Novo plano irá combater abusos da mídia contra mulheres
“Comigo não, violão. Na cara que mamãe beijou, Zé Ruela nenhum bota a mão”, canta a sambista Alcione, na música Maria da Penha, batizada com o nome da lei que pune com mais rigor a violência doméstica contra mulheres. Sancionada em 2006, a lei represen
Publicado 08/03/2008 14:36
O governo federal acaba de apresentar o novo plano de políticas para as mulheres (clique aqui para ler sobe o plano ) e, ao lado de temas históricos como inclusão social, educação, saúde, combate à violência e à segregação, figura pela primeira vez o item “cultura, comunicação e mídia democráticas e não-discriminatórias”. Não é pouco. A própria Alcione, em entrevista a CartaCapital, prevê que a nova posição do governo renderá “uma briga muito grande”. Ela menciona, sabiamente, o cerne da questão: “As emissoras de tevê abusam, o pessoal da propaganda também. A desvalorização do sexo feminino vem daí”.
Não é de hoje que tanto grupos organizados de mulheres como as próprias, individualmente, não se sentem bem representadas na tevê, nos outdoors e nas rádios. “O tema mídia sempre foi caro ao movimento de mulheres. Agora essa discussão está em um patamar muito amadurecido”, avalia a ministra Nilcéa Freire, da Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres (SPM). Ela anuncia, em primeira mão, a criação de um observatório nacional da mídia, ainda este ano, para tratar do tema.
“Vamos monitorar sistematicamente a imagem da mulher na mídia, numa ação conjunta com a sociedade civil. A sociedade tem o direito de opinar, de discutir e de solicitar a retirada de algo que não esteja de acordo com padrões éticos do que somos e do que queremos construir. Vamos criar esse diálogo.” A ministra destaca a necessidade de se desenvolver uma metodologia para tanto, e diz que tomará como base o Observatório Maria da Penha, com trabalho ainda incipiente.
Criado em setembro de 2007 para verificar o cumprimento da lei, o Maria da Penha recebeu 800 mil reais para os dois primeiros anos de trabalho. “Em abril, testaremos os indicadores que estamos construindo e, até o final do semestre, colocaremos nosso site no ar. A intenção é criar mecanismos que possam ser replicados”, diz Sílvia de Aquino, professora da Universidade Federal da Bahia (UFBA) e uma das coordenadoras nacionais do grupo, que reúne cerca de 10 organizações feministas.
A Ouvidoria da SPM recebe todo o tipo de denúncias, desde casos de violência contra a mulher como, também, de programação televisiva ou publicidade abusivas. Neste último, o Conselho Nacional de Auto-Regulamentação Publicitária (Conar) mantém diálogo com a secretaria. O trabalho, porém, não é abrangente por tratar apenas de denúncias pontuais.
Por sua vez, as entidades ligadas ao movimento de mulheres dificilmente são atendidas em suas queixas a anunciantes ou emissoras de tevê. Um caso envolvendo a cervejaria Skol e a ONG Observatório da Mulher exemplifica a situação. Em 2006, na campanha publicitária “Musa do Verão” amplamente divulgada na televisão, uma mulher loura e magra, de biquíni, era clonada e distribuída, como uma garrafa de cerveja, para homens. A ONG protestou ao Ministério Público de São Paulo, que instaurou um Inquérito Civil Público. A Ambev (detentora da Skol) acenou positivamente a um Termo de Ajustamento de Conduta, mas não houve acordo sobre os termos e a empresa abandonou o diálogo. O caso está sob os cuidados do Ministério Público Federal e a ONG informa que entrará com uma Ação Civil Pública, agora na Justiça Federal. Procuradas por CartaCapital, a Ambev e a Skol preferiram não se manifestar sobre o assunto.
Em um caso com desfecho diferente, denunciado em 2003 pelo Cladem-Brasil, uma rede latino-americana de ONGs, a cervejaria Kaiser colocou em circulação as bolachas de chope que diziam “Mulher e Kaiser: especialidades da casa”. Por força de um Termo de Ajuste de Conduta com a Promotoria de Defesa do Consumidor de São Paulo, teve de fazer anúncios de contra-propaganda em jornal e revista, além de financiar seminários em cinco regiões do País para reparar os danos à imagem da mulher.
Aos poucos, a luta dos movimentos sociais para colocar o comportamento da mídia em xeque alcançou resultados mais sólidos. Em abril do ano passado, uma audiência pública no Ministério Público Federal colocou pela primeira vez frente a frente diretores das principais emissoras de tevê do País e entidades de mulheres, que exigiam direito de resposta ante do tratamento dado a elas na programação. A audiência resultou na criação de um grupo de trabalho que peregrinou em reuniões com as emissoras, até que representantes da Associação Brasileira de Rádio e Televisão (Abert) e da Associação Brasileira de Radiodifusores (Abra) anunciaram o encerramento do diálogo. O direito de resposta, acordado na audiência, não seria concedido.
O presidente da Abert, Daniel Pimentel Slavieiro disse a CartaCapital não iria se manifestar sobre o assunto.
“Vimos um duplo discurso, e percebemos que esbarramos nas limitações das emissoras”, entende Rachel Moreno, que integra a Articulação Mulher e Mídia, grupo de cerca de 20 entidades ligadas à questão feminina. Ela provoca: “Somos 52% da população, somos a maioria das telespectadoras, decidimos 80% do consumo. Não convém brigar com as mulheres, convém contemplá-las, respeitá-las”. A psicóloga e pesquisadora da ONG Observatório da Mulher diz que, fora algumas exceções, os programas de maior audiência da tevê difundem valores do século passado. “O prêmio para a mulher é casar, os conflitos de classe se resolvem na cama, os modelos de comportamento são conservadores e o estereótipo da beleza é opressor”.
Apesar disso, Rachel confia que 2008 será um ano decisivo na relação entre as mulheres e a mídia. “Queremos realizar um seminário nacional, em conjunto com a secretaria, para discutir monitoramento social e formar núcleos de acompanhamento da mídia em todos os cantos do País”, diz ela, com a experiência de quem atuou na Campanha Contra a Baixaria na tevê (iniciativa que tirou do ar o apelativo programa de João Kléber).
Rachel estima que até o fim deste ano o monitoramento poderá estar acontecendo. “Comunicação tem duas mãos. Controle social não é censura, é diálogo. Queremos ser bem representadas e ser tratadas com respeito pelos os veículos de comunicação.”
Bem longe da imagem de uma feminista, a atriz Preta Gil está no meio de uma batalha que reúne os mesmos argumentos de Rachel e da ministra Nilcéa. No início do ano, ela foi à praia no Rio de Janeiro, tomou um caldo no mar, depois tomou uma ducha. Bastou para se tornar alvo de chacota e brincadeiras grosseiras, como uma representação feita pelo humorístico Pânico na TV, em que uma atriz era puxada do mar com cordas, como uma baleia atolada. “Foi um exagero, um desrespeito total”, diz Preta.
Desde o lançamento de seu primeiro CD, em 2003, em que aparecia nua no encarte, Preta Gil foi tomada como “a gordinha bem resolvida”. Ela confessa que era “desavisada” na época e que nunca quis essa bandeira. “Acho chato ter de ficar me enquadrando em um determinado julgamento. É claro que a forma física não deixa de ser uma questão em minha vida, tanto que estou me cuidando mais, para preservar a minha saúde”, diz, e conclui: “A bandeira que eu levanto é a mulher ser feliz do jeito que é, buscar a auto-estima. Acho importante que a sociedade tenha seu espelho na mídia.”
Fonte: Carta Capital