Como brincar com palavras: o humor de Guimarães Rosa
Autor de Sagarana e Primeiras Estórias, Guimarães Rosa tinha uma maneira muito própria de brincar com o universo das palavras. É a opinião de Walnice Nogueira Galvão, professora titular de Teoria Literária na USP e autora de Guimarãe
Publicado 16/10/2007 22:28
A obra de Guimarães Rosa é daquelas em que o leitor menos espera encontrar humor. “Humor?!”, dirá ele, ante a obra precedida pela reputação de difícil, até mesmo impenetrável, escondida por trás da linguagem rebarbativa e da sintaxe retorcida, coalhada de neologismos.
Todavia, é um engano. Não só o humor reponta por toda a obra de Rosa, aqui e ali, mesmo em meio à gravidade e à melancolia. Mas há também narrativas inteiramente burlescas ou satíricas, do começo ao fim.
Nesse sentido, examinaremos mais de perto dois momentos fortes, a fim de verificar o funcionamento dos mecanismos que produzem esses efeitos. O primeiro momento forte é dos mais sensacionais e se encontra logo no livro de estréia, Sagarana (1946). Trata-se de A volta do marido pródigo, em que o humor se observa desde o título, na paródia de um notório tema bíblico, portanto solene, que é a volta do filho pródigo, e não do marido. A paródia atinge uma bela parábola dos Evangelhos, procedente da boca do próprio Jesus Cristo.
Nesse relato picaresco, um tremendo mau-caráter, Lalino Salãthiel, invariavelmente se sai bem. Entre as coisas abomináveis que perpetra, Lalino vende a própria esposa por dinheiro e depois a recupera mediante tramóias. Um trickster, graças a sua lábia torna-se peão de uma intriga político-eleitoral, nos quadros da luta pelo poder entre coronéis do sertão.
Insolente e impertinente, sua esperteza visa à sobrevivência: Pedro Malazarte e Macunaíma são de sua laia. E apesar de suas péssimas qualidades, o embusteiro não passa de um pobre coitado, que se vê obrigado aos mais torpes estratagemas. O que, de certo modo, implica em sua absolvição pelo autor e, afinal, pelo leitor. Nestas páginas, Guimarães Rosa deixa imortalizado um de seus mais notáveis personagens.
Estórias
O segundo momento forte se encontra concentrado, vários livros adiante, em Primeiras Estórias (1962), em que a veia cômica dá a nota. É quando entram em cena as “estórias”, termo que Guimarães Rosa cunhou e pôs em circulação, opondo-o, como em inglês, a “história”. Nessa veia, – sem ignorar outras tristes ou mesmo trágicas entre as quais se situam – são as mais interessantes, e num acúmulo que só se encontra neste volume. Algumas delas, cujo desenrolar depende de discussão de linguagem, e até de verbiagem, enveredam pelo nível metalinguístico.
A destacar, a predominância, só aparentemente fortuita, de crianças. Além da primeira e da última estórias, protagonizadas pelo Menino, também surgirão em outras. Em A Menina de lá, Nhinhinha, que mal chega aos quatro anos, inventa palavras e profetiza, antes de morrer e virar santa. Em Pirlimpsiquice, os alunos do colégio interno criam um teatrinho, em que procedem a uma encenação, com espantosas conseqüências.
Em Nenhum, nenhuma, os olhos de um menino, sozinho numa fazenda misteriosa onde há um moço, uma moça, uma velhinha e um homem alto, tentam entender o que se passa. Em Partida do Audaz Navegante, crianças brincam, inventando enredos de imaginação desatada.
Em outras comparecem valentões. Famigerado é um relato engraçado de rufiões sertanejos às voltas com esse vocábulo a eles dirigido, que, por ignorância, temem ser um insulto. Dispõem-se até a assassinar, imaginando conteúdos pejorativos que tentam formular aproximativamente: “…fasmisgerado…faz-me-erado…falmisgeraldo…familhas-gerado”.
E só sossegam quando o apavorado interlocutor, para safar-se, distorce o significado da palavra, explicando que ela é sinônimo de importante, que merece louvor e respeito. Em Os Irmãos Dagobé, os façanhudos do vilarejo, todos de nome começando por D (notar que de fato são corruptelas e que nenhum começa por D) – Damastor, Doricão, Dismundo e Derval -, fazem o velório de um dos seus, a quem vão sepultar.
Coerência e coesão
Os volumes de contos costumam perseguir coerência e coesão interna, obtendo-as de várias maneiras, seja em personagens que se repetem, seja nos mesmos lugares ou na mesma época. No caso de Primeiras Estórias, o espaço e o tempo se mantêm, além da linguagem, como sempre em nosso autor. As estórias na maioria se passam no espaço rural – sítio, fazenda, chácara – ou em lugarejos.
Mas há ainda outro elemento, nada desprezível, que confere unidade: é o perfil das personagens. O grosso da comparsaria é constituído por excêntricos, no sentido etimológico, ou seja, pessoas que estão fora da centralidade. Poderiam ser chamados também de desajustados ou excepcionais: aqueles que só inadequadamente seriam considerados normais. E que devido a essa condição têm acesso a níveis de realidade a que o comum dos mortais não tem.
Tais limítrofes incluem a criança, o senil, o apaixonado, o insano, o insensato, o inconformista, o marginal, e até mesmo um extraterreste… mudo. Todos aqueles que poderíamos chamar de iluminados, de fora-das-convenções, de seres de exceção. Não convém dizer que são loucos, a não ser impropriamente, porque Guimarães Rosa já decretava nesse mesmo livro: “Ninguém é louco. Ou então, todos.” (A Terceira Margem do Rio).
Essas figuras fora de esquadro repontam, por exemplo, em Darandina, na qual um homem sobe numa palmeira e tira a roupa na praça central, sem explicações, para gáudio dos passantes, provocando jubiloso tumulto público na cidadezinha mineira.
Mas se reúnem e se concentram no extraordinário catálogo que delas faz Tarantão, meu patrão…, instaurando um cortejo eqüestre que parte em missão. Essa cavalgada dos insensatos segue o exemplo da Nau dos Insensatos, a Stultifera Navis, de que fala Foucault, na qual as autoridades confinavam os loucos e os deixavam à deriva.
Aqui, o protagonista, o Velho, arrasta empós si até catorze deles em conta redonda, que inclui, conforme suas palavras, ele próprio mais o narrador e Deus: o ajudante de criminoso Sem-Medo, Felpudo, Curucutu, Cheira-Céu, Jiló, o cigano Pé-de-Moleque, Gouveia Barriga-Cheia, o vagabundo Corta-Pau, Bobo, João Paulino, Rapa-pé, um “por nome anônimo” e o preto Gorro-Pintado. A comitiva, sem objetivo, alvo ou rumo, sai da fazenda e acaba indo parar na vila, onde fica a casa da família do Velho, tudo resultando numa festa de congraçamento.
As Primeiras Estórias apresentam similaridades, não nos enredos – na variação dos quais nosso autor capricha, como sempre – mas na estrutura deles. Ou seja, todos têm acentuado suspense, e esse suspense às vezes é climático e às vezes anticlimático.
Em alguns casos, e muito interessantes, o clímax é um anticlímax, com a construção intensificante do suspense sendo desmanchada, porque o que se aguardava não acontece, ao contrário, falha e frustra a expectativa do leitor. O que é muito apropriado para o tom jocoso que sustenta algumas das estórias. Demonstra-o Luas-de-mel, em que a ocorrência, tão comum no sertão, de um casamento por rapto, vai progressivamente erotizando os circunstantes, bem como a linguagem, de modo que a tragédia que se aguardava não sobrevém.
E tudo isso, quando não se esperava que Guimarães Rosa produzisse humor…