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Anistia: Brasil pede perdão a ex-estudantes perseguidos

“Pedimos desculpas em nome do Estado brasileiro pelo sofrimento causado durante a ditadura”. É desta forma que a Comissão de Anistia tem encerrado cada um dos casos deferidos pelos conselheiros incumbidos de julgar os processos que tramitam no órgão do

Os julgamentos, desta vez, ocorreram no terreno da Praia do Flamengo, número 132, no Rio de Janeiro, endereço da sede da UNE incendiada pelos militares logo no começo da ditadura. Como parte da Caravana da Anistia – parceria entre a Comissão e a entidade máxima dos estudantes brasileiros – a sessão teve início por volta das 11 da manhã, com um ato que contou com a presença do ministro da Justiça, Tarso Genro e dos presidentes da OAB, Cezar Brito; da UNE, Lucia Stumpf; da UBES, Ismael Cardoso e da ABI, Maurício Azedo.


 


O destaque ficou para o ministro da Justiça. Em tom crítico, Tarso Genro abriu sua fala respondendo às colocações feitas na quarta-feira pelo deputado Jair Bolsonaro (PP-RJ). Durante audiência pública na Câmara para discutir a demarcação da reserva indígena Raposa/Serra do Sol, Bolsonaro chamou o ministro de terrorista.


 


“Um dos parlamentares”, disse Genro sem citar nomes, “se sentiu incomodado naquele ambiente de debate democrático”. A reação de Bolsonaro, de acordo com a avaliação do ministro, “demonstra que na sociedade brasileira ainda há resíduos autoritários e ditatoriais que permanecem na cabeça das pessoas”.


 


Dirigindo-se ao atual secretário de Meio Ambiente do PCdoB, Aldo Arantes, Genro lembrou da coragem daqueles que lutaram contra o sistema outrora vigente, “que não se submeteram às suas normas e que por isso foram torturados em salas da Operação Bandeirantes”.


 


Pela abertura dos arquivos
Em defesa da abertura dos arquivos da repressão, Genro destacou que não se pode sonegar o debate ideológico sobre a ditadura. “Porque ao mesmo tempo em que impõe um modelo econômico, a ditadura também impõe um modo de vida às pessoas. O Estado age na mente e no coração das pessoas, subjugadas em função dos interesses daqueles que colaboram com o seu aparelho burocrático-militar”. Para ele, os torturadores deveriam responder por seus crimes antes de serem anistiados, como acabou fazendo a lei promulgada em 1979. “Eles se escondem hoje em uma postura arrogante”, declarou.


 


O ministro defendeu o fortalecimento da democracia no país, com a participação dos diversos setores da sociedade, e salientou que a anistia “é um processo integrante da construção de um projeto republicano e efetivamente democrático para o Brasil”.


 


“Liberdade de imprensa”
Genro, mais uma vez, criticou a hegemonia dos grandes órgãos de comunicação que, uníssonos, defendem as posições do status quo. “Se as nossas opiniões não transitam de maneira integral nos grandes jornais do país e são apenas colocados na parte de ‘cartas dos leitores’ ou no pé da página, temos que nos mobilizar e discutir publicamente em grandes plenárias, nos jornais alternativos e sindicais, nos panfletos das organizações dos movimentos sociais”. Para ele, é preciso conjugar liberdade de imprensa com a liberdade de se veicular livremente a diversidade de idéias.


 


“Hoje, sonega-se a opinião alternativa, contrária àquela defendida pelos que controlam a mídia”, avaliou. Na sessão da Comissão de Anistia, disse, “os cidadãos podem exercer seu direito de ter voz, inclusive para responder às formulações que transitam em determinadas colunas, certamente originárias dos arquivos escondidos pelos torturadores”, denunciou. E lembrou que Bolsonaro tinha consigo um dossiê sobre a vida pregressa do ministro. “Tenho orgulho do meu passado, que pode ser apresentado publicamente, diferentemente do passado dos torturadores deste país”, finalizou sob aplausos.


 



Reconstrução da sede
A presidente da UNE, em sua fala, enfatizou a luta por reformas estruturais no Brasil, a necessidade de se abrir os arquivos da ditadura e a luta da UNE pela reconstrução de sua sede. Nos próximos dias, o presidente Lula deverá se reunir com a direção da entidade para tratar do assunto. O valor a ser repassado para a construção do novo prédio é de cerca de 30 milhões de reais. “O primeiro ato do regime militar foi destruir nossa sede. Agora é a hora da reconstrução”.


 


Sobre os documentos, Lucia disse que é “a partir da reconstituição do passado que podemos garantir o futuro” e destacou que “os sonhos de 68 ainda são os nossos sonhos hoje”.


 


Para o presidente da OAB, Cezar Brito, a anistia é “a possibilidade de dizermos hoje quem estava certo, quem queria o fim da ditadura, quem era contra o FMI e contra a tortura. O tempo mostrou que eles estavam errados”, alfinetou. Para ele, “é uma ousadia o Estado dizer, através da anistia: ‘perdoe-me; eu errei’”.


 


Paulo Abrão, presidente da Comissão da Anistia, por sua vez salientou que a atividade deste 15 de maio era histórica. “Há 14 anos o presidente Itamar Franco devolvia o terreno para a UNE. Se pudéssemos dar anistia para pessoa jurídica, a UNE seria merecedora”. Sobre o memorial, que ainda não tem local definido, mas deve ser sediado em Brasília, Abrão disse que será um centro de documentação rico, deixado desta para as outras gerações.


 



Para Honestino e Elza
Falar de ditadura militar é lembrar daqueles que lutaram por sua queda. E dois nomes foram merecidamente homenageados nesta sessão: Honestino Guimarães e Elza Monnerat.


 


Juliana Botelho Lopes, filha do presidente da UNE de 1973, do pai com quem conviveu por apenas três anos. “Sei que ele dizia que a revolução exige urgência”, e lembrou que Honestino, aluno do curso de Geologia na Universidade de Brasília e militante da AP, achava dormir um desperdício. “Meu pai usava todo o tempo possível para estudar”, recordou. Honestino é considerado desaparecido e data de 10 de outubro de 1973 o seu desaparecimento, após ter sido preso pelos militares.


 


Elza Monnerat foi lembrada por meio de um vídeo que teve como trilha sonora a canção “Xambioá”, de Itamar Correia. Ana Rocha, presidente do PCdoB do estado do Rio de Janeiro e que à tarde seria anistiada pela Comissão, homenageou a comunista que no Araguaia era conhecida como Dona Maria. Para Ana, Elza “plantou a semente da resistência por um Brasil melhor, democrático e socialista; e faz parte de uma legião de mulheres que não cruzaram os braços diante das injustiças e foram à luta”.


 


Elza nasceu em 19 de outubro de 1913. Em fevereiro de 1962 participou da Conferência Extraordinária da Mantiqueira, que garantiu ao PCdoB continuar na linha revolucionária. A partir do golpe passou a trabalhar clandestinamente na montagem de aparelhos do partido.


 


Com 63 anos, ao ser presa por seus algozes, gritou sem medo: “abaixo a ditadura! Viva o proletariado!”. Apesar da idade, a comunista não foi poupada das torturas. A revolucionária sobreviveu à ditadura, ao massacre dos guerrilheiros do Araguaia, à Chacina da Lapa e morreu em 11 de agosto de 2004, aos 91 anos.


 


Para Ana Rocha, naquele dia, Elza se foi, mas “ficou aqui a semente que plantou de simplicidade e solidariedade, de abnegada militância por um mundo melhor. Que as novas gerações reguem, façam crescer e se reproduzir a semente plantada por Elza Monnerat”.


 


Enfim, anistiados
Vitor experimentou ser morto por um dia. O feito foi durante a apresentação da trupe de teatro “Ta na rua”. Depois de baleado por um soldado, o falso cadáver foi carregado nos ombros dos companheiros enquanto atores, conselheiros da Comissão, estudantes e participantes da sessão seguravam velas. A encenação trouxe um pouco do sofrimento enfrentado por milhares de brasileiros nos anos de chumbo. E terminou bradando: “tão criminoso quando fazer um cadáver é oculta-lo”.


 


A peça encerrou a primeira parte das atividades. A segunda teve início no começo da tarde, com o julgamento dos requerimentos de Mario Magalhães Lobo Viana, Dione Damasceno, Olívia Rangel Joffilly, Solange Lourenço Gomes, Ana Maria Santos Rocha e Edson Menezes da Silva, todos deferidos por unanimidade.


 


Dione Damasceno era estudante de Medicina na Universidade Federal de Goiás, quando foi presa, em 1972. Além de ter sua vida acadêmica interrompida, Dione foi torturada com choques nos mamilos, orelhas e órgãos genitais. Depois procurou exílio na Alemanha, foi mais tarde para a Suécia e só retornou ao Brasil em 1983.


 


Olívia Rangel cursava Ciências Sociais na Unicamp quando começou sua militância, primeiro na Ação Popular e depois, com sua incorporação ao PCdoB, passou a participar das atividades do partido. Por conta da perseguição, teve de mudar seu nome para Olívia Rangel Magalhães e seu marido, Bernardo Joffily – hoje editor do portal Vermelho e membro do Comitê Central do PCdoB – foi “rebatizado”  José Ricardo Magalhães.  Temendo por sua vida, Olívia foi para a Albânia em 1974, onde ficou até 1979. Retornando ao Brasil, conta que continuou sofrendo perseguição, apesar da Lei da Anistia já ter sido então promulgada.


 


Hoje presidente do PCdoB-RJ, Ana Rocha era estudante de Psicologia na Universidade Federal da Bahia quando passou a ser perseguida por sua atuação militante no partido, juntamente com o então marido Edson Silva, igualmente anistiado. Ambos tiveram de rumar para a Albânia por também temerem cair nos cárceres da ditadura.


 


Um dos casos mais dramáticos julgados hoje, no entanto, foi o de Solange Lourenço Gomes, levado à Comissão pelo viúvo Celso Livi. Sua esposa foi presa na Bahia em 1971, onde foi barbaramente torturada. Jornais da época noticiaram o suposto arrependimento de Solange por sua militância política, manobra dos militares com o propósito de desgastar os militantes políticos, o que a deixou profundamente deprimida.


 


Abalada emocionalmente por todos os sofrimentos trazidos pela ditadura, Solange suicidou-se em 1982. Por sua situação, a Comissão de Mortos e Desaparecidos Políticos classificou sua morte como de responsabilidade do Estado brasileiro. Hoje, 26 anos após sua partida, Solange teve reconhecido o direito à anistia post mortem. O Brasil pediu, finalmente, perdão pelos males causados à militante e sua família pela ousadia de questionar o regime autoritário da caserna.


 


 


*enviada ao Rio de Janeiro