Artigo: Evo, Cárdenas e a reconquista do patrimônio nacional
Descontando-se as distâncias e os diferentes contextos históricos, a reconquista do patrimônio nacional que o presidente da Bolívia, Evo Morales, põe em prática em seu país, permite realizar uma comparação com o processo de expropriação de empresas pet
Publicado 02/06/2008 15:26
Durante a primeira semana de maio, Evo anunciou a nacionalização da companhia telefônica ENTEL, filial da italiana Euro Telecom Internacional. Além disso, foram assinados decretos para que o Estado boliviano recupere a totalidade do controle de seus hidrocarbonetos através da recompra das ações da espanhola Repsol YPF. Dessa forma, o governo pode ter o controle e estatizar as empresas Chaco (filial da British Petroleum), Transredes (subsidiária da também inglesa Ashmore) e da Companhia Logística de Hidrocarburetos Boliviana (CLHB) (de capital alemão y peruano).
Tendo em conta a diferença dos contextos históricos, essas medidas são similares às que o presidente Lázaro Cárdenas tomou eu seu país com a nacionalização dos hidrocarbonetos. Para desenvolver esse tema, é necessário recorrer à história.
Durante os anos de 1934 a 1940, o México foi governado por Cárdenas. Esse período conhecido como o “cardenato”, se caracterizou pela realização da reforma agrária através das cooperativas de terras e pela apropriação dos recursos do subsolo.
Antes da chegada de Cárdenas, o ditador Porfírio Diaz – cujo governo durou de 1876 a 1911 – modificou as leis para conceder o petróleo a empresas estrangeiras por não considerá-lo rico. A situação do país muda em 1917 com a nova Constituição, que no parágrafo 4 do artigo 27 declara que “as reservas petrolíferas são propriedade da nação”.
Tendo em conta esse respaldo constitucional, o governo cardenista aprova, em 1936, a lei de expropriação. Ou seja, pôde-se nacionalizar em nome da utilidade pública qualquer tipo de propriedade, e fazer o devido pagamento de acordo com seu valor fiscal.
O jornalista mexicano Rubem Rivera, em seus escritos sobre o “Cardenismo e o Estado populista”, sustenta que o contexto de greves por parte dos trabalhadores petroleiros e de uma burguesia em crescimento que busca se desenvolver ajudou no sentido de impedir que o governo Cárdenas não “morresse politicamente”. Por isso, o presidente colocou em prática as medidas que contrariavam os interesses das empresas estrangeiras. “Além disso, essa situação ocorre devido a uma combinação de fatores contextuais, entre os quais se destacam a debilidade das economias dos EUA e da Inglaterra durante a década de 1930, ainda como conseqüência da crise de 1929”, diz.
Tendo em conta o até aqui exposto, no caso da Bolívia o processo se dá de modo diferente. O historiador boliviano Fernando Cajías relata que o petróleo e o gás nunca trouxeram benefícios ao povo local. A Standard Oil descobriu o primeiro poço no país em 1924, mas decidiu não informar o governo e exportar o produto sem pagar impostos.
Em 1972, é criada a Yacimientos Petroliferos Fiscales Bolivianos (YPFB), que começa a exportar gás para a Argentina. Nos anos 90, em plena onda privatista, o governo de Gonzalo Sanchez de Lozada acaba com a empresa e oferece suas partes a multinacionais em troca do compromisso de investimentos. Esse método se chamou “capitalização”. Antes de sucumbir, a YPFB havia firmado contratos com a Petrobras, para exportar gás ao Brasil – a empresa brasileira emprestou verbas para contruir o duto dentro do território vizinho.
Na atualidade, na extração do petróleo havia nove empresas estrangeiras envolvidas antes da nacionalização. Seus benefícios econômicos superavam em mais de quatro vezes as isenções de impostos autorizadas pelo governo.
Como bem explicou Evo Morales, o Estado boliviano “queria sócios, não donos de seus recursos naturais”. Por essa razão, através do decreto de nacionalização de 1º de Maio, a YPFB assumiu o controle total dos hidrocarbonetos, que representam um quarto do PIB da Bolívia.
O subsolo boliviano contém uma reserva de gás natural estimada em mais de 52 trilhões de pés cúbicos, o que faz do país a segunda maior reserva da América do Sul, depois da Venezuela (cujo presidente Hugo Chávez desenvolve uma política similar à de seu colega boliviano).
Voltando à comparação com o “cardenato”, as medidas de nacionalização acarretaram grandes complexidades, da mesma como se sucede atualmente em La Paz. No México, em fins da década de 30, Londres rompeu relações diplomáticas e os EUA decretaram um embargo econômico contra o país. Na Bolívia atual, várias vozes se alçaram para expressar seu desacordo com a política do governo Evo. Casualmente ou não, as vozes vêm das mesmas partes do planeta que assim agiram 70 anos atrás.
No que diz respeito à medida nacionalizadora, pode-se ver que tanto no governo de Cárdenas como no de Evo, as classes populares são as que estão a favor. Indígenas, camponeses, operários, setores de esquerda e cocaleiros, no caso da Bolívia.
No entanto, uma diferença importante é que Cárdenas não contava com a oposição forte da classe média alta que vive hoje nos departamentos da chamada “meia-lua” da Bolívia. Esses setores com intenções de dividir o país, por meio de governos autônomos, promovem ações de desprestígio e de desestabilização do governo central, tal como o ilegal referendo de Santa Cruz, realizado em 4 de maio.
Por outro lado, o ex-presidente mexicano tinha militares e padres a seu lado, o que não acontece com Morales, já que é possível lembrar a forte posição da igreja no comitê pró-Santa Cruz.
Em relação às diferenças e similitudes que os dois líderes possuem, pode-se observar que a chegada à atividade política de Cárdenas e Evo se dá através de setores diferentes. O mexicano tinha uma carreira militar e provinha da classe burguesa. O boliviano foi dirigente cocaleiro e é o primeiro presidente de origem indígena no país. No entanto, apesar de atravessarem contextos e serem de países distintos, parece que ambos têm uma lógica similar.
Tendo em conta o exposto, no México de fins da década de 30 aparecia o que se chamou de “utopia cardenista”. No caso da Bolívia, na atualidade, passa-se algo parecido e se vê refletido no objetivo de conseguir que os serviços básicos deixem de ser um negócio privado. Tanto é assim que o presidente boliviano chega à Presidência com um discurso que sustenta que a “defesa da coca, da água, dos hidrocarbonetos e todos os recursos naturais são o que vão levar o país adiante”.
Finalmente, cabe destacar que um dos motivos da queda do cardenismo se dá com a expropriação das empresas petrolíferas. A combinação do boicote com a pressão política e econômica de seus governos desataram uma crise que se refletiu no descenso da reforma agrária e da mobilização trabalhadora.
Nesse momento, Evo Morales continua no poder e, ainda que o país esteja dividido, o presidente boliviano conta simbolicamente com o respaldo de quem ele considera seus amigos – os presidentes de Argentina, Brasil e, sobretudo, Venezuela, Equador e Cuba.
O ideal seria que a integridade regional sirva a Morales como sustento frente aos grupos desestabilizadores que, como se pôde observar neste artigo, hoje, como há 70 anos, seguem tendo os mesmos vícios na América Latina.