Rosemberg Cariry e as estripulias da memória

Rosemberg Cariry conta como as histórias da vó Perpétua e do tio Jetro fizeram com que ele também desfiasse mais um fio desse novelo de memórias

Nascido em Farias Brito, em 1956, e formado em filosofia, Rosemberg tem na filmografia, entre outras produções, O caldeirão da Santa Cruz do Deserto (1986), Juazeiro, a Nova Jerusalém (1999) e Lua Cambará, Nas Escadarias do Palácio (2002). Seu próximo projeto, o longa Siri-Ará, que está em fase de finalização, conta a história de Cioran que, depois de 30 anos de exílio na França, abandona a mulher e os filhos e volta para o sertão do Ceará, em busca da sua identidade e da memória dos seus antepassados. O filme foi orçado em R$ 1,3 milhão. Além de cineasta, Rosemberg é poeta com quatro livros publicados.


 


Depois da exibição dos filmes de cangaço nos cines da cidade do Crato, a guerrilha, tão recente, mas imemorável, entre cangaceiros e volantes se transportava no tempo. Cabos de vassouras e baladeiras viravam fuzis, na recriação infantil da questão entre polícia e bandidos que povoaria como mito a história de toda uma região. Rosemberg Cariry estava entre eles.



Décadas depois, já cineasta, em seu filme Corisco e Dadá, de 1996, ele recontaria a história de um dos dois casais mais famosos do cangaço. Aos relatos da própria Dadá, juntou as lembranças de suas vivências na região do Cariri, onde os heróis do cangaço povoavam o imaginário. Dos contos da avó Perpétua aos filmes de Glauber Rocha e Carlos Coimbra, Cariry impregnou-se da narrativa, que em seu filme ganhou os moldes de uma tragédia grega.


 


Você me disse rapidamente por telefone que os filmes de cangaço povoaram sua infância. Eu queria que você me contasse um pouco desse tempo.
As histórias de cangaceiros e beatos, bem como as narrativas maravilhosas de Trancoso, eu aprendi com os andarilhos, os vagabundos, os desempregados, os artistas ambulantes, os doidos de rua, os cegos-cinemeiros, os cantadores de feira, a preta Delfina. Eu aprendi com a minha avó Perpétua – Sheherazade cabocla de mil e uma estórias. Nas feiras do Crato e de Juazeiro, no calor e nas cores das grandes romarias, ouvi o Cego Oliveira cantar os romances de cangaço, a grandeza e a nobreza de Antônio Silvino – o Rifle de Ouro, as aventuras criminosas de Lampião, as proezas dos Viriatos, de Dois de Ouro, do Capitão Corisco e de Dadá. Depois meu Tio Jetro Moura, no Cedro, me recitou as mesmas histórias nos livretos de cordel. O único Lampião que admirávamos, a partir das cantigas do Cego Oliveira, dos cantadores ambulantes e dos cordéis lidos por Tio Jetro, era o Lampião transfigurado pela imaginação popular, capaz de discutir com São Pedro no céu e de fazer estripulias no inferno.


 


Como estes filmes lhe fascinaram?
Toda essa herança tradicional e fantástica do cangaço na cultura popular seria fecundada pelo espírito de aventura dos filmes de ''cangaço'' que entravam em cartaz no Cine Cassino, Cine Educadora, Cine Moderno, Cine São Francisco e Cine São José, na cidade do Crato. Um filme de ''cangaço'' era sempre um grande acontecimento, com casa lotada e ingressos de preço dobrado, vendidos pelos mais espertos, que chegavam cedo para adquiri-los e depois negociá-los. Nesta época, meados da década de sessenta para início da década de setenta, assisti a alguns filmes inesquecíveis por virem de encontro a todo um universo de beatos e cangaceiros que já me povoava a partir das histórias da minha avó, dos cordéis e das cantorias. Nessa lista, entram também com destaque os filmes da fase sertânica de Glauber Rocha: Deus e o Diabo na Terra do Sol e O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro. Para nós, pobres meninos do sertão, morando na periferia do Crato, não havia ainda a distinção entre cinema ''comercial'' e ''cinema de arte''. Tudo era sonho, tudo era divertido e lúdico. Os filmes de ''cangaço'', mesmo os filmes de Glauber Rocha (bem como os de Nelson Pereira dos Santos, Ruy Guerra, Anselmo Duarte e outros que chegavam às pequenas cidades e vilas do sertão), em velhas cópias, eram exibidos em cinemas populares e causavam grande sucesso, chegando mesmo a ''vencer'' na bilheteria os melhores filmes de faroeste, de capa-e-espada e de piratas norte-americanos.


 


Quais os filmes que faziam mais sucesso popular?
De todos os filmes, os mais festejados eram os filmes de cangaço de Carlos Coimbra. A contribuição de Carlos Coimbra ao cinema nacional é bem maior do que um julgamento póstumo dos seus filmes, sob o ponto de vista da contribuição estética ou da experimentação de linguagem. Carlos Coimbra fez um cinema popular que povoou o imaginário de toda uma geração. Qualquer pessoa mais atenta verá que os filmes de cangaço da chamada ''retomada do cinema brasileiro'' bebem não apenas na fonte de Glauber ou de Lima Barreto, mas também na fonte popular do cinema de Carlos Coimbra. Seus filmes habitam o imaginário e, portanto, são como os sonhos que estão sempre se transformando em novas visões, mesmo quando nos negamos estas visões ou estas influências. Todos nós vimos estes filmes na adolescência, como grandes filmes de aventuras, ao lado dos filmes de aventuras norte-americanos ou europeus. Após a temporada de filmes como Morte Comanda o Cangaço ou Lampião – O Rei do Cangaço, em vez de caubóis e apaches, éramos cangaceiros e macacos, em lutas ferozes de fuzis feitos de cabos de vassouras e baladeiras certeiras, contra os inimigos da ''gota serena''.


 


O cangaço serviu como tema ao cinema durante todo o século XX, principalmente durante os anos 1950 e 1960. Por que esse constante retorno a esse tema? E como você próprio decidiu também abordar o tema?
Mais do que um filme de cangaço, o que me interessava narrar no filme Corisco e Dadá era a luta do homem com Deus, nos moldes de uma tragédia grega. Quando Dadá me contou a sua história eu disse para mim mesmo: eis o tema, eis o filme. No meu filme, Dadá é um presente do sol, e Corisco é a granada de Deus. Corisco é um homem condenado por Deus a exercer justiça através do sangue dos seus semelhantes: ''É Deus que move o meu dedo no gatilho do meu fuzil''. Quando rapta Dadá, ainda menina com apenas 12 anos, Corisco tenta através do amor mudar o seu destino. Mas pode o amor nascer de um ato de violência? Corisco vive um profundo conflito. Por um lado, ele tem a opção da violência anárquica, da rebelião como instrumento de libertação do meio social injusto, da guerra como instrumento da violência divina. Por outro lado, a violência é também a sua condenação e o impossibilita de viver a sua vida de homem e encontrar o amor e a felicidade. O amor de Dadá, que pode libertar Corisco do seu destino, impedindo-o de transformar-se em um animal raivoso e em instrumento cego da vontade de Deus, é também a força que o enfraquece diante de tantas adversidades da vida e das hostilidades do sertão. Se esta fraqueza o destrói como personagem mítico, é também o que o salva como homem. É o amor que afirma o homem.


 


E Lampião, como você explica o fenômeno da sua popularidade?
Lampião é um produto da modernidade tardia que chega ao sertão, e ele disso soube tirar o melhor proveito, na construção de uma imagem para a posteridade. O filme documentário de Benjamin Abrahão, produzido pela Aba Film, em 1936, é um filme posado, de representação; uma ficção encenada por atores originais. Lampião e o seu bando ''encenam um cotidiano''. O líder cangaceiro representa para a câmera o seu gosto pela leitura dos jornais da capital, mostra o seu punhal ''justiceiro'', ajoelha-se para rezar, ensaia uma batalha fictícia, deixa-se pentear e perfumar-se pela sua amada Maria Bonita. Fã confesso do cinema de romance e de espetáculo, em várias oportunidades, Lampião arriscou a sua vida e a dos seus seguidores, invadindo cidades e vilas com o único intuito de assistir filmes; em outras oportunidades, viu estes filmes projetados pelos cinemeiros ambulantes que cortavam os sertões, como os filmes projetados pelo famoso cantador Cego Aderaldo, causando-lhe viva impressão a projeção de um velho filme mudo sobre a vida de Napoleão Bonaparte. Lampião, ao posar para a câmera de Benjamin Abrahão, revisitava gestos e caras dos seus ídolos preferidos. Mesmo vivendo a sua decadência e aproximando-se do fim, em meados da década de 30, Lampião ainda era um ídolo popular e freqüentava de forma desabusada o noticiário da imprensa nacional e mesmo internacional.


 



 


Fonte: O Povo