“Vamos denunciar ingerência dos EUA na Bolívia”, diz ministro
Em fevereiro, duas denúncias de que os Estados Unidos desenvolvem ações de espionagem na Bolívia levantaram sérias suspeitas sobre os objetivos desestabilizadores da Casa Branca. Primeiro, descobriu-se a existência de grupos ilegais de inteligência na pol
Publicado 23/02/2008 21:30
Segundo o ministro de governo boliviano, Alfredo Rada, tais fatos, somados a anteriores, indicam uma ação política estadunidense.
“Um erro pode acontecer, qualquer um o comete. Mas, uma cadeia de erros, somada a algumas aproximações políticas que o embaixador Philip Goldberg tem com governadores de oposição, configura outra coisa. Podemos falar de ingerência, de espionagem”, avalia Rada, em entrevista para o Brasil de Fato.
O ministro lembra ainda a “relação fluída” que Goldberg mantém com a oposição e o fato de que ele trabalhou na ex-Iugoslávia na época de seu desmembramento. “É inevitável a associação que se faz com respeito a um Embaixador desse perfil, ou seja, conhecedor a fundo do que são as disputas regionais e étnicas em um determinado país”.
Veja abaixo a entrevista.
Em que estágio estão as investigações sobre o funcionamento de grupos ilegais de inteligência na polícia boliviana financiados pelos EUA?
Alfredo Rada – Esses grupos paralelos e irregulares de inteligência são resultado das gestões dos governos neoliberais, ao calor dos interesses da Embaixada dos EUA. O governo uma vez que detectou que havia uma atividade irregular desses grupos, procedeu a dissolvê-los. E, ao fazermos isso, estamos recuperando a soberania sobre os serviços de inteligência. A presença e a influência da embaixada dos EUA foram muito forte nesses setores. Por isso que o trabalho que o governo está fazendo nesse momento é o de desmontar um desses grupos, o Comando de Operações Especiais (Copes) [atual Organização de Estudos Policiais (Odep)]. Estamos verificando se não existem outros. E, no caso de encontrarmos mais grupos, também os iremos dissolver. Além disso, estamos fortalecendo a Direção Nacional de Inteligência (DNI), que é a estrutura legal que deve existir, mas que, além disso, é uma estrutura que deve obedecer aos mandos constitucionais.
Quais eram os objetivos desses grupos paralelos?
Alfredo Rada – Aparentemente, realizar investigações sobre atos criminosos, ou seja, narcotráfico, delitos especiais etc. No entanto, o Copes realizava trabalhos de inteligência política, relacionados com o seguimento a pessoas do governo, campanhas de desprestígio a importantes entidades de Estado, como, por exemplo, a YPFB [estatal de gás e petróleo] e o Ministério de Micro-Empresa e Produção, e infiltração na DNI. Era um grupo que contava com financiamento da Embaixada dos EUA, é algo que a própria Embaixada reconheceu. Esses financiamentos se davam por meio de cursos de capacitação, apoio econômico, bônus ao pessoal. Imagina, havia um vínculo econômico direto da Embaixada com esse grupo. Além do vínculo econômico, que já está demonstrado, a investigação demonstra que o Copes entregava à embaixada a informação que obtinha. Isso configura espionagem. Isso é mais grave se você agrega a denúncia do bolsista dos EUA, John Alexander Van Schaik, que disse que um funcionário da embaixada, Vincent Cooper, lhe havia pedido que fizesse trabalhos de informação, sobre médicos cubanos, venezuelanos que estão na Bolívia. Isso é espionagem também! Nesse momento, além de desmontar esse grupo irregular, que fazia inteligência política dentro da polícia, estamos retomando o controle soberano dos serviços de inteligência, que passa também por estabelecer claramente que nenhum tipo de espionagem que se efetue na Bolívia por parte dos EUA ou de outro país vai ser tolerado. Vincent Cooper não é um funcionário de nível menor. Tentaram apresentá-lo como mensageiro da embaixada, mas ele era o assistente do coronel James Campbell, que trabalha na área de segurança da embaixada e é chefe da missão militar estadunidense na Bolívia. Portanto, Cooper tinha um cargo importante. Cooper saiu da Bolívia e deixamos claramente estabelecido que ele não pode voltar. De fato, trata-se de uma expulsão. A expulsão de Cooper é algo que pode afetar a gestão diplomática do embaixador dos EUA, Philip Goldberg. Vamos seguir trabalhando nessa linha, vamos continuar a ter reuniões com o Goldberg. Aliás, isso é uma coisa inédita no país. Se você averigua o que acontecia antes, vai ver que os ministros de governo iam até a embaixada. Nesse governo, as coisas mudaram. O embaixador que venha e dê as explicações. Mas não vamos confundir as coisas. O tema espionagem vamos investigar, controlar e erradicar, como é devido. Mas não vamos misturar isso com outros temas que têm a ver com a relação Estado-Estado. Vamos seguir trabalhando nos âmbitos comerciais e econômicos, mas deixando claramente estabelecido que, diferentemente de antes, nós não vamos tolerar que a presença dos EUA na Bolívia tenha um caráter de ingerência, de espionagem, de ação política desestabilizadora.
O senhor disse que esses grupos faziam campanhas de desprestígio contra o governo. Que tipos de campanhas?
Alfredo Rada – Temos vários elementos que nos indicam que, por exemplo, o Copes acumulou informação sobre a YPFB, e as utilizou para desatar campanhas de desprestígio contra a própria empresa e quem a dirigia. Ou seja, são campanhas contra o governo.
Mas como eram tais campanhas? Nos meios de comunicação? Internamente?
Alfredo Rada – Dentro dos meios, era uma campanha pública de desprestígio. Claro que há detalhes que vou manter em sigilo, porque fazem parte da investigação, mas são elementos probatórios que estamos acumulando com respeito ao trabalho que o Copes efetuava antes de sua dissolução. A última tarefa dele foi o seguimento uma missão iraniana que chegou à Bolívia, em setembro de 2007. Isso demonstra que o Copes não trabalhava precisamente para os objetivos do Estado boliviano. O seguimento de uma missão diplomática de um país com o qual a Bolívia está interessada em estabelecer relações comerciais, diplomáticas, energéticas não é algo que interesse ao governo efetuar. Isso responde a outros tipos de interesse, seguramente externos. Está claro o vínculo que o Copes tinha com esses interesses externos.
Desde quando esses grupos passaram a realizar serviços de inteligência para a embaixada dos EUA?
Alfredo Rada – Varia o tempo das conformações dos distintos grupos. No caso específico do Copes, pelo menos desde 2001. Claro que maquiavam o que realmente efetuavam com algum outro tipo de trabalho. Isso é normal dentro das estruturas da inteligência política, ou seja, encobrir com determinado manto de legalidade e normalidade as ações que efetua. Por exemplo, o Copes passou a se denominar Odep, Organização de Estudos Policiais. Era uma denominação aparentemente inocente, até parecia acadêmica, mas, na verdade, seguia fazendo trabalhos de inteligência política. Não nos vamos deixar confundir com esses aspectos de cobertura, de maquiagem. Estamos, há um bom tempo, investigando o Copes, e acumulamos muitos elementos probatórios da atividade real que ele efetuava.
Como é a relação da embaixada dos Eua com a oposição, com a meia-lua (formada por Santa Cruz, Tarija, Beni e Pando, departamentos de oposição), com os Comitês Cívicos (grupos opositores formados principalmente por empresários e proprietários de terra)?
Alfredo Rada – É uma relação fluída. Para nós, essa relação com governadores de oposição, chegando ao extremo de ter organizado viagens deles aos EUA com financiamento da Usaid [Agência Estadunidense para o Desenvolvimento Internacional], mostra que a embaixada dos EUA está indo mais além dos limites diplomáticos de sua gestão. Está já ingressando no campo político. Essa aproximação com governadores de oposição é ação política. E nós vamos denunciar diante do país e da comunidade internacional que essa ação política constitui ingerência em nossos assuntos internos.
Como vocês avaliam a atuação de Philip Goldberg na Bolívia desde sua chegada?
Alfredo Rada – Goldberg vem acumulando, ao longo de sua gestão, um conjunto de erros, como ele denominou. Por exemplo, um “erro” foi quando uma cidadã estadunidense, Donna Thi, foi encontrada no aeroporto de El Alto ingressando no país com um carregamento de 500 balas que James Campbell havia solicitado. Foi dito que havia sido um erro. Depois, Goldberg apareceu fotografado junto a um delinqüente colombiano, atualmente preso, acusado de ter antecedentes de para-militarismo na Colômbia e ações criminosas em outros países. E ele apareceu junto com ele no momento que sua quadrilha fazia ações em Santa Cruz. Foi dito que havia sido um erro. Agora, está comprovado que a Embaixada dos EUA financiava o Copes, e que entregava relatórios. Também foi dito que havia sido um erro. E, finalmente, a expulsão de Vincent Cooper mostra que o bolsista estadunidense dizia a verdade. Portanto, é uma cadeia de erros. Um erro pode acontecer, qualquer um o comete. Mas, uma cadeia de erros, somada a algumas aproximações políticas que Goldberg tem com governadores de oposição, configura outra coisa. Podemos falar de ingerência, de espionagem. A gestão de Goldberg possui essas manchas. Imagino que o Departamento de Estado dos EUA e a Casa Branca estarão avaliando esses aspectos, se uma pessoa como ele, que tem essas manchas, é adequada para representar os EUA no nosso país.
Vocês acreditam que ele veio à Bolívia com o objetivo claro de criar desestabilidade, dividir o país?
Alfredo Rada – O que acontece é que existem fatos que vão se acumulando e que parecem indicar que Philip Goldberg está atuando com fins politicamente motivados. Há fatos, há erros. Por outro lado, claro que gera desconfianças que a trajetória diplomática de Goldberg o situou na ex-Iugoslávia, na época dos conflitos inter-regionais e inter-étnicos, e o situou na África do Sul, em circunstâncias similares. Então, é inevitável a associação que se faz com respeito a um embaixador desse perfil, ou seja, conhecedor a fundo do que são as disputas regionais e étnicas em um determinado país. A Iugoslávia, como sabemos, terminou despedaçada, em virtude de alguns fenômenos que se estão dando na Bolívia, como regionalismo, racismo, separatismo etc. Essa é a trajetória que ele tem que, somado a seus erros, gera desconfiança, quando o que se trata é construir relações bilaterais baseadas na confiança.
Há alguns meses, o presidente Evo Morales disse que se deveria controlar o dinheiro das ONGs que trabalhavam na Bolívia. Existem casos de ONGs que financiam grupos oposicionistas ou que realizam algum trabalho político?
Alfredo Rada – Temos evidências com respeito ao trabalho de ONGs vinculado a ações políticas de desestabilização do governo. Claro que não vamos generalizar. Mas há determinadas ONGs que recebem financiamento estrangeiro, em alguns casos estadunidenses, que, segundo uma denúncia que efetuou há alguns meses atrás Juan Ramón Quintana [Ministro da Presidência], estão realizando tarefas abertamente políticas de oposição e desestabilização do governo. Nós, claro, tomamos isso muito a sério, e vamos continuar as investigações. Além disso, emitimos um Decreto Supremo que obriga todas as ONGs a transparentar suas fontes de ingresso, além das atividades que realizam. É uma maneira de controlar, porque obviamente não seria a primeira vez, nem o primeiro país em que as ações externas de desestabilização são feitas diretamente, através dos próprios tentáculos da embaixada, ou indiretamente, financiando projetos aparentemente independentes, mas que têm trabalhos muito claros de desestabilização política. No atual estágio das investigações, acreditamos que o governo já tenha condições de identificar instituições, projetos aparentemente de desenvolvimento, culturais, com financiamento dos EUA, que na verdade estão realizando trabalhos políticos vinculados à oposição, à geração de movimentos de desestabilização do governo do presidente Evo Morales.