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Letícia desvenda movimento sufragista das índias yawanawa

Letícia Yawanawa, da aldeia Mutum da Terra Indígena Rio Gregório, no Acre, retrata uma realidade indígena bastante dinâmica ao dar entrevista ao Vermelho na véspera deste 19 de abril. Nada está parado no tempo, como uma certa visão ingênua da questão i

Letícia fala com conhecimento de causa: militante do Movimento de Mulheres Indígenas do Acre, já percorreu o Brasil como Organização de Mulheres Indígenas e é uma feminista engajada: “Mesmo respeitando a nossa cultura, nós, mulheres indígenas, temos que lutar. Às vezes a gente vai devagar, para respeitar a cultura. Mas no nosso povo os homens líderes podem ter várias mulheres, mas as mulheres líderes não podem ter vários maridos”, reclama.



“Ela já pisou no terreiro mais sagrado”



Para se ir de Rio Branco à aldeia Mutum leva uma hora de avião, até Tarauacá, mais uma de carro, até as margens do Rio Gregório, e quatro dias de barco. Mutum não tem luz elétrica, “é tudo com lamparina”, o Programa Luz para Todos não chegou ali, continua a ser “um grande sonho”. Mas outras coisas chegaram, inclusive em comunidades yawanawas ainda mais distantes, a 10 e até 14 dias de viagem rio acima.
O voto feminino é uma dessas novidades. “Antigamente a mulher não podia votar, só os homens. Nossos ancestrais diziam que mulher não pode pisar na flexa, na lança, porque ela engravida e menstrua”, relata Letícia. Mas de 2004 para 2005 isso mudou. E, para Letícia, “é o maior exemplo na história do nosso povo”.



“Na minha aldeia, a líder é uma mulher. Ela já pisou no terreiro mais sagrado [privilégio dos pajés] e já comeu a batata mais sagrada, que antes uma mulher não podia nem ver”, relata. Letícia grarante também que “hoje os homens apóiam” essa conquista do sufragismo talvez desconhecida do movimento feminista em geral.



“Um povo pequeno mas está crescendo”



O povo yawanawa, da família pano, só existe em Tarauacá e hoje é formado por pouco mais de 800 pessoas e seis comunidades. Ali “ainda tem precariedade de saúde”, conta Letícia. Há alguns agentes indígenas de saúde, mas “é uma luta do povo yamanawa para formar os seus próprios jovens”. Ela conta que “tem crianças que morrem, porque a Funasa tem feito muito pouco”, mas “os pajés curam com a medicina tradicional” e “também tem nascido bastante criança”.



Com isso, “é um povo pequeno mas está crescendo”, orgulha-se a líder feminina. Com 40 anos de idade, ela mesma tem três filhos e uma filha. Mas não ache que isto tenha sido uma grande contribuição, pois uma “verdadeira mulher guerreira” yamanawa tem 12 ou até 14 filhos.



Novo tratamento a araras e tracajás



Outra questão é defender a cultura yamanawa. “Nós somos pequenos, somos poucos, mas a gente faz força para ter qualidade”, explica ela. “Se nasce um menino yamanawa o pai tem a responsabilidade de ensinar para  ele ser um futuro guerreiro e caçador. A mesma coisa com a menina. Tem que aprender a língua, a cultura, os costumes”, diz ela. Letícia esclarece ainda que também há nesse currículo uma disciplina sobre “a cultura do não-indígena”.



Defender, porém, não é petrificar. Os yamanawas são famosos por suas pinturas corporais com o vermelho vivo do urucu, e também por “aqueles cocares lindos”, mas já não caçam araras e outros pássaros para usar suas penas. Agora, criam as araras na aldeia, e tiram as penas poupando a vida do pássaro.



Outra mudança recente foi a proibição de caçar tracajá – a tartaruga amazônica de água doce, de carne apreciadíssima. “Um tempo atrás teve uma reunião das aldeias para explicar: se caçar demais, acaba o tracajá. Estava em extinção. Então, há dois anos não caçamos mais tracajá”, conta Letícia.



Esses exemplos contrariam a visão estereotipada de que as culturas indígenas são coisas imóveis, petrificadas, e quando se movem é por influência da “civilização”. Isso é falso. Os yamanawas, como os demais povos indígenas, e qualquer outro povo sobre a face da Terra, são culturas vivas e portanto em permanentes transformações. Uma parte delas se deve à troca cultural com outros povos, mas a a essência transformadora vem da própria dinâmica cultural interna.



População indígena cresceu 7 vezes em 50 anos



No capítulo das trocas culturais, os yamanawas plantaram a sua primeira safra de profissionais de nível universitário. Letícia tem seu filho mais velho, de 23 anos, estudando Gestão Ambiental e o segundo, de 20,  na Escola de Enfermagem. Outros três yamanawas cursam Direito, Serviço Social e Ciências Sociais, todos em Rio Branco.



“A gente espera que vai dar certo”, diz Letícia. Mas afirma que os cinco “estão fazendo um sacrifício” e “nas férias vão todos para a aldeia”.



Graças a esta dinâmica – em parte aprendida de fora mas também desenvolvida a partir da sua própria experiência – a população indígena brasileira deixou de se reduzir e está crescendo mais depressa que a média nacional. O fundo do poço aconteceu por volta de 1950, quando os indígenas chegaram a cerca de 100 mil, depois de terem sido em torno de 5 milhões, conforme as estimativas, quando teve início a conquista européia. Mas no Censo de 1991 o IBGE contou 294 mil índios, e no de 2000 o número saltou para 734 mil, inclusive, acredita-se, porque uma pacela dos habitantes do país, que antes não se auto-identificava como indígena, passou a fazê-lo.