Tariq Ali: O domínio militar é tragédia paquistanesa
Mesmo aqueles dentre nós que criticavam severamente o comportamento de Benazir Bhutto e as políticas que ela adotou quando estava no poder e depois de perdê-lo se sentem atônitos e enraivecidos diante de sua morte. Indignação e medo tomam o país uma v
Publicado 28/12/2007 07:58
No passado, o governo militar tinha por objetivo preservar a ordem. Mas
isso deixou de ser verdade. Hoje, o domínio militar cria desordem e
destrói o domínio da lei. Que outra explicação poderíamos encontrar
para a demissão do presidente e de oito outros juízes da Suprema Corte
paquistanesa por terem tentado sujeitar a polícia e os serviços de
informações aos ditames da lei? Os substitutos não têm firmeza moral
para tomar providência alguma, quanto mais conduzir a investigação
sobre os delitos das agências, a fim de encorajar a revelação da
verdade por trás do assassinato cuidadosamente organizado de uma
importante líder política.
De que maneira o Paquistão seria outra coisa que não uma conflagração
de desespero hoje? Presume-se que os assassinos sejam jihadistas
fanáticos. Pode ser verdade, mas agiram por conta própria?
EUA e coragem
Benazir, segundo fontes próximas a ela, sentiu-se tentada a boicotar as
falsas eleições, mas não teve coragem política de desafiar Washington.
Tinha muita coragem física, e recusava-se a ceder às ameaças de seus
oponentes locais. Bhutto estava discursando em um ato em Liaquat Bagh.
É um espaço batizado em homenagem ao premiê que formou o primeiro
governo paquistanês, Liaquat Ali Khan, assassinado por um atirador em
1953. O matador foi imediatamente abatido a tiros por ordem de um
policial envolvido no complô.
Não muito longe dali, existia uma estrutura da era colonial que servia
de prisão aos militantes nacionalistas. Era a prisão de Rawalpindi, o
local em que Zulfikar Ali Bhutto, pai de Benazir, foi executado em 1979.
O tirano militar responsável por seu assassinato fez desaparecer o
lugar da execução. A morte de Zukfikar Bhutto envenenou o
relacionamento entre o seu Partido do Povo do Paquistão e o Exército;
ativistas do partido foram torturados, humilhados e, ocasionalmente,
mortos.
A turbulenta história do Paquistão, como resultado de contínuo domínio
militar e de alianças internacionais impopulares, agora apresenta
sérias escolhas à elite governante, que parece não ter qualquer
objetivo positivo. A maioria esmagadora do país desaprova a política
externa. O povo também se sente irritado pela falta de uma política
doméstica séria, se excetuarmos os esforços para enriquecer ainda mais
uma elite insensível, cujas fileiras incluem as Forças Armadas,
superdimensionadas e parasitárias -as mesmas que assistem, impotentes,
ao assassinato de líderes políticos.
Benazir foi atingida por tiros e logo houve uma explosão. Os assassinos
garantiram duplamente a operação, dessa vez. Queriam-na morta. Agora, é
impossível a realização de uma eleição, ainda que fraudulenta. O pleito
terá de ser adiado e as Forças Armadas estão contemplando a imposição
de um novo período de domínio militar direto caso a situação se agrave,
o que pode facilmente ocorrer.
O assassinato representa uma tragédia multidimensional em um país que
está na estrada para novas tragédias. Há despenhadeiros e cataratas à
frente. E há a tragédia pessoal. A família Bhutto perdeu mais um
membro. Pai, dois filhos e agora a filha.
Morte do pai
Fui apresentado a Benazir na casa de seu pai, em Karachi, quando ela
era uma adolescente que só queria se divertir, e voltei a encontrá-la
mais tarde, em Oxford. A política não era sua inclinação natural, e ela
desejava ser diplomata, mas a história e suas tragédias pessoais a
conduziram em outra direção. A morte de seu pai a transformou. Ela
tornou-se uma pessoa nova, determinada a enfrentar o ditador militar
daquela era.
Estava instalada em um pequeno apartamento em Londres, no qual
discutíamos o futuro do país. Ela concordava quanto à necessidade de
uma reforma agrária, grandes programas educativos e uma política
externa independente, como passos cruciais para salvar o país dos
abutres que estavam à espreita, com ou sem uniforme. Sua base eleitoral
eram os pobres, e ela se orgulhava disso. Mas Benazir mudou de novo, ao
se tornar primeira-ministra.
No início de seu governo costumávamos discutir, e ela dizia que o mundo
havia mudado. Ela não podia se colocar ''do lado errado'' da história. E,
como outros, fez as pazes com Washington. Foi isso que a levou, por
fim, a fechar um acordo com Musharraf e voltar ao país. Em diversas
ocasiões ela me disse que não temia a morte. Era um dos perigos
inerentes da vida política paquistanesa.
É difícil imaginar que algo de bom possa surgir dessa tragédia, mas
existe uma possibilidade. O Paquistão precisa desesperadamente de um
partido político que fale em nome das necessidades sociais da maioria
de seu povo. O Partido do Povo, fundado por Zulfikar Ali Bhutto, foi
criado pelos ativistas do único movimento popular de massa que o país
já viu: estudantes, camponeses e trabalhadores que lutaram durante três
meses, em1968/9, pela derrubada do primeiro ditador militar do país. Os
militantes consideravam a organização como o seu partido, e o
sentimento persiste ainda hoje em determinadas áreas do país.
A morte horrível de Benazir deveria fazer com que seus colegas parem e
reflitam. Depender de uma pessoa ou família talvez seja ocasionalmente
necessário, mas isso representa uma fraqueza estrutural, e não uma
vantagem para uma organização política.
O Partido do Povo precisa ser recriado como organização moderna e
democrática, aberta ao debate e discussão honestos, defendendo os
direitos sociais e humanos, por meio da união dos muitos grupos e
indivíduos paquistaneses dispersos que estão desesperados por qualquer
opção de governo minimamente decente e que apresente propostas
concretas para estabilizar o Afeganistão, ocupado e dilacerado pela
guerra. Isso pode e deve ser feito. Não deveríamos solicitar novos
sacrifícios à família Bhutto.
* Historiador anglo-paquistanês e editor da revista New Left Review