Terremoto no Peru: A devastadora inação do Estado
Janina Mirtha Gladys Moquillaza Sanchez é professora universitária em Ica, uma das cidades mais atingidas pelo terremoto de oito graus que devastou o Peru na semana passada, deixando mais de 500 mortos. Nascida em Ica, a docente percebe com tristeza e rev
Publicado 21/08/2007 13:59
Enquanto corpos continuam sob escombros intocados, o governo envia à cidade militares para proteger as propriedades privadas. Famílias passam fome, frio e dormem ao relento em muitos bairros periféricos nos quais nenhum tipo de ajuda ainda chegou. Os hospitais não têm mais estrutura para ajudar nem cuidar das pessoas. A pressão psicológica da tragédia faz com que muitas mães dêem a luz prematuramente.
Depois de dias sem energia elétrica e água, dividindo enlatados com seu esposo, médico no Hospital Regional de Ica, Janina compartilha – ainda em meio aos inúmeros pequenos terremotos que ocorrem – a sensação de abandono em que se encontra a região. Leia abaixo seu relato:
A devastadora inação do Estado
Hoje, segunda-feira, 20 de agosto, cinco dias após o terremoto que deixou a cidade de Ica semi-destruída, a água volta às torneiras, a luz volta às ruas e me pergunto se as ações no âmbito público, durante este golpe da natureza, têm sido exercidas com dignidade.
Às 18h40 da quarta-feira passada, os três maiores hospitais da cidade entraram em colapso. Paredes caíram, equipamentos para a preservação da vida foram destruídos, pacientes faleceram sem auxílio médico. À medida que as horas passaram, vítimas do desastre foram distribuídas pelos corredores e salas ainda em condições de uso e tendas de atendimento emergencial ocuparam os jardins. Nos dias seguintes, à medida que foram chegando equipes médicas de outras cidades e países, pessoas entravam e saíam procurando parentes.
Mas o antigo problema da centralização político-administrativa acaba determinando o gerenciamento do trabalho de ajuda como um todo. E a situação se repete em todos os demais lugares atingidos pela tragédia.
Informadas pela base naval de Pisco após doze horas do ocorrido, “porque os telefones não funcionavam”, as autoridades limenhas chegaram ao local ao amanhecer. O imperativo cultural local da centralização autoritária de decisões e o grande distanciamento e desinteresse com relação às necessidades das camadas mais pobres (que representa a imensa maioria da população), têm sido um fator a mais para o aumento do índice de mortos que poderiam ter sido salvos.
Há dois dias o governo decidiu priorizar suas ações nas históricas cidades turísticas de Pisco, com mais de 80% de destruição – o presidente Alan Garcia está lá coordenando pessoalmente a tragédia e o país – e Chincha, mais de 70% destruída. Entretanto, as regiões andinas igualmente afetadas, de Huancavelica e Ayacucho estão abandonadas.
Hoje, após caminhar vários dias até chegar a uma estação de rádio em Ica, um cidadão vindo de Castrovirreyna (distante mais de 400km da costa peruana) denunciou: “Caminhei até aqui para dizer que deixei minha família passando frio e fome. Nossa casa caiu e há de mais de mil pessoas dormindo ao relento depois do terremoto de quarta-feira. Nós estamos nas montanhas dos Andes e precisamos de ajuda”. À noite o frio na região chega a 2º C e durante o dia fica entre 12º C e 16º C.
Desde sábado, quando a luz voltou, as rádios incitam as pessoas a lhes telefonar e a ir às estações para pedir socorro e fazer suas denúncias. Ontem políticos, esposas e assessores passaram a fazer o mesmo.
O efeito perverso, a instrumentalização da tragédia humana no inesperado desta situação, relega a realidade do sofrimento da experiência, inabilita a reflexão sobre o equívoco da verdade representada, e distancia o cidadão da percepção de sua ação de direito: a atenção do governo aos desabrigados no mesmo lugar da catástrofe. É o atendimento emergencial que tem que ir à vítima, não esta ao balcão burocrático e sensacionalista de atendimento.
Há dois dias, outra denúncia ainda mais revoltante chegou aos ouvidos de quem tem acesso a um rádio de pilha. Em meio a situação de emergência em que nos encontramos, as empresas agroexportadoras locais tem exigido o comparecimento dos trabalhadores. Um funcionário conseguiu fazer uma ligação a uma rádio lá de dentro e disse que está inclusive proibido de sair.
Os últimos dias
No momento do terremoto eu me encontrava em uma reunião na Secretaria de Meio Ambiente. Foi a sorte. O prédio térreo nos possibilitou irmos pra fora da construção rapidamente. A maioria correu para o jardim em frente e eu caí na calçada. Alí fiquei entre duas árvores e um poste que balançavam enquanto o chão fazia ondas como se fosse o mar.
O prédio onde vivemos ficou com as paredes rachadas e a caixa d’água veio abaixo. Entretanto, casas do entorno ficaram bastante destruídas. Em um bairro de classe média, a maioria tem condiçoes de sair da cidade. E assim eles foram, deixando para trás escombros, móveis, objetos, comida. Por isso, nos dias seguintes houve muitos saques por aqui. Todas as noites escutamos tiros e gritos.
No sábado, Alan Garcia disse que manteria o controle da situaçao “custasse o que custasse”. Isso resultou que alguns homens se ofereceram como voluntários para um exército paralelo. Na minha rua, jovens se armaram de paus e revólveres e permaneceram toda a noite sentados na calçada, aquecendo-se com pneus e outros objetos queimados.
A maioria das lojas e mercados permanecem desde então fechados. Ainda hoje. Os poucos que abrem fazem suas vendas através de uma janelinha. Dizem que têm medo dos saqueadores. A consequência é que os preços subiram mais de 100%.
No Peru, a Telefônica cobra um preço muito alto para as linhas fixas de telefone. A saída para a maioria é ter o tipo de linha pré-paga, que para fazer ligações exige um cartão. Na quinta, dia seguinte ao terremoto, as filas para comprar cartão eram gigantescas. Para eu conseguir ligar para uma das minhas filhas que vive no Brasil, fiquei das 8h até mais ou menos 12h numa fila desesperadora. Consegui comprar cartões, latas de atum e garrafas d’água que nos sustentaram até o final de semana.
Desde quarta-feira, os tremores secundários continuam a nos assustar ao longo do dia e da noite. Ontem, com o retorno do abastecimento de água, consegui tomar um banho. Com a vida um pouco mais normalizada, consegui escrever este artigo.
Janina Mirtha Gladys Moquillaza Sanchez é professora no Departamento de Pós-Graduação da Faculdade de Medicina da Universidad Nacional San Luis Gonzaga de Ica.
Colaborou Mônica Simioni
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