Brasil vive boom de remontagens. Sinal de crise no teatro?
A estréia do monólogo Brincando em Cima Daquilo, em São Paulo, nesta quarta-feira (1), dá impulso definitivo à onda de remontagens de textos bem-sucedidos na década de 80 que toma a cena paulistana, depois de passar pelo Rio.
Publicado 30/09/2008 19:48
A peça estrelada por Debora Bloch se junta a O Mistério de Irma Vap e Doce Deleite no ''revival'' oitentista — que toma ares de tributo a Marília Pêra, envolvida nas produções originais das três peças. Enquanto dramaturgos fazem ressalvas à maré saudosista, os produtores preferem contemporizar.
Alcione Araújo, autor dos esquetes de Doce Deleite, diz que ficou surpreso com o êxito da remontagem protagonizada por Camila Morgado e Reynaldo Gianecchini — 29.929 espectadores em quatro meses de temporada carioca, apesar de críticas pouco entusiasmadas da imprensa local.
Araújo sugere três hipóteses para a boa acolhida: a possível perenidade das histórias, a estagnação na percepção de comédia por parte das platéias ou a regressão do próprio humor brasileiro. ''Com o fim da ditadura e dos antagonismos mais explícitos, o nosso teatro se associou ao entretenimento e deixou de ser uma indagação mais densa sobre o homem no espaço social. As questões políticas e sociais que motivaram a minha geração se tornaram programa de governo. Os artistas se desimcumbiram dessa missão (levantar bandeiras político-sociais).''
Para ele, ''diante de um horizonte sem grandes nuances'', a objetividade do produtor teatral o faz recorrer a títulos que emplacaram no passado. ''Hoje, no Brasil, essa ideologia do resultado imediatista vingou, do sindicalismo à vida cultural.''
Os autores que poderiam renovar essa engrenagem, observa Araújo, têm as atenções voltadas para outras áreas. ''As pessoas que têm algum talento para a escrita e para a narrativa dramática estão optando pela TV ou pelo cinema. O teatro deixou de ser um formulador de idéias, ainda não encontrou uma linguagem que vá mais fundo no homem.''
Sem inquietação
O autor e diretor Amir Haddad, responsável pela dramaturgia de Brincando em Cima Daquilo, faz coro no que se refere à falta de material inédito de qualidade: ''Não sinto tendências, modernidade na dramaturgia brasileira atual. Faltam textos novos que a gente se sinta estimulado a montar. A inquietação fica reduzida a alguns núcleos''.
Ele insere a crise da cena nacional num contexto global de falência ''da dramaturgia do teatro burguês realista''. Segundo Haddad, ''era necessário haver um teatro que rompesse a ideologia e falasse da decadência — o que ainda não temos coragem de fazer''. O diretor frisa, entretanto, que a situação brasileira é especialmente grave por causa da ''quebra de um pacto social entre artistas, vida cultural e país''.
''A partir daí, a produção perdeu muito em qualidade. Passamos a ser terra de ninguém, e assunto nenhum nos parecia suficientemente interessante. Nos internacionalizamos sem nenhum compromisso. Vinte anos de ditadura e mais um período neoliberal violento foram suficientes para acabar com as ligações dos artistas com seu lugar. Isso produziu um empobrecimento geral'', dispara Haddad.
E sobe o tom das críticas. ''O sistema de estrelas se implantou sem responsabilidade. A coisa brasileira ficou ‘farinha pouca, meu pirão primeiro’.'' O diretor avalia ser compreensível que produtores busquem montagens que ''não sejam investimentos a fundo perdido'', mas acha que os das peças de agora erraram a mão.
''Remontar esses textos não significa nada. A remontagem de Doce Deleite é de um vazio de dramaturgia absoluto. E ''Irma Vap'' jamais será o acontecimento que foi naquela época (1986-97) por causa de dois atores maravilhosos (Marco Nanini e Ney Latorraca). A da Debora (com dramaturgia dele) é a mais interessante, pois é uma releitura de acordo com os tempos de hoje''.
Produtores
A produtora Andrea Francez, de O Mistério de Irma Vap, discorda. ''Os grandes textos têm de ser remontados, como se faz com (William) Shakespeare e (Bertolt) Brecht.'' Para ela, ''sair para pesquisar'' novos textos não é tão fácil ''quanto se gostaria''. ''Seria interessante que houvesse um banco de peças na internet.''
Eduardo Barata, produtor de Brincando em Cima Daquilo e Doce Deleite, também julga que ''essas dramaturgias não envelheceram''. ''Várias gerações não assistiram a esses espetáculos. Acho justo remontar para elas.''
Fonte: Folha de S.Paulo