Brasil: 'Divina Comédia' lidera downloads em site do governo
Obra de Dante Alighieri desbanca Fernando Pessoa e Machado de Assis e é a mais procurada no portal Domínio Público. Crise da arte contemporânea, aparição do autor em obras atuais e até novela da Globo são causas do sucesso na opinião de especialistas.
Publicado 03/01/2008 17:42
Engana-se quem pensa que é Machado de Assis, Shakespeare, Fernando Pessoa ou qualquer outro livro da lista dos obrigatórios para o vestibular o mais procurado dos que estão em domínio público.
A obra com mais downloads no portal do governo que pretende reunir os livros disponíveis gratuitamente -ou, pelo menos, os mais importantes- é do século 14, foi escrita em toscano e teve seus versos traduzidos para o português do século 19 por José Pedro Xavier Pinheiro, um baiano que morreu em 1882.
Os números são do portal Domínio Público (dominiopublico.gov.br), mantido pelo Ministério da Educação: A Divina Comédia, do florentino Dante Alighieri (1265-1321), deixa para trás, e por muito, clássicos como Mensagem, de Fernando Pessoa, e Dom Casmurro, de Machado -168 mil acessos contra 41 mil e 39 mil, respectivamente.
São obras de domínio público as escritas por autor morto há mais de 70 anos; o site também abriga aquelas cujos autores ou as famílias concedem uma licença. Foi o caso de Grande Sertão: Veredas -um link do Domínio Público deu acesso à íntegra do livro durante as comemorações de 50 anos da obra de Guimarães Rosa; depois, a editora Nova Fronteira a retirou da rede. A ação foi considerada ''promocional'' por funcionários do ministério.
Comédia
A Comédia dos Erros, de Shakespeare, aparece em quarto lugar na lista das mais baixadas no site -a coincidência do nome com a primeira colocada dá corda para uma piada corrente no MEC, segundo a qual o internauta mais desavisado estaria baixando as duas obras pensando fazerem elas parte do gênero cômico.
Já Maria Teresa Arrigoni, professora da UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina) e especialista em Dante, associa o fenômeno a uma reaparição da obra do autor em manifestações artísticas atuais, como o suspense best-seller Os Crimes do Mosaico (Planeta do Brasil, 2006), de Giulio Leoni, que tem o próprio Dante como detetive.
Até mesmo a novela Sete Pecados, da Globo, entraria nessa retomada dos temas da Divina Comédia, dos pecados à própria noção de paraíso, inferno e purgatório. A noção de purgatório, aliás, era recente quando a obra foi escrita, aponta Arrigoni. Estudos do historiador francês Jacques Le Goff mostram que ela surgiu por volta do século 13.
Dante e o mundo
O professor de teoria literária da Unicamp Carlos Berriel, por sua vez, aponta a coincidência -não casual- da ascensão de Dante com o que chama de crise da arte contemporânea -''''uma crise que antecede o desaparecimento''.
''A agonia da Bienal de São Paulo é um lado da mesma moeda do interesse em Dante'', diz. ''Certas manifestações do moderno estão esgotadas, e a Bienal, que é a expressão máxima do moderno, não diz mais nada a mais ninguém.''
Na opinião de Berriel, Dante organiza o mundo. ''Ele torna o além algo totalmente hierarquizado. Mostra que, por princípio, todo mundo pode organizar o seu inferno, céu e purgatório. Dante é antípoda da nossa época de ausência de hierarquia, de valores, com uma cultura descentrada.''
Visibilidade
O coordenador do Domínio Público, Marco Antonio Rodrigues, apresenta outras hipóteses para o sucesso de Dante. Primeiro: A Divina Comédia foi uma das primeiras obras a serem cadastradas no portal. Segundo: diferente de Dom Casmurro, por exemplo, só tem uma versão na página. E, por fim, após o alto número de acessos, foi criado um link específico para a obra no menu do Domínio Público.
A própria lista das obras mais acessadas, aponta, é uma alavanca para que as primeiras colocadas permaneçam no rol -ela motiva os internautas a conhecer os ''hits''.
Essa seria uma explicação também para outros ''fenômenos'' do portal, como os infantis A Borboleta Azul e O Peixinho e o Gato, da professora baiana Lenira Almeida Heck, hoje moradora de Lajeado (RS), que ficam em segundo e terceiro lugar no ranking -para se ter uma idéia, Dom Casmurro ocupa só a 11ª posição.
Memória e glória
Lenira assina, ao lado de seu nome verdadeiro, como ''Júlia Vehuiah'', que junta o apelido da mãe, que se chamava Julieta, com o nome de seu anjo. O codinome foi criado na época da composição do hino de Lajeado; seguiu com a autora e, hoje, serve para o que ela chama de despreocupação com o fato de sua obra estar disponível gratuitamente na internet -embora ela não dê permissão para o internauta imprimi-la.
''Sou professora, não dependo só dos meus livros para viver. E, se sou inspirada por Júlia e Vehuiah, a obra não me pertence.''
Ainda assim, ela já cuida da memória de seu nome e vislumbra um futuro de sucesso. ''Guardo todas as minhas crônicas e tudo o que sai sobre mim. No dia em que eu não estiver mais aqui, vai haver muito material para falar de Lenira Almeida Heck.''