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Rei do mambo, Cachao segue na ativa aos 88 anos

Há 70 anos Cachao criou esse ritmo junto com seu irmão Orestes. Hoje ele é uma enciclopédia de anedotas e um mito da música cubana que continua espremendo o contrabaixo perto dos 90 anos.
Por Carlos Galilea, do El Pais

Senhor Cachao? ''É quem lhe fala'', responde por telefone de sua casa em Miami. Tem 88 anos e é uma lenda: inventou o mambo com seu irmão Orestes e gravou as primeiras ''descargas'' (improvisações afro-cubanas). A Farewell Tour – 80 Years of Music é anunciada como sua última turnê. Ele pensa um pouco na resposta: ''Não, ainda não, na verdade não. Sinto-me bem e não posso deixar de ser músico''.



Como indica Fernando Trueba, Cachao é uma enciclopédia de piadas e anedotas. Lembra-se da pensão na Calle del Arenal, no centro de Madri, na qual se hospedou no início dos anos 1960, recém-chegado de Cuba. A menção do nome provoca uma sonora risada do outro lado da linha. ''Homem, imagine! Havia um padre que me dizia: 'Você tem de ir à missa'. Não me deixava em paz. Eu ia no domingo para lhe agradar, porque senão teria problemas com ele''. Eram tempos em que uma batina mandava muito. ''Aqueles dias foram dos melhores que passei na música, garoto'', diz com um ligeiro tom de nostalgia.



Tocava com Ernesto Duarte e a orquestra Sabor Cubano na rádio Madrid e em lugares como El Biombo Chino ou El Gallo Rojo, de Alicante.



Provavelmente ninguém falaria hoje de Cachao se não fosse por Andy Garcia. Quando o ator se aproximou dele, Cachao dividia um trabalho na Filarmônica com apresentações em restaurantes de luxo. Tocou em casamentos e batizados, festas gregas e judias. Até num divórcio. A música cubana não estava na moda e era preciso se conformar. Em Cuba, lá pelos anos 50, chegou a fazer parte de um ''mariachi'' [orquestra mexicana]. ''Com um 'sombrero' que me deram… As pedras eram da rua, imagine! Aquilo pesava. Eu pensava que tinha um edifício em cima. E me diziam 'Ria, ria'. E eu: 'Sim, como não'!''



Ressurgimento


 


Em 1993 Andy Garcia o resgatou do esquecimento, gravando seu disco Masters Sessions e rodando o documentário Como su Ritmo No Hay Dos. ''Ele estava fazendo O Chefão em Los Angeles e foi me ver tocar em San Francisco. Eu não sabia que era filho de um grande amigo meu'', diz Cachao. Garcia também não sabia que Cachao conhecia seu pai. ''Quando ele diz para Renê… 'Papi, queria fazer uma homenagem a um músico que aprecio muito, Cachao'. 'E onde está esse sem-vergonha?' 'Ah, mas você o conhece?' 'Rapaz, eu o conheço desde os anos 40'''.



Ele toca desde 1926. Como diria Bebo, um ''mestre'' de anos. ''Essa é a palavra''. Em 22 de setembro, no Carnival Center for the Performing Arts de Miami, será prestada uma merecida homenagem a ele. Uma curiosidade: Israel López Cachao nasceu em 1918 na casa que foi de José Martí, herói de Cuba, em Havana. Na Calle de Paula, número 102, bairro de Belén. ''Ali nascemos todos os irmãos. Nos dias 28 de janeiro [comemoração do nascimento de Martí] tínhamos de sair de casa porque todas as escolas desfilavam por lá. Voltávamos no dia seguinte. Isso todos os anos, até que em 1919 o governo nos mandou mudar, declarando a casa monumento nacional''.


 


Quando começou a tocar contrabaixo, quase não o alcançava. ''Tinha de subir em um caixote, imagine você'', explica. ''Quando cresci, disse a mim mesmo: 'Mas vejam em que problema me meti com esse instrumento, que tenho de carregar daqui para lá''', diz, rindo. ''Acontece que na minha família todo mundo é contra-baixista. Minha irmã, meu irmão, minha mãe, meu pai e eu. Os cinco. E agora percebo que nesses 40 anos que estou aqui em Miami há cerca de 35 baixistas na família''.



A invenção do mambo



Há 70 anos Cachao e seu irmão mais velho, Orestes, inventaram o mambo. Orestes, bebedor e mulherengo, era seu ídolo musical. E os dois – Orestes tocava violoncelo e Cachao o contrabaixo – eram membros da orquestra de Arcaño y sus Maravillas. ''O 'danzón' [dança típica cubana] era muito simples, e lhe demos uma virada de 180 graus. Quando se fez o mambo, na parte final do 'danzón', se fez com uma velocidade incrível e as pessoas não conseguiam dançar. Então concordamos em reduzir a velocidade. Depois Dámaso Pérez Prado aumentou a velocidade que tínhamos antes, porque já era outra época e se dançava diferente'', explica.


 


Orestes e Israel podiam chegar a compor cada semana 28 ''danzones'' para a orquestra de Arcaño. Entre os dois, calcula que criaram cerca de 3 mil. Um dia, em casa, escutando o rádio, tocaram um ''danzón'' que Cachao achou muito bom. Ao terminar, o locutor disse o nome do autor: Israel López Cachao. Não o havia reconhecido! Quando compunha com Orestes, fumava sem parar. ''Cinco maços por dia'', afirma. ''Uma vez me confundi e pus um cigarro na orelha e o lápis na boca. Fui um fumante compulsivo''. Parou em 1964 –  numa noite em que ficou sem cigarros em um bairro perigoso de Nova York e não se atreveu a sair para comprá-los – e também deixou o jogo. Nos hotéis de Las Vegas trabalhou durante nove anos com artistas como Paul Anka e Sammy Davis Jr. Pagavam bem, mas a cidade era uma tentação.


 


Em 1957 tinha organizado umas ''descargas'' históricas. ''As coisas que a gente inventa, sempre com idéias novas. Marquei encontro com os músicos depois do trabalho nos 'night clubs'. Às 4 da madrugada. E aí começamos a gravar até as 9 da manhã. Em cinco horas fizemos os números da primeira descarga. Então recomendei que eles vestissem roupas medievais, de ferro, porque depois que as pessoas escutassem essa loucura iam nos matar''. Mas gostaram. ''E todo mundo começou a fazer o mesmo. Eu fiz como experiência, pensando que não ia acontecer nada, e aconteceu''.


 


''Um músico de partitura não serve para isso. Porque apenas toca o que lhe dão, não é capaz de inventar algo'', afirma. Curiosamente, há músicos clássicos que olham com desprezo para os da música popular. ''Eu estava na Filarmônica e me diziam: 'Por que você toca essa porcaria?', E eu lhes dizia: 'Porque disso também estou comendo'. Você sabe o que é sair de uma ópera ou um concerto vestido de fraque e se fantasiar de mexicano no banheiro do lugar para tocar em um baile? Diziam-me: 'Lá vem o pingüim'. Era terrível. Tocávamos até as 3 ou 4 da madrugada. Os rapazes queriam brigar e às vezes era preciso se jogar no chão porque as balas passavam por cima. Era preciso rezar e tudo'', lembra, rindo.


 


Desde 14 de março de 2003, no 6.554 do Hollywood Boulevard há uma estrela com o nome de Cachao. Ele diz que não pretende escrever suas memórias. Mas uma vez começou a repassar as orquestras em que havia tocado e perdeu a conta na 248ª. Recorda os dias com Bola de Nieve no cinema de Guanabacoa, pondo som nos filmes mudos: ''O baterista se embriagou e, num filme do oeste, em vez de dar seis tiros com as baquetas deu 90. O público dizia: 'Rapaz, o que acontece? O revólver só tem seis balas!''' Em Cuba, com o quarteto de Machín, anunciava uma funerária: ''Que você não morra, mas se algum dia isso lhe acontecer venha para a Fuentes''. Até acompanhou em óperas Renata Tebaldi e Mario del Mónaco. E em zarzuelas como Luisa Fernanda e Pepita Embil, a mãe de Plácido Domingo. A um jornalista colombiano, contou que uma soprano que sentia o baixista sem o ritmo adequado lhe disse: ''Maestro, 6 – 8''. E ele respondeu: ''48''.


 


Nem a morte de sua mulher lhe tirou o bom humor. Ri com a facilidade de um menino feliz. ''É isso que sou. Agora tenho 38 anos, porque os 50 que vivi antes não contam. Estou começando outra vez. Meu pai foi assim e meu avô também. Gente de muita paciência. Sempre fui um homem muito tranqüilo. Quando vêm os maus momentos também. Para tudo dou uma boa saída. Estamos de passagem. Já quando vier o descanso definitivo… por mais que me digam que lá em cima há muitas orquestras, só estou pensando é se haverá trabalho.