Carlos Drummond de Andrade: na rota de uma pedra-poema
Por André Cintra
Quase oito décadas depois de sua publicação, No Meio do Caminho – o poema-fetiche, a pedra-poema – não pára de suscitar especulações. Escrita em 1924, a mais célebre composição de Carlos Drummond de Andrade veio a público
Publicado 21/08/2007 18:17
Mas qual analista, questiona Michel Haar, “pode explicar a fascinação sempre nova exercida por tal ou qual obra, ouvida, lida ou vista por nós dezenas de vezes? Ele estaria renunciando a seu ofício, pois teria compreendido por que a obra de arte ultrapassa de pronto todas as interpretações que dela se venha a dar”.
De qualquer forma, no ano de 1967, a Editora do Autor lançou Uma Pedra no Meio do Caminho – Biografia de um Poema, com seleção e montagem do próprio Drummond e estudo de Arnaldo Saraiva. É aí que o poeta mineiro ataca a discussão. De acordo com ele, seu poema “não pretende expor nenhum fato de ordem moral, psicológica ou filosófica”. Apenas quer “dar a sensação de monotonia e chateação, a começar pelas palavras”.
Não é incomum que um escritor se sinta impelido a dar esclarecimentos sobre uma composição sua, sobre a obra que escreveu, sobre as idéias que deixou no papel. Aldous Huxley esperou alguns anos para reler sua obra-prima, Admirável Mundo Novo, e escrever-lhe um prefácio autocrítico, em que analisa os vícios e as imperfeições da trama. Num caso mais radical, Oscar Wilde teve de explicar, sob juramento, os detalhes mais polêmicos de seus escritos. As obras Madame Bovary, de Gustave Flaubert, e As Flores do Mal, de Charles Baudelaire, também motivaram processos contra seus autores, acusados de subversão moral.
Em No Meio do Caminho ninguém viu crime algum. Mas, à época de seu lançamento, o poema chocou os mais puristas. “Entro para a antologia, não sem registrar que sou o autor confesso de certo poema, insignificante em si, mas que a partir de 1928 vem escandalizando meu tempo, e serve até hoje para dividir no Brasil as pessoas em duas categorias mentais”, assinalou Drummond.
Nunca ficaram muito claras as tais categorias, mas pode-se dizer que a nova incógnita não era mais importante que a notável pedra – o acontecimento súbito na trajetória do poeta. Em 1930, Drummond resolveu incluir No Meio do Caminho em seu primeiro livro, Alguma Poesia, fazendo perseverar a polêmica. Ali estavam, provavelmente, os versos mais conhecidos e provocantes da poesia drummondiana:
No meio do caminho tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
tinha uma pedra
no meio do caminho tinha uma pedra.
Nunca me esquecerei desse acontecimento
na vida de minhas retinas tão fatigadas.
Nunca me esquecerei que no meio do caminho
tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
no meio do caminho tinha uma pedra.
Do jeito que está, inamovível mas apavorante, monótona mas inesquecível, a pedra diz mais sobre o andarilho do que sobre a andança, encerra mais sobre o caminhante do que sobre seu caminho interrompido. Chega a parecer que ela emergiu de repente – Drummond se surpreende absurdamente. Seu olhar ora parece fazer mais e mais voltas sobre a pedra, ora parece fixar-se nela, como que buscando revelações.
É nas retinas que se formam as imagens capturadas pelo olhar humano, mesmo que essas retinas estejam “fatigadas”, como assume o poeta. Mas, ao dar-se conta da pedra, ao perceber algo incomum na sua trajetória, esse fato converte-se num “acontecimento”.
Não por acaso, esse personagem abstrato do poema se assemelha a várias outras “explosões” literárias. Trata-se de uma pedra que, mesmo parada, é avassaladora e marcante. Da imobilidade dela nasce uma metáfora candente e misteriosa, a ponto de o poema ter-se perdido das mãos do autor.
É nesse sentido que No Meio do Caminho pode ser associado a um trecho do Canto Noturno de um Pastor Errante da Ásia, composto por Giacomo Leopardi e publicado em 1831. Vagando sem cessar pelos campos, dando voltas consecutivas ao redor do rebanho, sendo quase que tragado pelo céu e pela lua, o pastor de Leopardi interroga-se:
Por que estes ares infinitos, este
Infinito profundo, sereno, esta
Imensa solidão? e eu, que sou eu?
Eis a sua questão, a sua pedra filosofal. Assim como a pedra é uma novidade explosiva no caminho de Drummond, também a indagação do pastor vagante consiste num irromper súbito e decisivo. E então, “que sou eu?”, questiona o pastor, sufocado por tanta grandiosidade, tanta magnitude, tanto mundo. Drummond se surpreende igualmente: por que estaria uma pedra no meio do caminho?
É uma pergunta implícita, que, no entanto, ele faz questão de não responder. Basta, a princípio, notar que a pedra se interpôs à sua frente. Seu caminho não é mais o mesmo – ou pelo menos não é tal como o poeta o vislumbrava. A pedra continuará fixa, imóvel, mas sua visão do mundo foi literalmente afetada, na mente e ainda na retina. No meio do caminho tinha uma pedra que, de tão inesperada e perturbadora, marcou a trajetória do poeta.
Muitos séculos antes de Drummond e Leopardi, foi o italiano Petrarca que se deparou com uma desses revelares petrificantes: “Tra la spiga e la man qual muro è messo?” Segundo Silveira Bueno, o sentido desse verso é que “no momento em que tudo parece estar obtido, surge inesperadamente um obstáculo de permeio”.
Camões cita o verso de Petrarca em Os Lusíadas, épico onde canta “o peito ilustre lusitano”, partindo da viagem da esquadra de Vasco da Gama às Índias. Para ilustrar o desafio que os navegantes encontraram no Cabo da Boa Esperança, Camões o personificou na figura do Gigante Adamastor. Era, sem dúvida, o maior obstáculo da viagem portuguesa, a pedra terrível no caminho ao desconhecido. Voltando ainda mais no tempo, sobressaem os primeiros versos de Dante Alighieri na Divina Comédia:
No meio do caminho de minha vida
Por ter-me desviado da estrada reta
Encontrei-me perdido na selva escura
Pode ser daí que Drummond tirou o verso que intitula e cadencia seu poema. A dúvida permanece, pois há um soneto, assinado por Olavo Bilac, que também se chama No Meio do Caminho. Esse impasse não está à altura do fetiche literário em torno da “pedra no meio do caminho”. A posição obstrutiva da pedra também não é tão importante quanto a surpresa que ela gerou e seu sentido enigmático. Seja uma descoberta ou um temor, um anseio ou um trauma, uma idéia fixa ou uma novidade, a pedra saiu das retinas do poeta e deu nova vista à literatura brasileira.
Versão de um texto publicado em 2003 no site da Faculdade Cásper Líbero