Francês influenciado por Euclides da Cunha leva Prêmio Nobel

Um escritor francês — que já se declarou abertamente influenciado pelo brasileiro Euclides da Cunha — é o vencedor do Nobel de Literatura 2008. Jean-Marie Gustave Le Clézio, agraciado nesta quinta-feira (9) com o prêmio, é um dos mestres da literatura con

A obra prolífica de Le Clézio é percebida como uma crítica ferrenha à civilização urbana e ao Ocidente materialista. Ao conceder o prêmio, a Academia sueca enfatizou que ele é “um explorador de uma Humanidade além e acima da civilização reinante” — “um escritor da ruptura, da aventura poética e do êxtase sensual”.


 


No ano de 1997, em entrevista a O Estado de S.Paulo, Le Clézio afirmou que A Quarentena, uma de seus principais romances, tem influências diretas de Os Sertões — a obra-prima de Euclides da Cunha. “Eu diria que, ao começar a escrever A Quarentena, quis fazer um livro que ficasse entre Kidnapped (romance de Robert Louis Stevenson) e Os Sertões, isto é, que ficasse entre uma aventura literária e uma reportagem”, declarou o escritor francês.


 


Nos mais de 50 títulos escritos ao longo de uma carreira literária com 45 anos que se espraia pelo romance, ensaio e até livros infantis, há idéias recorrentes: a viagem, o exílio, a íntima harmonia com a Natureza e a nostalgia dos mundos primitivos estão entre as principais. A forte pulsão que percorre esses textos, a par do interesse por culturas díspares, levou-o a ter vários epítetos.


 


É chamado de “escritor nômade”, “índio da cidade” ou “panteísta magnífico” porque é esse apaixonado pela natureza, porque criou um universo imaginário no qual os maias dialogam com os indígenas emberás da Colômbia; e os nômades do sul do Marrocos vivem com os escravos fugidos das plantações das Ilhas Maurício. Sua obra reflete uma nostalgia dos mundos primitivos.


 


Tolhido pela surpresa com o anúncio do Nobel, Le Clézio foi parco em palavras, embora tenha confessado sentir-se “emocionado e sensibilizado”. “Como qualquer prêmio literário, este representa tempo ganho”, sintetizou o primeiro francês a ganhar o Nobel de Literatura desde o prêmio concedido, 23 anos atrás, a Claude Simon.


 


É certo que Gao Xingjian, premiado em 2000, possui nacionalidade francesa — mas sua vitória teve forte conotação política contra seu país natal, a China. Mas também é verdade que o próprio Le Clézio está longe de ser o produto de uma só cultura Viajante incansável, o escritor não tardou a trocar a Nice natal por destinos mais remotos, como a Nigéria, Banguecoque, Estados Unidos ou México. Uma espécie de busca pelo paraíso perdido que os seus livros refletem à perfeição.


 


Influências da América Latina


 


Le Clézio nasceu em 13 de abril de 1940 em Nice (sudeste da França), filho de mãe francesa e pai britânico. Sua família estava estabelecida na ilha Mauricio desde o século 18 — e os primeiros anos do francês foram marcados por viagens. Com 7 anos, Le Clézio, bilíngüe em francês e inglês, escreveu seus dois primeiros livros, relatando sua viagem à Nigéria.


 


Entrou na carreira literária pela porta da frente. Aos 23 anos, publicou sua obra-prima Le Procès-verbal (O processo verbal, em tradução livre), que lhe valeu imediatamente o sucesso. O romance, de 1963, causou sensação: partindo das últimas conseqüências do existencialismo e do nouveau roman — movimento literário francês —, o autor conseguiu “resgatar as palavras do estado degenerado da linguagem cotidiana e a elas devolveu a força para invocar uma realidade existencial”.


 


O livro — que recebeu o Prêmio Renaudot, um dos mais prestigiosos das letras francesas — marcou a linha seguida por obras como La fièvre (1965) e Le déluge (1966). Mais tarde, a preocupação ecológica ficou evidente em Terra amata (1967) e La guerre (1970), entre outras. Sua consagração definitiva veio com O Deserto (1980), coleção de imagens sobre uma cultura perdida norte-africana em contraste com a visão da Europa através dos olhos de imigrantes forçados, que valeu a ele o prêmio da Academia Francesa.


 


A proximidade com o norte da África vem de sua esposa Jemia, de origem marroquina, com quem se casou em 1975. Suas longas estadas no México e na América Central no começo dos anos 1970 marcaram a evolução de sua obra e o levaram a buscar uma nova espiritualidade em contato com os índios, expressada em Voyage de l'autre côté.


 


O escritor francês afirma dever muito ao México e ao Panamá, onde viveu por vários meses junto aos índios. “Essa experiência mudou toda minha vida, minhas idéias sobre o mundo da arte, minha maneira de ser com os outros, de andar, de comer, de dormir, de amar e até de sonhar”, comentou certa vez, ao evocar suas vivências na América Latina.


 


A tradução para o francês de obras como As Profecias de Chilam Balam e O Sonho Mexicano ou o Pensamento Interrompido revelam sua fascinação pelo passado do México, objeto de sua tese de doutorado na Universidade de Perpignan (1983). Seu trabalho acadêmico o levou a lecionar em universidades do México, Bristol, Londres, Perpignan, Bangcoc, Boston, Austin e Alburquerque.


 


O sonho do paraíso perdido, neste caso as ilhas do oceano Índico, aparece em outro de seus livros mais famosos, À Procura do Ouro (1985), e se acentua em suas obras seguintes. Temas como a memória, o exílio, a reorientação da juventude e o conflito cultural correspondem a uma tendência rumo à exploração do mundo da infância e a história de sua própria família, presentes em Onitsha (1991), A Quarentena (1995), Révolutions (2003) e O Africano (2004).


 


A imagem do escritor


 


No Brasil, foram publicados quatro obras de Le Clézio — Diego e Frida, O Deserto, A Quarentena e Peixe Dourado. Até os anos 80, ele tinha a imagem de escritor inovador e rebelde, apreciador dos temas como a loucura. Depois passou a escrever livros mais serenos, nos quais a infância, a preocupação com as minorias, a atração pelas viagens ganharam o primeiro plano — o que o fizeram ser lido por um público muito mais amplo.


 


Sobre ele, os críticos falam de “metafísica da ficção”. Em seus romances, de estilo clássico e límpido, às vezes falsamente simples, ele questiona os fundamentos da literatura tradicional, sem se limitar ao superficial. Sua vontade é “escavar o mais trágico, o mais autêntico, para encontrar a linguagem desgarrada e que provoca as emoções”.


 


“Tenho a sensação de ser uma coisa pequena neste planeta, e a literatura me serve para expressar isso. Se me atrevesse a filosofar, diriam que sou um rousseauista, que não compreendi nada”, explicou certa vez, acrescentando que um romancista tem de naturalmente escrever sobre sua juventude, “na qual o principal lhe foi dado”.


 


O escritor reside há muitos anos, junto à esposa e às duas filhas, em Albuquerque (Novo México, Estados Unidos), mas passa muitas temporadas no sul da França. Sua tendência ao isolamento não o afasta do país europeu. “É com o idioma, com os livros que hoje se pode ainda falar da França, vê-la existir nesta convergência de correntes”.


 


Alto, louro, com ares de caubói elegante, é um homem tímido, que fala de forma serena e segura. Viajante apaixonado, romancista da solidão, admirador de Stevenson e de Conrad, é um autor de referência na França. Le Clézio foi apontado como maior escritor francês vivo em enquete feita há alguns anos pelos leitores da revista Lire. Além disso, recebeu prêmios importantes, como o da Academia Francesa.


 


No entanto, o autor não constava na lista dos principais favoritos ao Nobel deste ano — encabeçada pelo italiano Claudio Magris. Uma situação bem diferente do que já ocorreu com ele em 2007, quando perdeu para a britânica Doris Lessing, e há quatro anos, ao ser superado pela austríaca Elfriede Jelinek — uma escolha ainda mais inesperada.