'Irritação' russa, ou recusa do inaceitável?
“O que não teríamos de ouvir se a Rússia se propusesse instalar armas estratégicas no México (ou, para tomar um exemplo entre mil, em Cuba), pretendendo faze-lo não com uma intenção hostil aos Estados Unidos, mas com o único fim de melhor poder 'visar'
Publicado 25/09/2008 14:16
O que não teríamos de ouvir se a Rússia se propusesse instalar armas estratégicas no México (ou, para tomar um exemplo entre mil, em Cuba), pretendendo faze-lo não com uma intenção hostil aos Estados Unidos, mas com o único fim de melhor poder 'visar' alguns 'fanáticos' esquimós? Uma boa gargalhada pós-moderna precederia, sem dúvida, uma bem orquestrada cruzada contra os fautores de guerra.
'Desiguais'. Ora, a atual administração Bush conduz o planeta para a beira de numerosos abismos, entre os quais se conta este. Com efeito, a Duma (Câmara baixa do Parlamento russo) votou a favor de um projeto de lei 'sobre a suspensão pela Federação Russa da aplicação do tratado sobre as forças convencionais na Europa', um dos textos chave que regulam a segurança no Velho Continente desde o início dos anos 90.
O texto foi adotado por unanimidade dos 418 deputados presentes e será apresentado nos próximos dias no Conselho da Federação (Câmara alta), e depois submetido à assinatura do presidente da Federação Russa.
A Rússia reclama a possibilidade de 'deslocar livremente as suas tropas no seu território', sem se submeter às 'limitações desiguais', impostas, segundo diz, pelo tratado sobre os 'flancos' dos dois antigos blocos.
“Nós devemos ter esse direito, essa possibilidade de deslocar, de instalar, de criar novas forças armadas, onde elas são indispensáveis para defender os interesses e a segurança do nosso país”, declarou o chefe do Estado-maior do Exército, o general Yuri Baluievski, citado pela Agência Interfax.
A Rússia, que vê irromper duas vezes por ano revoluções 'laranja' nas antigas repúblicas soviéticas, declara-se também ameaçada pelo projeto dos Estados Unidos de instalar elementos do seu escudo anti-mísseis na Polônia e na República Tcheca (onde se sucedem as manifestações contra tal projecto).
Este arsenal seria instalado a poucos metros da fronteira russa, mas teria apenas por objectivo visar Teerão, Bagdá, os campos petrolíferos do Oriente Médio e mais umas montanhas afegãs. Nada de mais natural, em suma, como diria o opinioso Sr. Sarkozy.
Incendiários
O Afeganistão em ebulição, o Iraque a ferro e fogo: um arco inteiro de países invadidos ou desestabilizados pelo imperialismo americano parecem incendiar-se, na imediata periferia da Rússia, desde a fronteira oriental da Turquia até ao Paquistão.
No momento em que muitos russos comemoravam o 90º aniversário da Revolução de Outubro de 1917, a imprensa francesa não se contentava com utilizar uma linguagem digna destes tempos de restauração: 'barbárie de rosto humano' (Figaro Magazine, 13 de Outubro), regime saído de um 'estranho golpe de Estado', conduzido por um Lenin que não cessou 'de excitar o ódio' (Jan Krauze, Le Monde 5 e 7 de novembro), etc…
Agora, por ocasião do atual início de crise entre Moscou e Washington, fala de 'irritação' russa e retoma tal e qual as fanfarronadas dos incendiários neo-conservadores.
Agindo deste modo, ignora conscientemente o efeito devastador do 'Tratado de Versalhes' a frio, imposto à Rússia depois do fim da katastroika, para utilizar o termo de Alexandre Zinoviev e ignora simplesmente o sentimento de humilhação que prevalece neste imenso país desmembrado, destroçado por um capitalismo mais mafioso que o natural, em vias de se ver cercado sob a pressão do Pentágono e dos seus amigos pirómanos.
Marx dizia que a História, sempre parecia 'repetir-se', mas uma vez como tragédia e outra como farsa. Tendo em vista a exasperação popular e a ascensão do nacionalismo na Rússia, podemos perguntar, ao invés, se a farsa Vladimir Jirinovski, o líder da extrema-direita, não será seguida em breve pela mais séria tragédia dum bonapartismo, ou talvez mesmo de um neo-fascismo à la russe.
* Filósofo, professor da Universidade de Sorbonne, Paris, autor do livro Lenin e a Revolução, editado em Portugal por Edições Avante!