EUA em quadrinhos: por trás das várias faces americanas
Só neste mês, chegaram às bancas e livrarias Biblioteca Histórica Marvel – Homem-Aranha – vol. 1 (Panini), Preacher – Rumo ao Sul (Pixel), e Guerra Civil n° 2 (Panini), três obras em quadrinhos que, se vistas em conjunto, vão mu
Publicado 21/08/2007 20:36
O que poderia ser ousadia demais ao se falar de quadrinhos, as edições foram produzidas originalmente em períodos-chave da história dos Estados Unidos sem pretensão de ser mais do que bons produtos para seu público. Mas exatamente por sua forma, apresentam de modo quase didático aquelas premissas que já foram engolidas pelo senso comum, especialmente na hora de criticar o “grande imperialista”.
Homem-Aranha – vol. 1 reúne as primeiras dez aventuras do herói. Produzidas entre 1962 e 1964 por Stan Lee e Steve Dikto, elas mostram o início da carreira do personagem, quando era apenas um adolescente e foi picado por uma aranha “radioativa”. Do trauma de ter sido responsável indireto pela morte do seu tio, chega à discutível conclusão de que “grandes poderes trazem grandes responsabilidades”, retórica bastante familiar em qualquer corredor governamental.
Estigma do tempo
Produzidas no auge da Guerra Fria, essas dez edições carregam o estigma de seu tempo. O Abutre, um dos primeiros inimigos do herói, tenta vender segredos militares para agentes soviéticos. Capturado, é acusado de “traidor” e “comuna” pelo herói. Mais ainda, quase toda situação, de alguma forma, está vinculada à energia atômica, da origem dos poderes do herói aos planos dos vilões.
Menos por falta de criatividade do roteirista Stan Lee e mais por uma falta de esclarecimento geral, fato é que pouco se sabia sobre os riscos da força nuclear além dos meios científicos, o que só mudaria com o desastre de Chernobyl, em 1986.
Entre detalhes importantes, então pela primeira vez o adolescente era mostrado como protagonista – e não como ajudante do herói principal. Acima de tudo, o Homem-Aranha dava um novo passo na construção de estereótipos ao vincular ansiedade e responsabilidade dentro do fenômeno cultural que já eram os quadrinhos.
Cínico e violento
Preacher – Rumo ao Sul pertence a outra categoria de HQ. Seu protagonista, o pastor texano Jesse Custer, em quase nada pode ser classificado como “herói”. Cínico e violento, Custer é o hospedeiro de “Gênesis”, uma entidade gerada pela união de um anjo com um demônio. Possuído por essa força, o pastor ganhou a habilidade de obrigar qualquer um a obedecer ao que disser, dom que usa da forma mais abjeta possível.
A edição lançada agora pela Pixel reúne seis edições originalmente publicadas entre 1997 e 1998, do número 27 ao 33. Nelas, Custer e seus dois companheiros, Tulip (uma ex-assassina de aluguel, namorada do “herói”) e Cassidy (um vampiro irlandês beberrão, melhor amigo do pastor) vão à Louisiana à procura de respostas sobre o paradeiro de Deus “em pessoa”. Não é a busca pelo Divino; é um acerto de contas com aquele que teria abandonado o mundo à própria sorte.
Lar do jazz
O escritor de Preacher, o irlandês Garth Ennis, elaborou um dos retratos mais obscuros da América e acertou em cheio. Na Louisiana, o místico lar do jazz, os personagens procuram um feiticeiro vodu. O sul, neste caso, guarda as chaves de um elo perdido, uma razão mais primitiva que o otimismo e a moralidade (especialmente a religiosa) tendem a esconder. Idéia que não é novidade.
Nos Estados Unidos, períodos de maior afluência econômica são acompanhados por um movimento de retorno à natureza, em abundância além da “fronteira” da civilização. Daí a origem do movimento Beat (dos beatniks), da planejada Política da Boa Vizinhança ou mesmo da contracultura, cristalizada na obra de Jack Kerouak, On The Road.
Obviamente, indicativos econômicos e políticos são bem mais seguros ao analisar qualquer conjuntura histórica. No entanto, deixam escapar certo matiz cultural e ideológico que os quadrinhos trazem em abundância. Se existe um exemplo bem acabado disso é a série Guerra Civil.
Cena bélica
Ocupando destaque na mídia desde o ano passado, quando foi lançada nos Estados Unidos, Guerra Civil, de Mark Millar e Ed Brubaker, mostra o que acontece no mundo dos heróis quando é criada uma lei que os obriga a se registrar como agentes do governo, assim abrindo mão de suas identidades secretas. Em vez do 11 de setembro, há uma desastrosa ação de heróis novatos matando centenas de pessoas. No lugar do Patriot Act (pacote de medidas lançado em 2001 por George W. Bush), há a Lei de Registro dos super-heróis.
Os Estados Unidos, historicamente divididos entre Democratas e Republicanos, têm também seu paralelo em quadrinhos. O Capitão América é o defensor da liberdade de expressão e anonimato heróico. O Homem de Ferro é o conservador que dá prioridade à segurança sobre a liberdade. Da diferença, surge o conflito entre duas facções de heróis. Intimamente distintas, ambas são tradicionalmente americanas.
Guerra Civil n.º 2 é provavelmente o momento de maior clímax de suas sete edições. O que já não é segredo, o número mostra o momento histórico em que o Homem-Aranha revela publicamente ser Peter Parker tentando dar o exemplo para seus colegas.
No imaginário
Vistas em perspectiva, essas três HQ colocam em termos simples muito do que compõe a identidade multifacetada do imaginário americano. Num começo-meio-fim, é como se os tipos característicos de cada época se alternassem mediante tensões da realidade concreta.
Na falta de exemplos melhores, é como se o cowboy dos filmes de John Ford enfrentasse o cowboy de Sérgio Leone. O primeiro é um exemplo de integridade mesclada com missionarismo religioso. O segundo, nem bom, nem mau, faz o necessário para sobreviver, muitas vezes, de forma violenta. A história, contudo, ainda não terminou.