Luis Nassif: Crise desvenda análise seletiva dos economistas

A crise é importante, entre outras coisas, para desvendar a análise seletiva de economistas de mercado. Por exemplo, no começo do ano já havia sinais nítidos de que a grande crise global se aproximava e que o aumento do déficit em transações correntes

Uma das vozes que se ergueu contra esse diagnóstico foi a de Affonso Celso Pastore, em artigo de 24 de março passado, no Valor (co-autoria com Maria Cristina Pinotti). A crise internacional estava vindo a galope, com duas conseqüências óbvias: redução nos preços das principais commodities (com aumento correspondente no déficit em transações correntes) e perspectiva óbvia de aumento da noção de risco de crédito reduzindo os investimentos para o país. Era tema diário aqui no Blog



A análise de Pastore, no entanto, lembrava as discussões dos velhos sábios de Bizâncio:



1. Lembrava que o padrão histórico brasileiro foi de superávit na balança comercial e déficit nas transações correntes. Em vez de utilizar essa informação como alerta – já que esse padrão resultou em inúmeras crises cambiais – utilizava como inevitabilidade do modelo brasileiro.



2. Atribuía o déficit nas transações correntes ao fato de se ter a absorção (consumo das famílias + consumo do governo + investimentos) maior do que o produto, ou ainda, que os investimentos superaram as poupanças domésticas (pública e privada). “E por que as poupanças no Brasil são baixas? Uma das razões é a política fiscal”. (…) .



3. Minimizava o papel do câmbio no aparecimento dos déficits nas transações correntes. “A variável relevante para determinar o comportamento das contas correntes é o câmbio real, que é um preço relativo – entre os bens internacionais e domésticos -, e não o câmbio nominal, que é volátil e se comporta como um preço de um ativo”. Uma afirmação verdadeira e absolutamente inútil, já que é o câmbio nominal quem determina o preço de todas as transações econômicas do país. Seria útil se Pastore admitisse que, por ser volátil, o câmbio nominal deveria ser melhor controlado pelo Banco Central. Mas ele se limita a essa conclusão acaciana para eliminar o câmbio nominal do seu modelo.



4. Para reforçar o não controle sobre o câmbio nominal, ele dizia que o câmbio estava sendo apreciado devido ao aquecimento da demanda, não ao diferencial de juros atraindo capital especulativo. Sendo assim, obviamente não havia razões para se reduzir os juros e o ingresso de capital especulativo. Nem se pergunte porque o câmbio foi para R$ 2,00 com o fluxo de dólar pronto praticamente estável. Ou nem tente indagar toda e engenharia financeira montada pelo mercado para compensar a apreciação irresponsável do câmbio – e que explodiu agora nos casos Sadia e Aracruz. Para Pastore, como essas operações não estavam na planilha da Cristina, não existiam.



5. Por outro lado, diante dos ganhos de relação de troca gerados pela grande elevação de preços internacionais de commodities, dizia ele, essa valorização não tem prejudicado as exportações, que continuam mantendo um crescimento vigoroso. E falava da importância do câmbio apreciado para os investimentos. Como se a compra de uma máquina se esgotasse no mesmo dia e não ao longo do prazo de financiamento. Ou seja, se viesse a crise mundial – que estava à vista – esses investimentos seriam pesadamente onerados pela desvalorização cambial. Um preço fundamental para a economia – câmbio – ameaçado pelo aumento do déficit em transações correntes e Pastore fazendo embaixadas teóricas em torno de identidades contábeis.



6. (…) Se chegarmos a este ponto, e for atingido o objetivo de desvalorizar o real mantendo-se o mesmo excesso de absorção sobre o produto, a valorização adicional do câmbio real continuará a ocorrer, mas desta vez com um peso muito maior dado pela elevação da inflação dos bens domésticos.



Com a chegada da crise, o que Pastore tem a dizer?



1. Infelizmente, a conclusão é que a maior vítima serão os investimentos na formação bruta de capital fixo. Por quê? No Brasil a formação bruta de capital fixo é extremamente dependente das importações, e seu aumento acarreta a elevação nos déficits em contas correntes. (…) Quando a taxa de investimentos se eleva para níveis próximos aos atuais, os déficits nas contas correntes se aproximam de 2% do PIB. Déficits desta ordem podem ocorrer sem que o câmbio real se deprecie desde que: a) o mundo esteja disposto a financiá-los com investimentos estrangeiros diretos e em ações, ou com outros fluxos de capitais; e b) as exportações sejam estimuladas pelo crescimento dos preços internacionais de commodities, diz ele. E isso em um momento em que o quadro internacional apontava claramente para esse cenário.



2. Mas o grande encolhimento do crédito internacional muda as perspectivas de fluxos de capitais e de comportamento dos preços internacionais de commodities. Primeiro, cai o apetite para investimentos estrangeiros diretos e em ações, que se reduzem, ao lado da queda de outros fluxos de capitais. Segundo, com a queda dos preços internacionais de commodities o crescimento das exportações deverá se desacelerar, gerando depreciação do câmbio real, para a qual contribui também o encolhimento nos ingressos de capitais.E quantas e quantas e quantas vezes Pastore escreveu dizendo que todo déficit em transações correntes seria financiável…



3. Como manter o discurso da apreciação cambial dentro dessa nova conjuntura? Simples: a depreciação cambial é bem vinda para os exportadores, mas encarece as importações de máquinas e equipamentos que direta e indiretamente entram na formação bruta de capital fixo, desacelerando o crescimento, escreve ele. Posso relacionar dez itens a favor e dez contra a desvalorização cambial. Pastore seleciona apenas os itens contrários, independentemente da análise se o país conseguiria segurar o déficit em transações correntes com esse câmbio.



4. Em adição, em um cenário de desaceleração do crescimento mundial, de queda de preços internacionais de commodities, e de maior aversão ao risco, deve cair a capacidade de mobilizar recursos através do mercado de capitais. Finalmente, diante de um câmbio real mais depreciado crescem os custos das importações que direta e indiretamente são necessárias para os bens de capital que são incorporados no processo produtivo.



Qual o caminho? “O déficit em contas correntes nada mais é do que o excesso dos investimentos sobre as poupanças totais (pública e privada)”.



Logo, ele propõe um ajuste recessivo em lugar da desvalorização cambial. Só não estima de quanto deveria ser a recessão para conseguir recompor o saldo em transações correntes, corrigindo aquele déficit que ele garantia que seria sempre financiável.



Alguém aí poderia me lembrar a piada daquele economista que se perdeu em um balão?