João Sicsú: Keynes também manda lembranças

O diretor de Estudos Macroeconômicos do Ipea e professor do Instituto de Economia da UFRJ, João Sicsú, afirma em artigo que os países desenvolvidos devem optar por uma saída “genuinamente keynesiana” para saírem da atual crise financeira.

Em texto publicado nesta quinta-feira (16) na Folha de S.Paulo, Sicsú diz que tais medidas devem conter “uma ativação dos negócios privados estimulada pelo setor público, que deverá fazer gastos, realizando obras de infra-estrutura, contratando mão-de-obra e transferindo renda àqueles que têm alta propensão a gastar (que são os mais pobres)”.



Leia abaixo a íntegra do texto:



Keynes também manda lembranças



Nesta Folha, Cesar Benjamin, inspirado, intitulou seu artigo publicado em 20/9 de “Karl Marx manda lembranças”. O texto fazia um diagnóstico da crise financeira. Agora, é hora de focar na porta de saída, então, o título adequado não poderia deixar de conter o nome de J.M. Keynes.



Marx, um revolucionário, fez diagnósticos. Keynes, um reformista radical, diagnosticou o capitalismo e propôs políticas, regras e instituições para mantê-lo vivo, regulado e a serviço da sociedade. É oportuno, portanto, destacar que a crise atual é resultado da falta de regulamentação financeira e da falta de políticas públicas de moradia para os cidadãos considerados “subprime”. Foi a falta de Estado e não a sua ação ativa que causou a crise.



Keynes tem sido lembrado. A ele tem-se recorrido, principalmente, para explicar a necessidade de intervenção nas instituições financeiras em crise. Nas obras de Keynes, não há inclinações ideológicas favoráveis a estatizações ou privatizações. Keynes reconheceu, sim, a importância de um sistema financeiro sadio e eficiente como instituição imprescindível ao bom funcionamento do sistema produtivo. É unicamente sob essa ótica que as políticas de resgate de instituições financeiras têm ligação com as idéias de Keynes.



A crise patrimonial que atingiu grandes instituições abriu o canal de contaminação do setor real da economia, inclusive, nos países em desenvolvimento. Nestes, existem dois canais de contágio do setor real. O canal objetivo das reduções do crédito e da demanda internacional. E o canal subjetivo, expectacional, da confiança no futuro da economia. A tendência é que tal base de expectativas seja negativa na medida em que é influenciada pela volatilidade e pela desvalorização das moedas domésticas e das ações negociadas nas Bolsas locais.



O crédito será afetado porque instituições financeiras que não foram atingidas diretamente estão temerosas e decidiram retrair seus negócios. Empresários que tinham planos de investimento vão engavetá-los para esperar o cenário ficar mais nítido. Mesmo aqueles que não necessitam do sistema financeiro para investir, produzir ou consumir tenderão a assumir posições defensivas. Portanto, o risco nos países em desenvolvimento é que haja uma forte desaceleração das suas economias.



Nos países em desenvolvimento, todas as políticas de ampliação da liquidez podem manter a saúde dos sistemas financeiros, mas não serão capazes de restaurar plenamente a atividade de financiamento. Essa atividade depende de expectativas acerca do futuro. E, durante as crises, potenciais credores e devedores tendem a ser pessimistas. Portanto, para os países em desenvolvimento, uma saída para ser bem-sucedida deverá ter caráter genuinamente keynesiano. Deverá promover uma ativação dos negócios privados estimulada pelo setor público, que deverá fazer gastos, realizando obras de infra-estrutura, contratando mão-de-obra e transferindo renda àqueles que têm alta propensão a gastar (que são os mais pobres) e, portanto, não vão represar liquidez. A política fiscal de gastos objetiva, ademais, promover uma reversão do quadro negativo ou excessivamente cauteloso que sustenta a formação de expectativas.



Keynes alertou para a diferença existente entre as políticas de ampliação da liquidez e as políticas fiscais de gastos. As primeiras são dependentes de reações por vezes pessimistas, enquanto as últimas ativam diretamente os negócios privados da economia. E fazem, portanto, emergir novos argumentos para que os agentes formem expectativas otimistas acerca do futuro. Keynes junta-se, assim, a Marx para nos mandar lembranças.