Afegãos fazem reflexões no 'Dia da Paz'

Em 21 de setembro deste ano, o Afeganistão viveu o chamado ''Dia da Paz'', um evento proposto pela ONU* e que teve a participação de todas as forças beligerantes (Otan, Talibã e os militares afegãos), que cessaram as hostilidades por 24 horas.


A al-Jazira entrevistou populares, querendo saber deles o que poderia trazer a paz ao país, dilacerado por guerras. O Vermelho traduziu abaixo o artigo do site arabe.



Para Kandigul Diljan Durrani, o Dia da Paz em Cabul, a capital do Afeganistão, foi quase como um dia qualquer.



Quase.



Ela disse que se irritou pelo caminho, diante de tantas barreiras e obstruções criadas pelos eventos comemorativos do dia.



''Levei muito mais tempo para chegar ao trabalho [ela trabalha como empregada doméstica de uma família de estrangeiros]. As ruas estavam muito lotadas, os carros não conseguiam achar um caminho para passar e as pessoas estavam brigando umas com as outras. Que tipo de Dia da Paz é esse?



Durrani tem 40 anos de idade, mas parece muito mais velha. Os anos de hostilidades constantes e sangrentas tomaram sua vida, já que ela e sua família se mudaram de província a província, à procura de segurança. Eles são muito pobre para fugirem para o vizinho Paquistão.



Sua casa no bairro de Kart-e-Naw, de Cabul, foi bombardeada por artilharia durante a luta que arrasou a capital no meio dos anos 1990, quando facções rivais lutaram pelo poder no país.



Seu marido foi surrado seguidamente por uma das milícias e hoje está inválido.



Seus braços pendem inertes ao longo do corpo e ele não pode fazer nenhum trabalho ou ganhar a vida. Durrani tornou-se a responsável por alimentar, vestir e abrigar sua família de nove crianças.



Seu filho mais velho quer ir para o Irã para arrumar algum trabalho, porque não existem empregos para ele em Cabul.



''Se houvesse paz, nós dois poderiamos trabalhar no mesmo lugar. Seria mais fácil encontrar trabalho e poderiamos ter vidas tranqüilas'', ela diz.



Questionada como ele segurou toda a responsabilidade, Durrani diz: ''Deus é responsável por isso''.



''E nossos líderes. O único caminho para que a paz retorne é se o povo se sentar e conversar; e abandonar as armas''.



Videolocadora destruída



Mohammed (Zabi) Zabiullah lembra que um dia ele viveu uma vida boa..



A loja familiar que tinha, que fazia gravações de casamentos e outros eventos em Shar-e-Naw, no centro da cidade, forneceu dinheiro suficiente para abrigar, vestir e alimentar sua família e mandar as crianças para a escola.



Quando os Talibã chegaram, com seus éditos contra vídeos e TV, destruíram a loja e surraram seu irmão mais velho, que tentava fugir do lugar.



A família fugiu do país com medo, vivendo como refugiados na cidade paquistanesa de Peshawar. Sobreviveram graças a doações e empréstimos.



Zabi, que tinha recém-concluído o estudo secundário quando o Talibã tomou o poder, viu seus sonhos de conquistar um lugar na universidade e um bom trabalho fenecerem''. Eu acredito que teria me formado como médico hoje, se o conflito não tivesse interrompido nossas vidas. Eu tinha boas notas na escola'', relembrou à al-Jazira.




No início deste ano o pai de Zabi faleceu, jogando em suas costas mais responsabilidades, como o único na família que tem um salário. ''Agora não tenho mais esperanças. Tenho de alimentar minha família''.



Zabi acha que os líderes políticos do país são culpados pela falta de mudanças.




''Ninguém trabalha honestamente. Todo mundo quer encher seu próprio bolso. Se eles ajudassem a desenvolver a economia do país eles poderiam fazer alguma diferença. O que significa então esse Dia da Paz hoje? Só as pessoas que têm TV e eletricidade em casa conseguiram saber de sua existência, ao ver as notícias sobre o dia''.



Culpando a influência externa



Wahid Frogh, um estudante da Universidade de Cabul, sente que a influência externa é a causa da violência neste país.



''É a interferência das potências internacionais e regionais que trouxe a violência que vivemos hoje. Se elas deixarem o Afeganistão em paz, poderemos viver do nosso próprio modo'', afirmou.



''Os políticos afirmam que a localização do nosso país é muito feliz, por causa da importância geo-estratégica. Mas eu acho que isso é, na verdade, a razão da nossa infelicidade. Porque essa é a razão para a intereferência das superpotências''.



Frogh não defende uma retirada imediata das tropas de ocupação internacionais, acreditando que isso faria a situação piorar, mas acha que iniciativas como a do Dia da Paz ''precisam partir do povo, e não do governo''.



''Nosso povo não dá nada pelo nosso governo. Eu não gostaria de participar em um evento como esse porque seria como trapacear, seria como uma manobra política.



Frogh acha que a participação do Talibã no evento foi uma falsidade. ''Há muitos grupos dentro do Talibã. Como eles podem aceitar um evento que foi anunciado pelos países ocidentais? eu acredito que o Talibã quis se aproveitar da data''



Apesar de sua pouca idade, Frogh conhece as desventuras da guerra. Perdeu seu pai durante os anos de guerra civil e viu sua mãe lutar como costureira para dar sustento a ele e seus parentes.



Já na escola, Frogh teve de trabalhar meio período como garçom para ajudar sua família e até hoje está procurando ajuda, para que possa completar seus estudos.



Mais a ser feito



Bahman Hares, que trabalha em uma Ong internacional, acha que uma iniciativa como o Dia da Paz é insignificante e não vai longe em tentar resolver o problema da falta de segurança no país.



''As raízes da causa desse problema têm de ser resolvidas. Exceto por um dia, isso não faz diferença. É um evento cheio de discursos, com a mídia se aproveitando dele. Após 26 anos de guerra e de violência contínua, esse país precisa muito mais que essa data para obter a paz.''



''Olhe os problemas na economia — o número de pessoas que vivem abaixo a linha da pobreza, a migração que continua a drenar o país de pessoas. Existe muita injustiça e corrupção''.



Hares e sua família retornaram ao Afeganistão depois de 10 anos como refugiados em diferentes cidades do Paquistão, e esperavam que, finalmente, achariam a paz e a estabilidade em seu país.



''Mas a paz não foi restaurada, estamos testemunhando violações seguidas. Eu não tenho esperanças em relação a isso. As atuais políticas do governo e das forças de ocupação não podem trazer a mudança que o Afeganistão necessita''.



Críticas severas


 


Borhan Younus diz que as potências estrangeiras não estão fazendo o necessário para que se estabeleça uma paz verdadeira.



''Isso é um show produzido pela ONU, um desperdício de dinheiro. A paz não é um slogan para ser cantado. Não é uma bandeirinha para ser dada a alguém'', afirmou.



''É uma condição a ser criada. Os grandes responsáveis, os EUA e as forças estrangeiras, não estão dando a mínima para o que é realmente necessário para pacificar o país''.



Younus acredita que só iniciativas afegãs, planejadas e executadas por afegãos, podem criar as condições necessárias para a mudança que fará a paz florescer.



''Isso não deveria ser tentado por um dos lados do conflito. A ONU não pode sequer sair de Cabul''.



Younus também vê sinais que o Talibã está adotando estratégias diferentes e até mesmo usa a diplomacia para conquistar seus objetivos.



''Eles estão se transformando em uma força mais responsável. Eles sempre tiveram um pouco de respeito pelas Nações Unidas, mesmo quando estavam no poder''.



Ele diz que o fato do Talibã ter aceitado suspender suas operações ofensivas por um dia indica uma crescente força.



Mesmo assim ele sustenta que os dois lados são igualmente responsáveis pela violência.



''As forças de ocupação, que às vezes detonam a violência, e o Talibã, que não escuta nenhum tipo de chamado pela reconciliação, são ambas culpadas pela violência'', afirma.


 


 


*Em 2002, as Nações Unidas declararam o dia 21 de setembro como a data permanente para a comemoração do Dia Internacional da Paz.


A intenção da ONU ao criar a data era que, neste dia, fosse obedecida uma trégua incondicional entre partes beligerantes, que encorajasse a humanidade a trabalhar, cooperação no sentido de encontrar soluções para a Paz.