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Para ex-secretário do Trabalho dos EUA, Obama é um idealista

Há quase 40 anos, Bill Clinton e eu cruzamos de navio o Atlântico para uma residência como estudantes na Universidade de Oxford. Eu me lembro de duas coisas daquela viagem. A primeira foi de sofrer enjôo marítimo e me retirar para minha pequena cabine.

Nós dois éramos politicamente ativos, mas agora buscávamos colocar um oceano entre nós e as decepções que marcaram os Estados Unidos em 1968. Dois meses antes, Chicago tinha sido cenário de uma convenção democrática tumultuada, durante a qual muitos dos jovens atraídos para a política pela campanha antiguerra de Eugene McCarthy e pela convocação de Robert Kennedy por mudança social foram espancados pela polícia. Na época de nossa viagem, Robert Kennedy já tinha sido assassinado, a candidatura de McCarthy fracassou, os democratas estavam caminhando para indicar Hubert Humphrey e os republicanos a Richard Nixon. A Guerra do Vietnã prosseguia. Várias cidades americanas estavam em chamas.



Minha outra lembrança daquela viagem foi encontrar Bobby Baker a bordo. Sua decisão de viajar para a Inglaterra naquele momento, naquele navio em particular, parecia uma piada cruel -sugerindo que não havia escapatória real. (Baker foi colega de Lyndon Johnson até Robert Kennedy, então secretário de Justiça, expor seus supostos acordos com o crime organizado, o que o forçou a renunciar.)



Por que eu incomodo você com estas lembranças? Porque os levantes de 1968 dividiram o Partido Democrata e marcaram o início da ascensão de uma nova maioria republicana -e a subseqüente ascensão dos neoconservadores na política externa, redutores de impostos no lado da oferta na economia e dos cristãos evangélicos na política social.



O establishment democrata ficou à deriva em uma sonolência confortável de aparente maioria sólida no Congresso. A esquerda praticamente abandonou a política -alguns desaparecendo nas montanhas em busca de iluminação espiritual; os mais acadêmicos desaparecendo na hermenêutica e no desconstrucionismo; negros, gays e feministas se perdendo nas políticas de “identidade”; e os poucos que permaneceram (incluindo Bill e eu) apoiaram George McGovern em sua desastrosa candidatura para presidente em 1972.



De lá para cá, tem sido basicamente uma política de direita -Nixon, Ford, Carter, Reagan e os dois Bush. E, é claro, o governo do meu velho amigo, do qual tenho orgulho de ter sido membro (como secretário do Trabalho). Mas Bill não moveu os democratas ou o país para a esquerda. Ele moveu os democratas para a direita e manteve o país basicamente onde estava.



Estariam os Estados Unidos se aproximando de outro ponto de virada, como 1968 -mas um que reverteria o grande pêndulo da política americana e deslocaria o país para a esquerda? A presidência de George W. Bush é um fracasso tão abjeto -apenas 30% dos americanos aprovam seu trabalho- que o país pode estar pronto. A economia está caminhando para uma recessão, ou pior. A desigualdade de renda e riqueza é a maior em um século.



Some a isto o fato dos americanos não serem -talvez nunca tenham sido- tão direitistas quanto seus líderes republicanos alegam. Segundo as pesquisas, a maioria dos americanos agora acredita que os cortes de impostos de Bush em 2001 e 2003 foram injustos; a maioria acha que a invasão no Iraque foi um erro e que os Estados Unidos deviam bater em retirada; a maioria diz estar disposta a pagar mais impostos para melhorar as escolas públicas; a maioria apóia uma maior regulamentação sobre as empresas visando melhorar o meio ambiente; a maioria acha que relações homossexuais entre adultos em comum acordo devem ser legais e que a decisão do aborto deve caber às mulheres e seus médicos; a grande maioria acredita que as corporações exercem poder demais em Washington; e a maioria apóia restrições ao lobby e às campanhas de financiamento político.



Mas isto tudo é suficiente para prenunciar um deslocamento para a esquerda na política americana? Não conte com isso. John McCain, o provável candidato republicano, tem boas chances. Apesar de não fazer parte do establishment republicano — ele apóia reforma das leis de imigração, foi inicialmente contrário aos cortes de impostos de Bush e não se prostra para a direita evangélica — não se engane: McCain é um direitista.



E quanto aos democratas? John Edwards, o mais esquerdista dos três principais candidatos e o único que enfatizou consistentemente o aumento da desigualdade de renda e o agravamento dos apuros dos pobres nos Estados Unidos, foi forçado a desistir. Dos dois que sobraram, Hillary Clinton não é esquerdista.



Como senadora, ela votou a favor da Guerra no Iraque em 2002 e, mais recentemente, a favor de rotular a Guarda Revolucionária do Irã como sendo organização terrorista. Ela deseja um atendimento de saúde universal, mas não apóia um plano de “único pagador” como o do Serviço Nacional de Saúde do Reino Unido, que é a melhor forma de controlar os custos médicos.



Ela não se compromete a aumentar os impostos sobre os ricos para financiar programas sociais, exceto reverter os cortes de Bush. Ela nem mesmo pagará pelos crescentes custos da aposentadoria da geração “baby boomer” (pós-Segunda Guerra Mundial), aumentando o percentual de renda sujeito a impostos do seguro social.



Obama pelo menos tem a coragem de exigir que os ricos paguem mais pelo seguro social, mas seu plano para a saúde não é mais radical que o de Hillary. Ele fala mais abertamente do que ela sobre a necessidade de reduzir a desigualdade, mas não é específico sobre se aumentará, ou quanto, os impostos sobre os muito ricos para custear os programas sociais, além de reverter os cortes de Bush. Ele foi contra a guerra no Iraque desde o início, mas até o momento evitou muitos detalhes sobre como e quando retirará as tropas americanas.



Mas a “Obamania” quase não tem nada a ver com políticas específicas. Em vez disso, Obama é um eco quase perfeito do John F. Kennedy que ouvimos em 1960 e do Robert Kennedy ouvido pela última vez em 1968. É um chamado pela unidade nacional e sacrifício — não no interesse da bravura militar mas na causa da justiça social, tanto no país quanto ao redor do mundo.


 


Seu apelo é por um maior engajamento cívico, não necessariamente um maior do governo. Ele tem a voz e emprega as técnicas do organizador comunitário que já foi em Chicago, convidando as pessoas a se unirem. Os Estados Unidos não eram convocados de forma tão incisiva a seguirem seus ideais desde 1968.



É fácil desdenhar a Obamania como outro surto de ingenuidade que ocasionalmente toma os eleitores americanos. Talvez seja. É com isso que Hillary Clinton e meu amigo há 40 anos estão contando. Mas se os Clinton puderem parar para pensar no que sentiam e entendiam naquela época, eles poderão chegar a uma conclusão diferente, como eu.



Ver o entusiasmo por Obama como uma inclinação potencial para a “esquerda” não descreve o que está ocorrendo. Ele não está prometendo e não promoverá níveis europeus de bem-estar social e impostos. Mas os Estados Unidos parecem prontos para iniciar um novo capítulo político.



O país deseja ser novamente inspirado, como foi há 40 anos. Lembre que nem JFK e nem seu irmão eram esquerdistas. Eles eram realistas, mas também idealistas. Eles entendiam que nada de bom acontece em Washington a menos que o público seja mobilizado para fazer com que aconteça.



Por motivos de estratégia eleitoral prática assim como de aspiração moral elevada, eles nunca se cansaram de lembrar ao país de seus princípios fundadores — acima de tudo, o de que todos os homens foram criados iguais.



* Robert Reich é ex-secretário do Trabalho federal (administração Clinton) e professor de política pública na Universidade da Califórnia, em Berkeley.