Rafael Correa: 'Nunca na vida vi alguém das Farc'
Veemente como de costume, o presidente equatoriano, Rafael Correa, rejeita todas as acusações sobre a relação de seu governo com as Farc (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia). Em entrevista ao jornal espanhol El País, publicada neste sábad
Publicado 05/04/2008 18:31
Em um dos piores momentos das relações entre Bogotá e Quito, Correa afirma, que caso continue o que ele considera uma campanha de desprestígio contra ele e seu país, promovida pelo ultradireitista presidente colombiano, Álvaro Uribe, será muito difícil o restabelecimento das relações diplomáticas.
Equador e Colômbia romperam depois que o exército colombiano bombardeou absurdamente um acampamento das Farc em território equatoriano em 1º de março passado. O ataque matou Raúl Reyes — o número 2 da guerrilha — e outras 25 pessoas, entre elas um equatoriano. A Colômbia informou que no computador de Reyes foi encontrada informação que vincula política e financeiramente os governos do Equador e da Venezuela com as Farc.
Correa reconhece que enviou um emissário para falar com Reyes, para libertar 13 reféns da guerrilha, entre eles Ingrid Betancourt — mas a operação foi frustrada depois do ataque colombiano. Sobre o suposto financiamento pelas Farc de sua campanha eleitoral em 2006, o presidente equatoriano nega. Além disso, ele denuncia a grande infiltração da CIA no serviço secreto do Equador. Confira abaixo a entrevista.
Apesar das recentes declarações de membros do seu governo sobre a necessidade de retomar as relações com Bogotá, o Equador apresentou uma demanda contra a Colômbia no Tribunal Internacional de Haia, por fumigar as plantações de coca na fronteira. Isto tornará muito mais difícil o reatamento das relações, não?
Não penso assim. Vejamos. Depois da reunião do Grupo do Rio em Santo Domingo, quando a conduta da Colômbia foi condenada, o país teve de pedir desculpas e se comprometer a não agredir mais o Equador. Depois que isso foi ratificado pela OEA, o governo colombiano insistiu em uma terrível campanha de desprestígio, difundindo coisas do computador de Reyes, milagrosamente salvo de um bombardeio, para tentar relacionar o governo equatoriano às Farc, o que representa uma deslealdade em função do que havia sido acordado para superar o conflito.
As coisas se complicam quando entre os mortos se descobre que há um equatoriano, e a Colômbia sabia disso. Quando nós protestamos pela morte desse equatoriano, o ministro (da Defesa colombiano) Santos diz que foi legítimo o ataque ao acampamento terrorista, como eles o chamam, e basicamente que era bom que o equatoriano estivesse morto. Algo semelhante é repetido pelo ministro das Relações Exteriores da Colômbia e pelo próprio presidente Uribe. Diante desses sinais, é difícil começar um processo de restabelecimento de relações. Com isso ninguém ganha, todos perdemos. Ninguém procurou a agressão colombiana, eu não a esperava.
Estou com 40% do país embaixo d'água, estamos em uma emergência nacional, tenho minhas forças armadas ocupadas salvando pessoas. A mim não interessa manter uma disputa com Bogotá, mas enquanto vierem essas demonstrações negativas da Colômbia será difícil restabelecer relações. A demanda em Haia é uma reação a essas agressões, mas é uma reação que vem sendo preparada há vários meses, porque com relação à fumigação com glifosato havia graves abusos da Colômbia. Tentamos fazê-los parar com essas fumigações e não conseguimos. Ao contrário, recebemos respostas soberbas e prepotentes. O que o Equador faz agora é recorrer aos organismos internacionais para defender seus direitos, e não creio que isso vá prejudicar ainda mais as relações. O prejuízo é provocado pela Colômbia.
A Colômbia afirma que quando se tenta erradicar a coca manualmente os trabalhadores do lado equatoriano são alvo de tiros e o Equador não quer que se erradique o cultivo através de fumigações aéreas. Que tipo de erradicação seria aceita pelos dois países?
A erradicação manual, sem dúvida. Que disparam do lado equatoriano, vá ver a fronteira, veja como é largo o rio San Miguel. Não sei como se pode fazer isso. A realidade é que nós limitamos com as Farc. Quase não há presença militar colombiana na fronteira sul. Nós temos 13 destacamentos lá e a Colômbia só dois. O que Bogotá tem de fazer é mandar forças para a fronteira sul. Sem dúvida a estratégia de Uribe foi atacar as Farc pelo norte e que nós a agüentássemos na fronteira equatoriana e nos envolvermos no Plano Colômbia (programa de combate à guerrilha e ao narcotráfico implementado em 1999 e financiado pelos Estados Unidos).
Você sabe quanto nos custa esse problema que não é nosso? Primeiro, nos últimos anos nos custou 13 mortos das forças de segurança, sem contar os civis. Segundo, tenho 11 mil soldados na fronteira norte, quando em épocas normais deveríamos ter 3 mil. Isso nos custa US$ 100 milhões por ano, para um país pobre como o Equador. A Colômbia tem de reforçar a presença militar e policial em sua fronteira sul, assim poderá proteger a erradicação manual da coca.
Na disputa diplomática, o Equador conseguiu que a OEA “rejeitasse” o ataque colombiano, mas não a “condenação” do mesmo. O senhor está satisfeito com esse resultado?
Nós nunca buscamos a palavra “condenação” porque a Colômbia já tinha reconhecido a agressão. Sempre buscamos a rejeição e que seja inadmissível na região que um país viole a soberania de outro sob o pretexto de sua segurança nacional e que persiga terroristas fora de suas fronteiras. Inclusive à diferença de países que praticam essa doutrina de perseguir terroristas, como Israel. Israel ataca talvez os países árabes que dão refúgio a terroristas árabes.
Aqui a Colômbia ataca o Equador porque supostamente aqui se refugiam colombianos, essa é a grande diferença, é um problema que não é nosso. Escute, se o mundo não confia em nossa boa fé, em que não temos nada que ver com as Farc, confiem em nossa inteligência: quem em sã consciência vai se interessar em se envolver em uma guerra civil, que ganhamos? Por favor, o problema é da Colômbia e eles não o souberam resolver.
Se o problema é deles, por que seu ministro do Interior, Gustavo Larrea, se encontrou com Reyes e por que se estabelece esse contato às costas do governo colombiano?
E por que eu deveria comunicar a Uribe? Entre outras coisas, há seqüestrados equatorianos, como Marcelino Arriaga. É engraçado, as Farc passaram os últimos oito anos denunciando que o governo de Uribe tem relação com o narcotráfico e os paramilitares, mas aí não é credível o que as Farc dizem. De repente, encontram supostas cartas de um suposto computador de Raúl Reyes e, sim, é credível. Que dupla moral, mas como podemos acreditar nessas coisas?
Em todo caso, se querem acreditar, verifiquem o que quiserem, nós não temos nada que esconder. O que aconteceu é que Gustavo Larrea vai como meu delegado à operação de Emmanuel, o menino que iam libertar (Correa refere-se ao filho nascido em cativeiro de Clara Rojas, seqüestrada junto com Ingrid Betancourt em 2002). Reúne-se com Uribe em Villavicencio e lhe diz que vamos participar de ações humanitárias. Eu insisti ao presidente Uribe que o Equador interviria para procurar a libertação dos reféns e se apresentou a oportunidade dessa intervenção.
Houve uma única reunião com Raúl Reyes em um país neutro para tentar libertar reféns equatorianos e também Ingrid Betancourt. Muitos senadores americanos se reuniram com as Farc por razões humanitárias e também muitos parlamentares europeus e enviados do (presidente francês, Nicolas) Sarkozy, mas se nós nos reunimos com a guerrilha é que temos uma aliança com eles…
Será porque o senhor não informou sobre a reunião de Larrea e Reyes ao governo colombiano?
Não tenho por que avisar Uribe. Para quê, para que bombardeie as conversas? Sim, eu lhes disse que íamos intervir, dissemos isso em 31 de dezembro passado em Villavicencio. Em todo caso, há muitas ONGs – que por razões de segurança não posso dizer seus nomes – que também estão intercedendo pela libertação dos reféns, que o governo colombiano não sabe. E foi alguma dessas ONGs que nos impeliu para essa ação humanitária. Mas acredita que vou comunicar a Uribe que vamos nos reunir a tal hora em tal lugar para falar dos reféns, para que ele mande os aviões bombardear? Por favor, não sejamos ingênuos. Se acaso continuamos, estamos tentando libertar mais reféns, tomara que não nos estejam seguindo para nos bombardear.
Onde foi a reunião de Larrea e Reyes? O que acertaram?
Não posso lhe dizer por razões de segurança, mas não foi na Colômbia nem no Equador, foi em um país neutro, e o que se acordou foi a ação humanitária.
O senhor disse que o ataque em 1º de março havia abortado a libertação dos reféns. Estava tão perto de consegui-lo?
Sim. senhor. As Farc haviam se comprometido a libertar 12 reféns, entre eles Ingrid Betancourt e o equatoriano Marcelino Arriaga em março.
No computador de Reyes também se afirma que o senhor e alguns de seus mais estreitos colaboradores tiveram contatos e receberam dinheiro das Farc. É verdade?
Engraçado, acabam de nos mandar esses documentos e acabo de ler isso. Mas há tantas inconsistências que essa mentira vai cair por seu próprio peso. E, supondo que fosse verdadeira a carta do suposto computador de Reyes, o que lhe garante que alguém não se apresentou durante a campanha eleitoral em nome de Rafael Correa e enganou as Farc? Aqui temos controles estritos dos gastos eleitorais, por isso não temos a narcopolítica que se vê na Colômbia. Revisem o que quiserem, não temos nada a esconder.
A história de Franklin Aisalla, o serralheiro equatoriano morto no ataque, é rocambolesca. Primeiro seu governo nega que pertencesse às Farc e depois fica demonstrado que o serviço secreto equatoriano o seguia por seu vínculo com a guerrilha há vários anos. Funciona tão mal a comunicação entre as forças de segurança e o governo?
No início, a única coisa que sabíamos é que era equatoriano, e dissemos que isso agravava a crise. Depois se comprovou que tem uma ligação com as Farc, embora ainda não haja provas de que tenha sido guerrilheiro ou algo assim, basicamente que tinha uma relação sentimental com uma guerrilheira (a imprensa local afirma que Aisalla se encarregava da logística e da falsificação de documentos para a guerrilha).
Sim, digo-lhe abertamente que houve uma demora de nosso serviço secreto em me informar sobre o caso. Infelizmente, temos uma grande infiltração da CIA em nosso serviço secreto e esses elementos tentaram ocultar informação do presidente para beneficiar a posição da Colômbia. Tomaremos medidas drásticas a esse respeito.
Refere-se a um expurgo do serviço secreto?
Sim senhor, aqui há dependência da CIA e por meio dessa agência se apóia a Colômbia. (Na quinta-feira foi destituído o chefe da Inteligência Militar, general Mario Pazmiño)
Se não há nada a ocultar, por que seu partido, o Aliança País, rejeitou a proposta da Assembléia Constituinte (que atua como Parlamento enquanto se reforma a Constituição) de criar uma comissão de inquérito sobre os contatos com as Farc?
Os documentos que a Colômbia nos enviou serão mandados para o presidente da Assembléia (que é da Aliança País, assim como 80 dos 130 deputados), o Promotor Geral, os jornalistas, e que investirem o que quiserem, não temos nada a temer. Você pode crer ou não, mas na minha vida nunca vi alguém das Farc. Quando Uribe me telefonou para dizer que Raúl Reyes havia morrido no ataque, tive de verificar quem era. Sabia que era das Farc, mas não que era o segundo no comando, onde estava e essas coisas.
Definitivamente, o que é preciso para que se restabeleçam as relações entre Equador e Colômbia?
É responsabilidade da Colômbia. Uribe está mentindo, e é o que mais me ofende. Que ele reconheça o sacrifício que o Equador fez em uma guerra que não é nossa. Sabe que o Equador é o maior receptor de refugiados com estatuto da ONU no Ocidente. Temos 50 mil colombianos aqui com esse status e outros 300 mil que vivem no país. Lutamos com 11 mil soldados na fronteira norte e destruímos 47 acampamentos das Farc no ano passado.
E o que recebemos em troca? A ingratidão de um governo que, para justificar um ataque que violou o direito internacional e para exibir o cadáver de Reyes como troféu de guerra, nos vincula com a guerrilha. Não, enquanto continuarmos recebendo essas mensagens não haverá nada de que falar.
O que vão fazer na fronteira norte, vão reforçar a segurança para evitar os assentamentos das Farc?
Não, somos um povo pacífico. Nós vamos responder com o Plano Equador, que é um programa de segurança humanitária. As Farc têm um grande apoio na fronteira devido à ausência do Estado colombiano, e dificilmente o Estado equatoriano pode chegar, basicamente suas forças de segurança, o que é ruim. Faltam-nos hospitais, escolas, etc. São as Farc que muitas vezes dão remédios e outras coisas e têm toda uma rede de informantes dos dois lados da fronteira.
Os agricultores colaboram com as Farc porque simpatizam ou por medo, mas colaboram com a guerrilha. Qual é a nossa resposta para isso? O desenvolvimento, para que não tenham de depender de ninguém, isso é o Plano Equador. Tomar medidas militares na fronteira norte é cair na armadilha de Uribe, que quer arrastar o Equador para participar do Plano Colômbia, para que entremos com as forças e os mortos.