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Flavio Dino: O valor da democracia

Não é fenômeno recente, tampouco apenas brasileiro, a quebra do monopólio do Poder Legislativo para editar normas gerais e impessoais. Contudo, no nosso país caminhamos para uma situação extrema: a quase total apropriação daquela função, típica do Parl


Não há maior sintoma da crise do processo decisório no Legislativo, reforçado mais recentemente pelo elevadíssimo protagonismo político do Judiciário. Visando a superar tal crise, o Congresso Nacional voltou a se debruçar sobre a busca de limites para barrar a edição descontrolada de medidas provisórias. A emenda constitucional nº 32, de 2001, avançou ao pôr fim às reedições eternas, mas trouxe um subproduto negativo no atual contexto: o ''trancamento'' das pautas do Legislativo, após 45 dias da edição de uma medida provisória.



Alguns defendem a extinção das medidas provisórias, o que seria um grave equívoco. A maioria das nações do mundo democrático admite, em maior ou menor grau, alguma competência normativa do Executivo, destinada ao enfrentamento de situações complexas, que demandam intervenções velozes, compatíveis com o ritmo alucinante da sociedade em que vivemos, marcada pela permanente revolução científico-tecnológica.



Com esse contorno, as MPs são rigorosamente essenciais para a manutenção da governabilidade. Sendo seu uso legítimo, o problema que temos de enfrentar é como evitar o seu abuso, rompendo um círculo vicioso: a edição de muitas medidas provisórias aprofunda a crise decisória do Legislativo, o que legitima novas medidas provisórias, por pressão da burocracia, da sociedade e, paradoxalmente, até mesmo de parlamentares. Não adianta continuar a debater o que veio primeiro, se o ovo ou a galinha, ou pronunciar discursos raivosos ''satanizando'' o atual presidente da República, pois se a edição excessiva de medidas provisórias fosse critério impeditivo para entrar no céu nenhum mereceria essa glória.



Creio que, no momento, a solução transita por algumas mudanças na Constituição. Primeiro, a adoção de um limite quantitativo, uma espécie de ''celular pré-pago'' para o presidente da República, que só poderia editar doze MPs por ano. Trata-se de limite objetivo, de fácil controle e, portanto, propiciador de maior segurança jurídica. Embora difíceis de imaginar, eventuais situações excepcionais que excedessem a doze em um ano, seriam atendidas mediante o envio de projeto de lei em regime de urgência.



Em segundo lugar, proponho a introdução de requisito constitucional de que as medidas provisórias tenham homogeneidade temática, inclusive para as emendas dos parlamentares. Uma medida provisória sobre transporte aéreo não pode tratar também do plantio de soja, e vice-versa. Por fim, defendo a introdução de um mecanismo de alternância na pauta do Congresso, que só permitiria a votação de uma nova MP ou projeto de lei oriundo do Executivo imediatamente após a apreciação de um projeto de autoria de deputado ou senador. Com isso, valorizamos os projetos dos parlamentares, contribuindo para que o Congresso recupere parte do que perdeu para os outros poderes.



Mesmo compreendendo o valor da governabilidade, não podemos aceitar sacrificar nesse altar o valor da democracia. É em torno dessa dualidade que devemos distinguir o uso do abuso, encontrando mecanismos institucionais que contribuam para evitar este último.



* Flávio Dino é deputado federal pelo PCdoB-MA



Artigo publicado originalmente na edição desta sexta-feira (18) de O Globo