Bolívia: Nova Constituição será transição para o “bem-viver”
Durante mais de um ano, a nova Constituição Política do Estado (CPE) foi satanizada pela oposição boliviana, cega em sua pretensão de fazer prevalecer seus privilégios, desfrutados por tantos anos. Isso sem conta que, durante à realização da Assembléia
Publicado 03/11/2008 15:24
Depois desse longo tempo, finalmente a nova CPE será levada à consulta popular em dois referendos simultâneos: um para estabelecer a extensão máxima de terras que poderão ser obtidas no país e outro para ratificar ou não sua vigência. Trabalhamos, por termos proposto a mudança, por sua ratificação. Hoje estamos seguros de conseguir quase uma unanimidade, com os votos contrários apenas dos que querem seguir negociando com a terra, espoliando o erário nacional, fazendo negócios ilegais e comercializando a soberania nacional, tudo em conjunto. Mais de 80% dos bolivianos e bolivianas dirão “sim” à nova CPE.
A virtuosa nova CPE
A Carta Magna boliviana sofreu inumeráveis modificações. Essencialmente, no entanto, segue sendo a aprovada ao se fundar a República. A estrutura básica dessa CPE, com todas as modificações que lhe foram feitas, é a mesma: uma concepção liberal da relação entre o Estado e a sociedade. Dessa concepção emerge toda a estrutura que prioriza o capital, subordina o trabalho e relativiza os direitos das pessoas.
A nova Constituição reconhece e põe em primeiro lugar o caráter plurinacional da Bolívia, estabelece o direito dos povos indígenas originários campesinos e, pela primeira vez, lhe dá lugar no texto constitucional. Inclui a justiça comunitária e estabelece a legalidade que lhe negaram até hoje. Abre espaço à propriedade e às transações comunitárias.
A partir daí, é lógico que se produzam modificações importantes na estrutura dos órgãos de poder. O mais importante disso é que todos esses órgãos têm responsabilidade direta ante o povo. O controle social já não se reduz à eleição das autoridades, mas sim a uma participação ativa de fiscalização dos atos do Estado e, uma grande conquista, o direito a exigir a revogação de mandato das autoridades nacionais que não cumpram seu trabalho.
É outro Estado que será desenhado pela nova CPE. Já não se trata de melhoramentos do velho estado liberal. É certo que a revolução de 1952 incorporou aportes essenciais a essa estrutura e acabou com os vícios coloniais mais deprimentes. No entanto, manteve o núcleo liberal da Constituição.
Além disso, no capítulo da terra, com a reforma agrária imposta em agosto de 1953, se desconheceu as terras comunitárias e elas foram entregues individualmente a cada membro do ayllu (nota da redação: forma de comunidade familiar extensa, originária da região andina). Desse modo, a revolução nacional os obrigou a se reconhecer como camponeses, no esforço de criar uma nacionalidade boliviana única, dissolvendo a identidade dos povos originários.
É provável que não tenha sido essa a intenção, mas o resultado foi tal e, em conseqüência, o movimento indígena originário se viu obrigado a remontar a estrutura desenhada pela reforma agrária. Os ayllus se mantiveram organizados em sindicatos, se reunindo em assembléias e aplicando a justiça comunitária acima das obrigações que o poder central lhes impunha. Foi assim que, ao se iniciar a nova época das ditaduras militares, transitaram por meio do pacto militar campesino. Tal movimento, depois de atravessar tantas vicissitudes, alcançou sua maturidade quando reivindicou sua cultura, reassumiu sua identidade e falou com orgulho em sua língua nativa.
Hoje, a Constituição que será votada em 25 de janeiro proclama: É nação e povo indígena originário campesino toda a coletividade humana que compartilhe identidade cultura, idioma, tradição histórica, instituições, territorialidade e cosmovisão, cuja existência é anterior à invasão colonial espanhola.
E declara seus direitos: de existir livremente, de ter sua identidade cultural, crença religiosa, espiritualidades, práticas e costumes e a sua própria cosmovisão, de que a identidade cultural de cada um de seus membros se inscreva junto à cidadania boliviana em sua cédula de identidade, passaporte e outros documentos de identificação com validade legal, de ter livre determinação e territorialidade, de ver suas instituições fazer parte da estrutura geral do Estado, de titulação coletiva de terras e territórios, além da proteção de seus lugares sagrados.
Há mais itens do que esses, mas aqui só mencionamos os primeiros. Mas é suficiente para ressaltar que a nova CPE reconhece, pela primeira vez, uma história de séculos que não puderam ser apagados pelos espanhóis e nem pelos “criollos”.
Abrindo caminhos
É um primeiro, fundamental e transcendental passo que está dando esta Constituição. Terão que dar outros, porque há muito, muitíssimo mais que precisa ser feito.
Dois terços das bolivianas e dos bolivianos se reconhecem como parte de uma nação originária, de uma etnia, de um povo que habitava essas terras desde tempos imemoriais. Sua cultura se manteve através dos séculos, mas, sobretudo, resistindo à deformação, incorporando os elementos que lhe serviram para sobreviver e se sustentar, aprendendo o que conheciam os povos conquistados e mantendo suas ciências, aperfeiçoando suas artes, usando sua sabedoria ancestral.
Essa cultura – tradições, formas de ser, de se expressar, de se relacionar, de viver com a natureza – tem que ser a característica que, no futuro, seja igual para todos nós. Ainda temos que percorrer um caminho que aproximação, fazendo que o traído comece a conviver com o nascido aqui. Esses caminhos teriam que se unir e então, só então, seremos apenas um povo.
Não viveremos bem até alcançar tal propósito. E isso não pode ser só na Bolívia. Aspiramos por essa grande nação latino-americana que está dando seus primeiros passos. É preciso coordenar a marcha para que todos cheguemos à meta. Por isso, a Constituição Política do Estado, que deve ser ratificado em 25 de janeiro, é uma Constituição para todos.
* Antonio Peredo Leigue é senador pelo MAS na Bolívia.
Artigo enviado ao Vermelho pelo próprio autor
Tradução: Fernando Damasceno