Emir Sader: Os problemas e os desastres históricos do Haiti
Direto de Porto Príncipe, Emir Sader relata para a Agência Carta Maior as dificuldades vividas pelo povo haitiano. “Qualquer que seja o diagnóstico que se faça da história recente do Haiti, o certo é que, depois da catástrofe da ditadura do clã D
Publicado 02/10/2007 14:02
Não é fácil chegar ao Haiti. Em primeiro lugar pelos vôos. Não apenas para nós, que temos que ir ao Panamá e trocar de avião, depois de uma espera de quatro horas. Mas mesmo paises do Caribe – como Cuba ou Porto Rico – ou próximos, como o México, devem ir até o Panamá ou tirar o visto e os sapatos no aeroporto de Miami. Um vôo que seria de uma hora e quarenta, desde o Porto Rico ou Cuba, termina levando sete horas. O trecho entre o Panamá e o Haiti é curto, de cerca de duas horas, para que se veja que não fica tão longe, mas também a este nivel o Haiti é vitima de discriminação.
A outra dificuldade também é resultado da discriminação. Quando se diz a alguém que se vai ao Haiti, produz preocupação, muitas vezes seguido da recomendação. “O Haiti! Cuidado!”, como se fôssemos ao Iraque ou ao Afeganistão.
A primeira vista, ainda do avião, é de uma ilha tipicamente caribenha, poderia se estar chegando a Cuba, não fosse uma vegetação mais rala e terrenos bastante menos explorados pela agricultura. No aeroporto – chamado Toussaint L'Ouverture – encontra-se de imediato essa característica de alguns países do continente: população nativa negra, entre pobres, classe média e elite.
Porto Príncipe não apresenta uma paisagem social pior que, por exemplo, Tegucigalpa ou El Alto – cidade da periferia de La Paz. A capital tem um milhão de habitantes, outros oito milhões vivem no campo e um milhão mais no exílio – nos EUA, na Republica Dominicana. Tanto estes dados, como os índices sociais – 40% de analfabetos ou de mortalidade infantil, por exemplo – são aproximados, ninguém sabe quantos haitianos foram, legal ou ilegalmente aos EUA ou à vizinha Republica Dominicana, onde mesmo filhos de terceira geração de haitianos não são reconhecidos legalmente e não existem diante da lei e das estatísticas.
No centro da cidade, uma grande quantidade de gente ociosa, certamente desempregada, enquanto os que têm atividade estão, na sua grande maioria, no serviço de rua, vendendo coisas ou prestando serviços, com grande quantidade de engraxates. Isolado por cercas, o monumental Palácio Presidencial, aparentemente alheio ao entorno. Como em quase todos os países do continente, mesmo os países pobres, como o Haiti ou o Paraguai, o poder se exige na sua monumentalidade mediante palácios que poderiam ser transferidos para qualquer outro país, nada diz deles que são sede do governo daquele país, eleito por aquela massa de gente que circula, alheia ao Palácio, a pé ou em ônibus pequenos de transporte, repletos de gente a qualquer hora do dia, todos muito coloridos e com frases pintadas, a maioria delas religiosas.
O Haiti goza, pelo menos, do privilégio do atraso. A capital é pouco globalizada, porque não representa mercado de interesse da grande maioria das transnacionais. (Até aqui, não vi nenhum McDonalds.) Poucos outdoors, em geral pequenos, a publicidade está mais presente em faixas de pano, escritas em francês, quando se trata da oferta de algum produto voltado para o consumo das altas esferas do consumo, em creole – o idioma local, uma versão popular do francês, que escreve as palavras francesas conforme soam, se se trata de produtos de consumo popular.
Não soubéssemos a situação política do país, pareceria um país pobre a mais no continente. O sintoma dessa situação política estava presente no aeroporto, quando os soldados traziam o emblema da ONU em um braço e a bandeira chilena no outro – membros da Missão das Nações Unidas para a Estabilização do Haiti, conhecida como Minustah, cujo término do mandato atual termina dia 15 de outubro próximo.
Consenso geral é que a presença dessas tropas foi a responsável pelos avanços na situação de segurança pública, pelo menos nos espaços centrais de Porto Príncipe, até há pouco intransitáveis, pelos riscos de segurança. A eleição de um presidente com grande votação – René Preval, que havia sido presidente do Haiti anteriormente e que recebeu inclusive o apoio tácito do ex-presidente Aristide -, somado à ação das tropas estrangeiras, gerou uma certa estabilidade institucional.
Os problemas do Haiti se dão em um plano muito mais profundo. As décadas de governo do clã Duvalier, somados ao fracasso do governo de Aristide, tiveram como efeito, entre outros, uma inexistência real do Estado. Há ministérios, mas muito poucos serviços públicos, estruturas muito debilitadas. Além de que Aristide decidiu a extinção do Exército, sem colocar nenhuma outra estrutura no seu lugar, mantendo-se apenas a Polícia Federal como força armada.
Qualquer que seja o diagnóstico que se faça da história recente do Haiti, o certo é que, depois da catástrofe que significou para o Haiti a ditadura do clã Duvalier, o desastre mais recente, que ajuda a entender a grave situação em que se encontra o país, foi o fracasso do governo de Aristide. Ele tinha as melhores condições para dar inicio à reconstrução democrática do país, pela liderança popular que tinha como padre da teologia da libertação, da oposição democrática, contando também com apoio internacional.
O regime duvalierista foi derrubado em 1986, Aristide foi eleito em 1990. Nem bem tinha começado seu governo, aos 7 meses, foi derrubado por militares remanescentes do duvalierismo. Se exilou nos EUA e retornou, reconduzido pelo governo de Bill Clinton, em 1994, para o que se chama de “segundo Aristide”. Depois de um mandato de Preval, ele passou a implementar uma política econômica neoliberal, se chocou e se distanciou do partido – Lavalas – que o havia eleito e passou a ser acusado de vínculos com o narcotráfico, de corrupção e de organização de bandas armadas que passaram a atacar grupos de oposição, movimentos sociais, intelectuais e lideres da oposição.
Aristide foi perdendo o controle do país, mobilizações populares contra ele foram crescendo. Ao longo do segundo semestre de 2003, ele continuava a dispor de grupos populares armados por ele. A falta de recursos externos foi levando o país a um processo de desintegração acelerada, sem serviços públicos, sem forças de segurança, com grupos de-ex-militares armados cruzando a fronteira para atacar o governo.
Foi nesse contexto de véspera de guerra civil, que os governos dos EUA e da França se reivindicaram o direito de intervir, derrubando o governo de Aristide. Alegando que os governos da região preferiam a presença de tropas latino-americanas, o Brasil, a Argentina, o Uruguai e o Chile, substituíram esse contingente com suas tropas.
Aí começa o período contemporâneo do Haiti, com um presidente eleito, René Preval, grandes dificuldades econômicas e sociais, instabilidade institucional, presença de tropas estrangeiras. O seminário que organizamos, Clacso, junto com a Fundação Gerard-Pierre Chareles – o intelectual mais importante do Haiti, grande amigo de Florestan Fernandes, morto há três anos – permite ter visões diversas do quadro atual do Haiti. No próximo texto tratarei de resumir-lhes essas visões.
Porto Principe, 28 de setembro de 2007