Grandes nomes da história da música cearense destacados em série de reportagens do Diário
Grandes nomes que fizeram a música cearense e faleceram em um passado recente, deixando diferentes níveis de registro de suas obras, foram destacados ao longo desta semana pelo jornal Diário do Nordeste, de Fortaleza. Uma elaborada série de reportagens
Publicado 21/07/2007 12:09 | Editado 04/03/2020 16:37
A série de reportagens, intitulada ''Música e Memória'', foi publicada no Diário do Nordeste (acessível gratuitamente em www.diariodonordeste.com.br, link ''Edições anteriores'') e foi motivo de destaque no meio cultural cearense ao longo desta semana. Representantes da Secretaria de Cultura do Governo do Estado, da Fundação Cultural da Prefeitura de Fortaleza, do Conservatório de Música Alberto Nepomuceno e da Associação dos Produtores de Discos do Estado do Ceará elogiaram a iniciativa do jornal em relembrar grandes músicos cearenses, autores de obras importantes, nem sempre lembradas à altura de sua qualidade. A série de reportagens mereceu ainda pedido de voto de congratulações e pronunciamento na Assembléia Legislativa, por iniciativa do deputado estadual Lula Morais (PCdoB).
A seguir você confere a íntegra da última reportagem da série, publicada este sábado, 21 de julho. A matéria destaca outros nomes da música feita no Ceará, como os sanfoneiros Azeitona e Petro Sousa, o zabumbeiro Zé Pequeno, o violonista Didi Nascimento e o cantor Ronaldo Pedrosa. Há também uma análise da série, apontando as possibilidades de novos registros da obra dos músicos abordados pelas reportagens, além de artigos assinados pelo cantor e compositor Eugênio Leandro e pelo professor e pesquisador Gilmar de Carvalho, do Curso de Comunicação Social da UFC. Confira:
SÉRIE ESPECIAL
Grandes nomes da música
Fechando a série de reportagens especiais sobre grandes nomes que fizeram a música cearense e seguem na memória do público, o Caderno 3 destaca os sanfoneiros Azeitona e Pedro Sousa, o violonista Didi Nascimento, o cantor Ronaldo Pedrosa e o zabumbeiro Zé Pequeno.
Em diversas vertentes musicais, eles chamaram atenção pelo talento e deixaram lembranças no público. A série ´Música e Memória´, que nos últimos seis dias abordou a trajetória de alguns dos grandes nomes da música cearense, abre espaço hoje para outros importantes intérpretes e instrumentistas que se destacaram em um passado recente. Artistas como os sanfoneiros Valter dos Santos, o Azeitona, e Pedro Sousa, ambos representantes da tradição do acordeom – aquela consagrada pelo rei do baião, Luiz Gonzaga, e que teima em sobreviver. Mesmo tão sufocada, de um lado pela indústria do forró eletrificado, de outro por um forró pé-de-serra já distante da significação original do termo.
´O que se chama forró pé-de-serra, hoje em dia, não é bem o que era antes´, afirma o acordeonista cearense Adelson Viana, músico que assina arranjos e produção musical de dezenas de discos. ´O pé-de-serra original tem uma sanfona brejeira, bem nordestina mesmo. É assim que Luiz Gonzaga tocava e é assim que tocava também o Azeitona´, diz Adelson, sobre o sanfoneiro que, por anos a fio, animou as ´segundas-feiras mais loucas do mundo´ no Pirata Bar, na Praia de Iracema.
´O Azeitona tocava bem tradicional, baião, xote, arrasta-pé… Era uma sanfona autêntica, transmitia uma linguagem, um sentimento bem nosso, nordestino. É difícil achar quem toque de uma forma bem pura, como era a dele. E ele tinha um vozeirão bem característico do sertão, bem nordestino´, lembra Adelson Viana. ´A mesma pureza se refletia na pessoa dele´.
Conforme registrou o Diário do Nordeste em 18 de outubro de 2000, Azeitona faleceu no dia anterior, cinco meses depois de ter tido um acidente vascular cerebral pela segunda vez. O sanfoneiro, que gravou vários LPs e se apresentou no exterior, enfrentou dificuldades financeiras em seus últimos anos.
Outro mestre da sanfona foi Pedro Sousa, natural de Várzea Alegre. Falecido em 17 de setembro de 2000, deixou registro em CDs como ´Forró Bonito´ e ´Isso é que é forró´. A música foi herança paterna, manifesta em instrumentos como a gaita e o pífaro, antes de chegar ao acordeom.. Multiinstrumentista, não saiu de tempo quando a Jovem Guarda espalhou guitarras elétricas Brasil afora, nos anos 60, no conjunto Os Improvisados.
Segundo registros do também varzealegrense Ozanan Morais, Pedro Sousa gravou pela primeira vez no compacto duplo ´Castigando os Oito Baixos´. Com os filhos, formou o grupo Pedro Sousa e seu Conjunto. Viajou pelo interior nordestino, tocou na babélica São Paulo, fixou-se em Fortaleza. Seu último grande show aconteceu em 2000, no anfiteatro do Centro Dragão do Mar, ao lado de Geraldo Correia, Zé e Luizinho Calixto.
O Simonal cearense
Em casas noturnas que marcaram a capital cearense, brilhou por muitos anos a voz de um cantor de grande categoria. Seu nome: Ronaldo Pedrosa. ´Ele era simplesmente extraordinário. Cantava demais, tinha um timbre privilegiadíssimo e um repertório da melhor qualidade!´. Quem lembra é outro intérprete aclamado, Ray Miranda. ´Ronaldo era carioca. Quando vim pra Fortaleza, em 62, pelo Ivanildo e seu Conjunto, fui substituir o Ronaldo no conjunto do Alberto Mota. Meu passe foi comprado por uma geladeira, que eu tinha casado e precisava. Aí o Ronaldo formou o grupo dele, e cantava muito. Era o maior intérprete de Johnny Mathis´, acrescenta Ray.
O compositor Haroldo Ribeiro faz coro. ´Ronaldo era simplesmente perfeito, uma mistura genial de Wilson Simonal e Johnny Mathis. Não tocava nenhum instrumento, mas era um instrumento. Falava de quartas, nonas, sétimas, entendia de música´, recorda. ´Era uma figura da noite, alegre, e queria evoluir cada vez mais. Se cantasse hoje, estaria ainda melhor´, aposta, lamentando que nenhum registro da voz de Ronaldo seja conhecido. ´Até por falha minha, porque ele cantou no Chicote, uma casa que abri no começo dos anos 80 com o pianista Edison Távora. Mas, quando a gente tem a pessoa ali todos os dias, acaba deixando pra depois, não registrando. Figuras como o Ronaldo, ou o Dodô Vieira, grande guitarrista, o Wes Montgomery do Ceará, não tiveram registro´, resigna-se Haroldo.
Assim como Ronaldo se queixava, em matéria publicada no Diário em 8 de janeiro de 88, da situação dos músicos da noite. ´É difícil sobreviver na noite por aqui, porque o músico ainda não é valorizado como merece´, testemunhava o cantor, contando a própria história, do começo da carreira no Rio de Janeiro à mudança para Fortaleza em 1965, das apresentações na orquestra de Peter Thomas pelo Sudeste aos shows em boates de transatlânticos, passando pelos obrigatórios programas de TV de Flávio Cavalcanti e Cidinha Campos.
Situando seu repertório entre canções de Sílvio César, Djavan, Roberto Carlos e ´músicas francesas, americanas e italianas´, o intérprete mencionava, aos 37 anos, o sonho de gravar um disco. O cantor Lúcio Alves, apontado por muitos como um nome de transição entre a ´velha guarda´ e a bossa nova, era uma grande referência para Ronaldo. ´Para mim, ele é o grande mito da música brasileira´, declarou, avaliando sem concessões o cenário da música: ´Você alcança o sucesso por dois caminhos: tendo um padrinho forte ou submetendo-se à ditadura das gravadoras. Eu tentei gravar, mas me decepcionei com o sistema das gravadoras, massacrante e impiedoso com os artistas´.
Ronaldo Pedrosa foi encontrado morto em seu apartamento, na Aldeota, em 20 de janeiro de 1990, após cantar na noite anterior. As hipóteses levantadas pela polícia para sua morte variaram entre suicídio e assassinato, com farta cobertura das páginas policiais, que registram o arquivamento do inquérito, no mesmo ano, após investigações inconclusivas. A noite de Fortaleza perdia a voz de Ronaldo.
Do violão à zabumba
Outra figura lembrada por freqüentadores da noite de Fortaleza nos anos 80 e 90 é o cantor e violonista Didi Nascimento. Uma das atrações mais presentes em variadas casas noturnas de Fortaleza, mas com um ponto certo onde aportar: o Cais Bar, no burburinho do calçadão da Praia de Iracema de outros tempos.
´Didi tocava muito violão, vivia com um Gibson pra cima e pra baixo. E tocava guitarra também. Era mais instrumentista, mas também cantava e, embora não tivesse uma voz que se destacasse, agradava o público e era muito requisitado´, lembra o cantor e compositor Rogério Franco. O compositor Joaquim Ernesto, grande timoneiro do Cais Bar, espaço privilegiado para a música cearense, conta da chegada de Didi a Fortaleza. ´Ele veio de Boa Viagem, largou um emprego no BEC pra vir viver de música aqui. Quem me apresentou a ele foi o violonista Tarcísio Sardinha, ali por volta de 86, 87, bem no começo do Cais Bar. O Didi puxou um violão, e eu fiquei doido, porque ele tocava demais. Saiu de lá contratado´, recorda.
Ernesto lembra do prazer de Didi Nascimento em se apresentar nos palcos da noite. ´Ele tocou em bar a vida toda, passando por várias casas, mas nunca deixou de tocar no Cais. Todo mundo gostou dele logo de cara, pelo repertório, bem de acordo com aquilo que a gente gostava, João Bosco, Chico Buarque… E pela técnica dele no violão, que ele realmente se destacava. Quanto mais difícil a música, mais ele gostava, mais perfeito ele tocava´, ressalta Ernesto.
O único registro em disco de Didi Nascimento veio no álbum coletivo ´Pessoal do Cais Bar´, lançado em 1996 reunindo músicas inéditas de diversos autores cearenses, nas comemorações pelos 10 anos de atividades do espaço. ´Convidamos o Didi pra ter uma faixa no disco, e ele trouxe uma música chamada ´Abstração´, instrumental. Fico feliz de ter feito esse registro, porque ele era um amigão, um cara muito divertido. Só vivia rindo, contando piada. Um grande músico e um grande amigo´, diz Ernesto, sobre o violonista falecido em 25 de setembro de 1998, segundo amigos em decorrência de um ataque epiléptico.
O sorriso de Zé Pequeno
Também pelo sorriso é lembrado o zabumbeiro baiano Zé Pequeno, que acompanhou por muitos anos o sanfoneiro cearense Waldonys e sempre chamava atenção pelo riso de orelha a orelha. ´Eu tinha e continuo tendo um carinho muito grande por ele. Pelo músico e também pela pessoa, um cara excepcionalmente gente fina. A gente tocou muito tempo juntos, viajou, conviveu bastante. No dia a dia ele era sempre aquilo ali que ele mostrava no palco, aquele sorriso danado, sempre pra cima, sempre alegre´, testemunha Waldonys.
O zabumbeiro chegou a ser homenageado com uma música de Waldonys e Dominguinhos, ´Zé Pequeno no forró´, gravada pelo cearense em seu disco ´Aprendi com o Rei´. ´Ele ainda tava por aqui. Faleceu em 30 de abril de 2000, com uns 53 anos, de um infarto fulminante, na minha casa. Aquilo me marcou muito, porque ele morreu na minha frente´, revela. ´Zé Pequeno, veja só, tinha doença de chagas, o coração crescido. A única coisa que eu brigava com ele era pra largar o cigarro, que ele sabia que precisava, por causa da doença. Mas ele dizia que era assim mesmo, um homem pequeno do coração grande´, conta Waldonys. E de um sorriso difícil de esquecer.
Caminhos cruzados
A trajetória dos músicos destacados ao longo da série de reportagens é marcada por vários encontros, comprovando o compartilhamento de um cenário artístico por nomes de diversos estilos e inclinações. O lançamento de obras inéditas desses músicos é uma possibilidade real
Em seu único disco, Kesia gravou uma canção de Luiz Sérgio e contou com a participação de Edison Távora ao piano e nos arranjos. Também participou de um disco coletivo em cuja lista de intérpretes se encontrava Lily Alcalay. Ana Fonteles, por sua vez, gravou uma canção de Abreu Marinho, em material que pretendia reunir em seu segundo disco, que não teve tempo de concluir.
As coincidências entre os artistas abordados ao longo da série de reportagens publicadas esta semana pelo Caderno 3 comprovam os encontros de trajetórias e o compartilhamento de espaços que marcam o cenário musical cearense nas últimas décadas. Sinais, refletidos nas obras, de que, mesmo com características e estilos diferentes, esses artistas dividiram um mesmo sonho, de investir em seus trabalhos, ampliar seu público, alargar seus passos e se dedicar a fazer uma música de qualidade – por mais subjetividade que o termo possa sugerir. As lembranças divididas pelos colegas músicos, em dezenas de entrevistas compondo um painel de múltiplos pontos de vista sobre esse meio musical, também apontam para essa unidade, para um mesmo grande objetivo em comum. Ainda que buscado de formas tão diversas quanto a personalidade, a música e o ritmo de vida de cada um. Essencialmente, pode-se pensar em muitos cantos, com um só objetivo: romper as barreiras, superar o discurso das sempre-dificuldades, inscrever seu nome nessa história tal qual outros lograram fazer. Ouvir soar mais forte a própria voz.
No balanço da realidade, muitas vezes medida pelo duro critério do resultado despido de concessões, o saldo é de altos e baixos. E chega até nós na forma de relatos de cantoras responsáveis por verdadeiros espetáculos em bares e casas de show, mas que penaram para deixar seus poucos registros em disco. Na história de compositores capazes de entusiasmar músicos exigentes, mas cujas canções, em sua maioria, permanecem inéditas. Na lembrança de grandes instrumentistas não tão reconhecidos quanto seu talento faria por merecer.
Novas obras possíveis
Mas nem por isso deixou de valer a pena. Que o digam os feitos desses mesmos músicos, no prelo de superar as deficiências de estrutura e profissionalismo que, em grande parte, ainda persistem, contribuindo para que novos biscoitos finos permaneçam distantes do paladar de um público maior. Quanta música bonita foi feita – e ainda está pra se ouvir! Quantos shows foram apontados como memoráveis, momentos de renovação de nomes, recriação de possibilidades ou simplesmente de grande satisfação pessoal, que a música também é das artes a mais lúdica! Quantos discos ficaram prontos, alguns nem tão perfeitos quanto se sonhara, mas ainda assim guardando do esquecimento a obra de quem já se despediu! Quanta gente se embalou ao som dos nossos cantores, compositores, instrumentistas. Construtores de uma música que, se não ´estourou´ pelos parâmetros do sucesso de massas, cada vez mais relativo, nem por isso parou, entrou em crise, morreu.
Se a ausência de mais discos desses músicos é um termômetro das dificuldades para transformar criação em produção, um aspecto positivo, do ponto de vista de uma memória viva de nosso passado musical recente, é a possibilidade concreta de que venham à tona trabalhos inéditos dos artistas abordados ao longo da série. Pano pra manga é o que não falta, com a retomada possível de projetos deixados a meio caminho por esses e outros importantes músicos. Seria também uma forma de homenageá-los pelo que de melhor nos deram: seu talento, sua criatividade.
O pianista Edson Távora Filho anunciou o desejo de refazer o disco do pai, aperfeiçoando o único trabalho solo do acordeonista, produzido solitariamente em fins da década de 90. Os irmãos de Luiz Sérgio, relataram o projeto de produzir um disco coletivo, com vários intérpretes cearenses dando vida às canções do vencedor de festivais na virada dos 70 para os 80. Tim Fonteles, instrumentista e produtor musical, adiantou planos de lançar o material gravado por Ana em sessões em Fortaleza, no fim da década de 90, convocando músicos a criar novas bases para vestir a voz da cantora.
Ivan Lins relembrou o projeto, compartilhado com Fagner e Fausto Nilo, de um disco em homenagem a Petrúcio Maia. Relatou-se que a idéia não vingou em seu tempo original, após o falecimento do grande compositor cearense, em 1994, devido a problemas com a liberação das canções. Desta vez, porém, a cantora Bigha Maia, viúva de Petrúcio e responsável por administrar a obra do autor de ´Dorothy L´amour´, conclamou os artistas do Ceará a novamente gravarem Petrúcio. Por sua vez, os músicos que dividiram o palco com Lily Alcalay também apontaram a existência de material da cantora inédito em disco oficial. E o cantor Marcus Britto contou do antigo desejo de produzir um disco com vários intérpretes ajudando a levar para mais pessoas as canções deixadas, em sua maioria inéditas, pelo compositor Abreu Marinho, de partida tão precoce.
Não é pouca coisa. Fora outras possibilidades de registro, já seria material suficiente para um belo projeto, caminho para que essas obras passassem da lembrança ao concreto, finalmente chegando ao público. Como queriam seus autores.
DALWTON MOURA
Repórter
ARTIGO
Acordes e dissonâncias
Gilmar de Carvalho
O poema de Manuel Bandeira lamentava “o que poderia ter sido e que não foi”.
Falar do que não deu certo é reforçar a ideologia do sucesso. O que dizer dos artistas que não deixaram registros ou dos que ficaram no disco de cera ou no vinil e foram ou logo serão esquecidos?
A importância do registro, como documento sonoro, traz a possibilidade de se poder ouvir novamente e reler, em outro tempo e contexto, as velhas canções.
Essa memória pode sofrer lacunas e a canção ser fragmentada. Uma parte pode ser assobiada nas ruas, enquanto a outra integrará nosso repertório de lembranças de um tempo idílico, necessariamente, mais feliz e interessante que o presente. O passado tem a capacidade de fazer tudo parecer melhor.
Em que ondas ecoa a voz do Pequeno Edson?
Podemos evocar Keyla Vidigal cantando no auditório da PRE-9. Os adjetivos registrados pelos jornais davam conta de seu ar brejeiro, saltitante, e de suas sobrancelhas riscadas a lápis, o “rouge” realçando as maçãs do rosto e o batom escarlate gritando nos lábios carnudos. A orquestra, conjunto ou regional não estão mais lá (hoje se canta (?) com “play-back”).
Entramos na dimensão do álbum de fotografias, das velhas histórias que alguém nos contou, e parecem fora de sintonia no MP3.
Caímos no conceito da Indústria Cultural, com sua dosagem de redundância com novidade, linha de montagem dos sucessos descartáveis, que logo ninguém agüenta ouvir de tão desgastados.
Nosso “novo forró” segue a levada irritante do axé, como se essa fosse a Indústria Cultural possível, a nivelar tudo por baixo. A sensação de ouvirmos a mesma banda a cantar, indefinidamente, a mesma música. “Olha a barriguinha”, “Piriri, pororró”, “Sou bonito, endinheirado / tenho carro e sou casado”.
O que levaria uma cantora afinada e sensível como Kesia a cantar no “Ceará Grill”, assobios chamando o garçom, mesas arrastadas, tilintar de talheres, carne trinchada e a fumaça da churrasqueira?
Kesia ficou no vinil. Um disco que não diz de suas potencialidades, cortadas por uma morte não anunciada.
Ana Fonteles nos encantou com sua afinação, vinda de um Piauí e indo para os Estados Unidos em seguida, para só retornar no entardecer de suas possibilidades.
Lily Alcalay deixou um CD, mas precisou do auxílio dos amigos para lutar até o fim contra o câncer, “a tristeza das células”, diria o poeta.
Qual é a lógica do sucesso? Um instante pode sintetizar uma vida. Não é assim que pensam os necrológios da mídia, nos reduzindo a uma estrela e a uma cruz, duas datas, como se pouco importasse o que houve durante?
Sem cair no elogio do fracasso, artista seria aquele que exporia nossas dores, como Cazuza agonizando e se expondo ao sensacionalismo da revista “Veja”?
Petrúcio Maia, talvez o melhor de sua geração, veio morrer em casa, depois de ser “usado” ou se deixar usar como auxílio luxuoso de um piano por colegas “mais bem sucedidos”. Ele nos deixou um raro “Cheiro de Mato Verde”, para desespero da “lupiscínica” Dorothy L´amour.
Apesar do carinho da Bigha, sua viúva e também cantora, o CD de Petrúcio Maia não faz jus ao seu talento. Não teria sido ele o nosso Tom Jobim, tecendo harmonias, tocando, insone ao piano, seu/nosso “Pé de Sonhos”?
O que é mesmo o sucesso? Vender milhões de discos ou levar a música para outros limiares?
Hoje é fácil gravar e prensar um CD por aqui. Difícil é fazê-lo tocar. E não adianta o discurso vitimal de que a produção se concentra no sudeste. A Internet está aí, sendo possível liberar as faixas e recorrer à estratégia de guerrilha.
Não deve ser fácil ser artista nesses tempos de editais, mecenatos e investimentos no que gera mídia. Os carnavais fora de tempo, festivais pop & rock, shows no aterro(?) e festas de municípios, com muitas bandas de forró, tiram partido da renúncia fiscal, como conseqüência da falta de políticas culturais.
Violões ferem nossos corações. O velho artista dá canja na madrugada do boteco. A música está no ar. Aplausos.
Obrigado a Ramos Cotôco, Lauro Maia, Paurillo Barroso, Luis Assunção e Aleardo Freitas por terem deixado partituras. Como reconstituir o instante único da performance em que a voz foi emitida, o corpo gingou e “Moreira Filho e seu Conjunto” acompanharam “Paulo Cirino e suas Pastoras”?
Os festivais da canção “Universitário”, “Aqui no Canto”, “Nordestino” e “Crédimus” nos apontaram talentos que não chegaram a acontecer.
O “Show do Mercantil” (programa da TV Ceará) não guardou em “vídeo-tape” as apresentações de tanta gente perdida pelo meio do caminho. Difícil sustentar uma carreira, mais difícil ainda deve ser a convivência com o ocaso e saber o instante de sair de cena com dignidade.
Poucos se lembram dos “blues” rascantes, com uma levada rock, de Lúcio Ricardo. Mona Gadelha foi cantar em outra aldeia.
E se a vida continua, como cantou a canção popular, nem só de nostalgia vive a música, explodindo nas garagens, indo para os “soundtracks” e feiras da música, fundindo tradição e experimentação, copiando modelos, propondo outros, relendo e aprendendo, porque, se viver é difícil, cantar deve ser mais difícil ainda.
*Professor do Curso de Comunicação Social da UFC
ARTIGO
Não era só música, era um tudo
Nos anos 80, o que nos vinha era um embate com a ditadura da opinião, já que a opressão arrefecia. Não havia muitas brechas para se respirar. Tentávamos baixar a crista do forte opositor, que ainda persiste, a arte regida pelo mercado, satélite de mão única a mandar suas mensagens exclusivas, na figuração do maestro Medaglia. Quando a fórmula dá certo, é explorada até que renda um último níquel, manipulando incautos. Quem se negava a falar tal linguagem, simplesmente não existia.