STF não decidirá agora sobre as células da discórdia
A constitucionalidade do uso de células-tronco de embriões humanos em pesquisas científicas será julgada na quarta-feira (5), mas é praticamente impossível que o plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) tome uma decisão definitiva sobre o tema já na
Publicado 02/03/2008 20:01
O interesse científico nas células-tronco embrionárias deve-se ao fato delas serem capazes de formar qualquer tipo de órgão ou tecido, característica que as distingue das células-tronco adultas, mais especializadas. Muitos pesquisadores apostam que os estudos com embriões podem, no futuro, trazer a cura para doenças degenerativas, recuperar traumas na medula e mesmo gerar clones de órgãos para transplante. Outros acreditam que as pesquisas deveriam se concentrar nas células adultas e levar em conta os limites éticos.
As divergências de opiniões são tão acentuadas que levaram o STF a realizar, pela primeira vez em sua história, uma audiência pública. Ocorrido em abril de 2007, o debate reuniu mais de 30 especialistas, com argumentos a favor e contra. Nem todos os ministros do Supremo, no entanto, estiveram presentes no debate. Enviaram assessores.
Autorizadas pelo Congresso em 2005, as pesquisas com células-tronco embrionárias tiveram a sua validade questionada dois meses após a aprovação da legislação, por meio de uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (Adin), ajuizada pelo então procurador-geral da República, Cláudio Fonteles. O problema é que, para decifrar a estrutura das células, o embrião tem de ser destruído, ou seja, a prática seria equivalente ao aborto. O mesmo argumento é usado pela Igreja Católica.
“Os embriologistas são unânimes em dizer que a vida começa com a fecundação. O princípio da liberdade de pesquisa não pode contrariar a defesa da vida, uma garantia constitucional”, sustenta Fonteles. Tão logo o procurador ajuizou a ação, recebeu o apoio da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). Mas garante que não se amparou em argumentos religiosos, e sim em aspectos jurídicos e científicos. “Há outras linhas de pesquisa com células-tronco adultas que podem ser seguidas sem problemas. Longe de cultuar o obscurantismo, quero impedir apenas esse caminho que fere a dignidade humana.”
Neste ano, a CNBB lançou uma grande ofensiva contra o aborto, a eutanásia e as pesquisas com embriões no lançamento da Campanha da Fraternidade de 2008. “Não se trata da defesa de um dogma religioso, mas de valores humanos e da análise da boa ciência. Qualquer médico sabe que a vida começa na concepção”, disse o secretário-geral da entidade, dom Dimas Lara Barbosa, na ocasião. Dom Orlando Brandes, arcebispo de Londrina e presidente da comissão episcopal para a família e a vida da CNBB, diz que Igreja Católica também condena procedimentos de inseminação artificial que levem ao descarte ou o congelamento de embriões. “É imoral manipular a vida dessa maneira.”
Também contrária às pesquisas com embriões, a bióloga Cláudia Batista, professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), cobra os resultados desses estudos. “Há um discurso falacioso que promete a cura para as mais variadas doenças no futuro próximo. Na prática, porém, nenhuma dessas pesquisas mostrou resultados até agora, ao passo que os estudos com células adultas já demonstraram eficácia no tratamento de dezenas de moléstias”, afirma. “Utilizar embriões humanos é extrapolar demais os limites da ciência.”
De acordo com Lenise Garcia, professora do Departamento de Biologia Celular da Universidade de Brasília (UnB), o veto à utilização de embriões humanos não impediria o avanço da ciência. “Há estudos que comprovam que as células encontradas no líquido amniótico (que envolve o feto durante a gravidez) possuem características muito semelhantes às das células embrionárias. Existem muitos outros caminhos para se trilhar.”
Para reforçar o argumento, a professora Lenise chama a atenção para os avanços revelados recentemente por cientistas estrangeiros. Uma equipe da Universidade de Kyoto (Japão) e outra da Universidade de Wisconsin (EUA) conseguiram transformar células da pele humana em células-tronco pluripotentes, isto é, que podem gerar diferentes tipos de tecidos e órgãos. As duas técnicas, no entanto, apresentam riscos de mutação.
A biofísica Lygia da Veiga Pereira, chefe do laboratório de genética molecular da Universidade de São Paulo (USP), acredita que essas pesquisas abrem novos caminhos, mas não diminuem a relevância dos estudos com embriões humanos. “Uma boa cópia de Picasso é belíssima, mas nunca supera o original”, compara. “Somos acusados ter poucos resultados para apresentar, mas as pesquisas com embriões humanos começaram há pouco tempo. Em animais, há numerosos casos comprovados de avanços no tratamento de mal de Parkinson, diabetes e traumas na medula espinhal”.
Embora acredite que o embrião seja uma forma de vida, Salmo Raskin, presidente da Sociedade Brasileira de Genética Médica, recomenda que os ministros do Supremo evitem dar uma resposta definitiva sobre o início da vida, tema controverso na academia. “A pergunta que deveria orientá-los é: a partir de qual momento da vida humana é inconcebível deixar de protegê-la, mesmo se com isso pudéssemos salvar outras vidas?”.
Para o advogado Erickson Marques, especialista em bioética, os magistrados brasileiros podem seguir o caminho trilhado pelos espanhóis há 12 anos, quando as pesquisas com células embrionárias foram alvo de contestação no Tribunal Constitucional do país. “Os juízes partiram da premissa de que o Estado só deve tutelar os seres humanos e a vida em potencial. Como os embriões seriam descartados de qualquer maneira, não deveriam ser amparados pelo poder público. O que o Supremo não pode é cair na armadilha de entrar na inglória discussão sobre o início da vida.”
Preocupado com a continuidade dos estudos com células-tronco embrionárias, o presidente da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), Celso Lafer, encaminhou uma carta à ministra Ellen Gracie, presidente do STF. No texto, Lafer defende que os controles estabelecidos pela Lei de Biossegurança “conciliam adequadamente os valores envolvidos, possibilitando os avanços da ciência em defesa da vida e o respeito aos padrões éticos de nossa sociedade”.
O CNPq, órgão de fomento ligado ao Ministério da Ciência e Tecnologia, não se pronunciou sobre o tema, mas também financia trabalhos dessa natureza. Dos 45 projetos de pesquisa com células-tronco aprovados no último edital específico do CNPq, seis são trabalhos que utilizam embriões.
Na plenária de quarta-feira, o primeiro ministro a votar será o relator Carlos Ayres Britto. A exemplo de seus pares, ele mantém sob sigilo a decisão. Antecipou, no entanto, que não levará em conta as conseqüências que a interrupção dessas pesquisas causará, e sim os argumentos jurídicos. Na seqüência, os outros dez ministros apresentarão seus votos.
É quase certo, contudo, que ao menos um deles pedirá para rever o processo e solicitará nova audiência. A julgar pela demora na apreciação de outros temas polêmicos que tramitam no STF, como o aborto de bebês anencéfalos, que aguarda uma audiência pública há mais de três anos, os estudos com células embrionárias não terão o destino definido tão cedo.
Fonte: Carta Capital (http://www.cartacapital.com.br)