Valton de Miranda Leitão: Cansamos

A cavalgada dos ricos sobre os pobres se intensificou a partir dos anos 1980, com a nova ordenação do capitalismo neoliberal, que prega a diminuição do tamanho do Estado, a privatização radical ao lado da supressão de importantes conquistas sociais e e

O Brasil, depois da eleição de Lula, já vinha gestando a operacionalização desse processo de modo mais evidente politicamente, mas agora isso fica explícito com o movimento denominado Cansei. A evidente origem, na grande elite brasileira, dessa articulação que nasce em São Paulo, através da OAB local e de destacados personagens da grande riqueza do capitalismo paulistano, não consegue esconder seu perfil elitista e preconceituoso.


 


As mentalidades conservadoras e indivíduos das classes liberais e/ou intelectuais pouco afeitos ao pensamento universal aderem facilmente à propaganda midiática comandada pela Globo e seus periféricos em jornais e revistas. O um milhão de ultra-privilegiados que está por trás do dito Cansei imaginava empolgar a Nação com um grandioso festival de asneiras, utilizando, como ponto de partida, a tragédia do avião da TAM no aeroporto de Congonhas, insistentemente mantido pelo grande capital como preferência das rotas de vôo, embora se trate de um verdadeiro porta-aviões no centro da capital paulista.


 


Todo esse imbróglio midiaticamente articulado se destina a atingir o operário-presidente no governo, a transferência de pouco mais de dez bilhões de reais/ano do Bolsa Família para os pobres e as iniciativas para criar uma classe média de pequenos empresários por meio da simplificação dos impostos. Essa é a razão objetiva de tanta raiva contra o governo Lula, mas existem também motivações subjetivas muito importantes que vêm se manifestando desde a última campanha eleitoral, com a tentativa da grande imprensa de dividir o Brasil entre nortistas e sulistas e sociedade pobre inculta, contrastando com a cultura supostamente mais competente, porque mais rica, vivendo no Sul-Sudeste.


 


O preconceito colocado nessa argumentação chega quase à superfície do ''livro social'' para quem tenha a humildade de lê-lo com paciência. Tal leitura, entretanto, é bloqueada pela arrogância daqueles que consideram o pardo, o negro e o mestiço como incapazes para o trabalho produtivo e de mentalidade bloqueada para a ética. É esta visão do tal Cansei que pouco a pouco vai se tornando visível ao conjunto da sociedade, que percebe que a ética não pode ser propriedade particular da mídia no eixo Rio-SP-Brasília ou de meia dúzia de privilegiados freqüentadores da Daslu. Aliás, o enquadramento policial da Daslu por vários crimes contra a Receita Federal é paradigmático desse tipo de conduta das elites em geral. 


 


A desmoralização deste movimento, entretanto, está vindo de dentro de suas próprias hostes, com declarações infelizes como as do presidente da Philips, Paulo Zottolo, ao afirmar que: ''Não se pode achar que o País é um Piauí, no sentido de tanto faz quanto tanto fez. Se o Piauí deixar de existir ninguém vai ficar chateado. Estamos vivendo uma calamidade, não uma tragédia.''. O senhor da Philips, cujo nome rima com o adjetivo mais adequado às tolices que enunciou, mostra aí o tipo de pensamento universalizante dessa elite janota. O governador piauiense Wellington Dias exigiu retratação pública por escrito para, isto sim, que é um crime de lesa cultura.


 


De outro lado, um personagem que se diz psicanalista militante do dito movimento, afirma algo absolutamente incompatível com uma mente que tenha sido psicanalizada e compreendido a dimensão grandiosa do humanismo freudiano. Diz então a ''psicanalista'' Beatriz Kuhn numa declaração à Revista Carta Capital: ''O surgimento do movimento é oportuno e seguramente traduz o sentimento de qualquer brasileiro que não tenha sido lobotomizado pela fome e pela ignorância.'' Não sei de que ponto obscuro a dita ''psicanalista'' tirou tal brilhante conclusão, porquanto o que se observa no Brasil é que da pobreza surgem gênios da literatura, do esporte e até mesmo da psicologia.


 


Isso faz lembrar o triste acontecimento envolvendo o psicanalista Amílcar Lobo, que durante a ditadura militar trabalhou junto com torturadores, tendo posteriormente sido expulso da Sociedade Psicanalítica do Rio de Janeiro. Manifestações como essas, entretanto, pretendendo ganhar o estatuto da autoridade científica através do sociólogo Alberto Almeida, acabam por desmoralizar ainda mais a ridicularia do Cansei, porquanto nenhum intelectual que se preze deixará de ver no seu trabalho uma tremenda manipulação.


 


Tudo isso não pode, por outro lado, levar a crítica a uma ampliação ao setor empreendedorista e empresarial brasileiro que precisa compreender que esse tipo de postura não combate corrupção nem violência, mas muito pelo contrário, degrada a cultura brasileira. O empreendedor é parte da sociedade e não pode se identificar com esse grupelho do Cansei, muito mais ajustado às granfinagens da apresentadora Hebe Camargo. É preciso separar o joio do trigo a fim de que a sociedade brasileira gere uma verdadeira ética sociocultural e não aceite aquela, proposta como ética pública pela Revista Veja e seus arautos midiáticos.


 


Tal antagonismo rancoroso entre o empresário produtivo e a sociedade trabalhadora é fabricado pelos dandys do colunismo social que estimulam a aparência e o espetáculo, deixando de lado as criaturas humanas reais. Nós, os brasileiros, que se preocupam com a gigantesca concentração de renda e o absurdo fosso social existente no país e que sabemos que este é um dos fundamentos da corrupção e da violência, cansamos. Assim, estamos cansados da instrumentalização feita, principalmente, pela imagem televisiva monopolizada que espetaculariza os acontecimentos, escondendo os fatos reais, criminalizando através dos seus ''especialistas'' todos aqueles que não aceitam imediatamente as suas versões e verdades pré-construídas. Por isso tudo, enquanto psicanalista quero manifestar minha indignação contra essa feira de bobagens e de vaidades que não representam os ideais de brasilidade, cordialidade, amizade e integração, próprios da cultura brasileira.


 


 


* Valton de Miranda Leitão é escritor, professor, ensaísta político e membro da Sociedade Psicanalista do Recife e do Núcleo Psicanalítico de Fortaleza.