo passo, que é a integração e complementariedade, um  esforço comum de diferentes organismos e ministérios de ver o que já existe e como integra.


 


Fonte: http://blogdodirceu.blig.ig.com.br/