Para professora da USP, arte no Brasil sempre foi censurada

“A censura não é um privilégio das ditaduras; ela sempre existiu no Brasil”. A frase é da professora Maria Cristina Castilho Costa, coordenadora do Arquivo Miroel Silveira, da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP, e reflete uma realidade diferente

“O que acontece é que, nas ditaduras, nos governos ditatoriais, a censura é mais institucionalizada, fica claro o jogo que existe entre a elite dominante, os seus interesses, e a perseguição a toda posição crítica e a toda oposição”. A censura é uma forma de poder, e assim ela foi utilizada durante toda a história, em particular dos países coloniais, pelo mundo. Desde o início da colonização, o Brasil já tinha a censura, mesmo nos documentos religiosos, acrescenta a professora.



No seminário 1968: Liberdade e Repressão, realizado na ECA entre os dias 13 e 15 de outubro, a discussão sobre a ditadura e a institucionalização da censura com o Ato Institucional número 5, assinado naquele ano, deu espaço para um pensamento mais amplo acerca do tema. Tendo o teatro como base, palestrantes como César Vieira, diretor do Teatro União e Olho Vivo, Sérgio Salvia Coelho, diretor do Teatro da Lucidez e Maria Tereza Vargas, autora de peças, retrataram o quadro antes e pós-AI-5, com todas as implicações que o ato trouxe para a cultura nacional.



A história está viva



“A minha principal qualidade é ser velha e ter visto algumas coisas que alguns não viram”, afirmou Maria Tereza. Aos 79 anos, ela lembra com clareza dos anos difíceis que passou  durante a ditadura. “Até o golpe, foram 24 anos de luta. Se 1968 foi para o resto do mundo um renascimento, para nós foi uma tentativa de afogar todas as nossas conquistas”. Dos anos 40 até os anos 60, os grupos de teatro se articularam para o fortalecimento da classe, até então tida como um grupo de vadios ou marginais.



Quando o governo era de Juscelino Kubitschek, falava-se em desenvolver para sobreviver. No mundo das artes, a mensagem era de esperança e confiança, diante do sentimento de nacionalismo passado pelo governo. Foi nessa época que companhias como o Teatro de Arena, fundamentais para a caracterização de um teatro nacional, conseguiram manter grupos fixos. O trabalho contínuo ajudou muitos atores que não tinham condições de se manter por conta do abandono por parte de suas famílias. Por outro lado, a Escola de Artes Dramáticas (EAD), atualmente da USP, ajudava com o famoso “sopão” para os artistas abandonados. Após o golpe, esse fortalecimento foi ameaçado pela força da ditadura.



Grupos como o Teatro União e Olho Vivo e o Teatro de Oficina foram fortemente perseguidos, e muitos atores foram presos. César Vieira, que além de diretor de teatro era advogado, defendeu milhares de atores acusados pela Polícia Federal. Por esse motivo, ele se viu obrigado a mudar seu nome – do original Idibal Almeida Piveta para o pseudônimo César Vieira. Assim, a censura não proibia suas peças por serem do “advogado dos presos culturais”. O subterfúgio deu certo apenas por dois anos, mas, mesmo após descoberto pelos censores, o diretor nunca mais abandonou a alcunha.



Arte popular é lixo



Além de exercício de poder, a censura no Brasil significou um conflito entre uma cultura erudita e uma popular, e uma forma de não haver oposição, reprimindo e desvalorizando o que era popular. Dessa forma, os teatros foram bastante perseguidos, por terem um caráter mais próximo da população do que a literatura, por exemplo. E foi nas periferias que os atores e autores se refugiaram, formando grupos de teatros dentro das comunidades. Muitos deles até começaram a dar aulas nas escolas, onde se aproximaram dos jovens, mostrando a arte como forma de expressão. Mas, com o endurecimento da perseguição, a maioria foi demitida, sendo considerados “subversivos”.



A perseguição ao popular se deve principalmente ao medo da disseminação do comunismo no Brasil. Após a Revolução Russa de 1917, o Partido Comunista Soviético usou a política cultural como uma forma de catarse reflexiva: a arte como objeto de conscientização da platéia. A arte popular foi colocada pelos soviéticos acima da indústria cultural e da arte erudita, que seriam da ordem do entretenimento, da alienação, da ilusão e da ficção.



Muitos dos grupos seguiram o mesmo pensamento, buscando a conscientização do público pela arte. Para José Celso Martinez Corrêa, diretor do Teatro Oficina, o teatro de agressão era a forma ideal de se chegar ao público. Ele achava que a platéia deveria reagir ao espetáculo, mesmo que fosse de forma negativa, saindo antes do fim da peça. Se as pessoas se levantavam, se elas agiam, isso significava que elas estavam sentindo a mensagem que ele queria passar.



Esse tipo de teatro foi sumariamente perseguido, a exemplo da violência cometida pelo Comando de Caça aos Comunistas (CCC) após a apresentação da peça Roda Viva, de Chico Buarque de Holanda, com direção do próprio Zé Celso. Mesmo com os rumores de que a invasão do CCC acontecera por engano, o que ficou marcado foi a invasão do palco e dos camarins.



As faces da censura



Para Maria Cristina, a censura existe de várias formas. Ela se mostrou religiosa, como a proibição do aparecimento de padres em peças; política, não podendo ter presidentes ou piadas sobre o presidente; de palavras – “operário” e “classes sociais” eram proibidas; moral, isto é, em defesa dos “bons costumes”; e social, com referências étnicas e sobre minorias sendo vetadas.



Todas essas formas visavam, na verdade, à manutenção da ordem estabelecida. Tudo que pudesse fazer referência ao comunismo ou que pudesse levar à catarse reflexiva era automaticamente refutado pela censura, principalmente após o AI-5, quando tudo ficou sob responsabilidade do governo federal. Antes, muitas peças passavam em São Paulo, mas eram barradas no Rio (ou vice-versa). Não havia uma padronização do sistema de censura, e os censores eram, inclusive, considerados “intelectuais”, que incentivavam as artes. Após 1968, eles passaram a ser pessoas de dentro da Polícia Federal, e tinham normas restritas a serem seguidas. Aqueles que deixavam passar peças com as proibições eram perseguidos.



A redemocratização veio junto com uma nova Constituição que garante os direitos individuais, de expressão e de acesso à arte. Mesmo assim, para alguns autores de teatro, a censura ainda não acabou. “Na ditadura, o inimigo era claro. Hoje, ele é velado”, afirma o diretor César Vieira. Para ele, a lei de incentivo é apenas a máscara da censura. “A Lei Rouanet beneficia com caviar quem já come faisão”, sentencia.



Para ele, assim como para outros autores, a censura agora, como por vezes acontecia na ditadura, é co-autora das obras. “Era a pior coisa que poderia acontecer”, afirma ele. Por saber que não passaria pela censura, os autores já nem escreviam aquilo que queriam, moldavam-se previamente para ter suas peças encenadas. Hoje, com a chamada censura econômica, os autores e diretores deixam de abordar certos aspectos ou assuntos porque sabem que não terão patrocínio. “Grandes empresas só investem em rostos bonitos ou em peças que vão dar lucro, como Miss Saigon  ou O Fantasma da Ópera, que nem podem ser mexidas aqui no Brasil”. Para Vieira, o verdadeiro teatro brasileiro está restrito aos pequenos espetáculos, sem incentivo. A única exceção, para ele, é a cidade de São Paulo, que tem na Lei de Fomento à Cultura uma solução para a arte verdadeiramente popular.



Fonte: Agência USP