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Crise, infra-estrutura e alternativas para sustentação

A crise econômico-financeira que assola as economias por todo o mundo impôs a necessidade de refazer os fluxos de caixa e os arranjos financeiros dos investimentos privados e públicos. 



Por Guilherme Narciso de Lacerda*

É provável que esta instabilidade ainda perdure por um bom tempo e que persistam os inibidores do crescimento das diferentes economias. A reversão desse cenário só se dará com fortes indicações do esgotamento das ameaças de fragilidades corporativas e quando as medidas de estímulo governamentais surtirem efeito. 



No entanto, reanimar mercados que se ressentem de liquidez e crédito – e sobretudo de confiança – requer esforços continuados e bem dirigidos. No Brasil, para preservar investimentos em infra-estrutura, com altos níveis de alavancagem e prazos longos de maturação, os desafios são ainda maiores. De um lado, há nítidas deficiências estruturais em nossos sistemas financeiro e securitário e, de outro, há também obstáculos para atuação do setor público em ações anti-cíclicas. 



O sistema financeiro nacional sofisticou-se, mas sem priorizar linhas de crédito privado em prazos mais elásticos; estruturou-se e modernizou-se financiando o passivo nacional a generosas taxas de juros. Por sua vez, o segmento de seguros de crédito é deficiente para oferecer alternativas que atendam aos requisitos de proteção de risco exigidos pelos financiadores, especialmente na magnitude dos projetos estruturantes. 



Já o setor público – considerando os seus três níveis federativos – foi desenhado para ter barreiras fortes à liberação de recursos, especialmente quando se trata de despesas não correntes. Para acumular substanciais superávits primários anuais, colocou-se em prática um manancial de controles e restrições, cuja desativação não tem demonstrado ser uma tarefa fácil. 



Há um consenso nacional de que se não rompermos os profundos gargalos de infra-estrutura, espalhados por todo canto, o Brasil não terá condições de sustentar seu desenvolvimento econômico. Para tanto, o governo federal lançou no início de 2006 o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) que reabriu, depois de duas décadas, um novo momento para a economia brasileira. Sua força pode ser medida pelo fato de que sucessivamente o crescimento do investimento tem superado, de longe, o crescimento do consumo, sendo, portanto, o principal vetor determinante de nosso ciclo virtuoso. A Taxa de Formação Bruta de Capital Fixo (FBCF/PIB) saiu de 15,2% em 2003 para atingir 20,4% agora. No terceiro trimestre anual comparado ao do mesmo período de 2007, as taxas de expansão foram de 19,7% para o investimento e 7,3% para o consumo das famílias. 



Ocorre que diante dos profundos impactos gerados pela crise mundial, os investimentos em infra-estrutura serão as principais alavancas para atenuar a queda do desenvolvimento econômico. Aliás, não só por aqui, como também nas demais economias. Por isso, a China disparou um pacote de novos projetos e o futuro presidente americano já anunciou que a saída será a mesma de 1932. Naquela época, o então presidente Franklin Delano Roosevelt deflagrou o New Deal – série de programas implementados nos EUA que tinham o objetivo de recuperar e reformar a economia americana – contrariando os já bem-postados defensores do “orçamento equilibrado”, tão bem desmistificado por Celso Furtado. 



As medidas lançadas para enfrentar esta nova realidade estão na direção certa e foram adotadas com agilidade: linhas para expansão da liquidez geral, redução de tributos, geração de funding para bancos médios e maior possibilidade de se ter participações acionárias por bancos públicos, especialmente em segmentos mais sensíveis como, por exemplo, o setor financeiro e a construção civil. 



Porém, há muito ainda para ser feito. Notadamente, para o setor de infra-estrutura, não basta ter funding. A exigência de garantias corporativas ou da apresentação de carta de fiança bancária para o período da obra, ou seja, antes que haja a geração de receitas, é um obstáculo enorme para a execução de projetos. Tal exigência não se adequa à natureza dos financiamentos de infra-estrutura e demonstra uma forte deficiência de nosso sistema, o qual ainda não assimilou o conceito genuíno de um “project finance”. Garantia corporativa faz mais sentido para financiamentos de capital de trabalho e fiança de banco eleva sobremaneira o custo dos projetos e, na conjuntura atual, está fora de cogitação. 



Ademais, considerando a organização do mercado securitário no Brasil, não há alternativas de seguros de obra suficientes para atender os controles de risco exigidos pelos financiadores. Além disso, no caso de agências públicas de financiamento, os gestores estão sem qualquer margem de manobra para agirem diante das frias disposições legais dos órgãos de controle, existindo, inclusive, políticas de conseqüências individualizadas. 



Nestes termos, uma alternativa seria a instituição de um Fundo Garantidor para ser acionado exclusivamente nos financiamentos de investimentos novos (greenfields). Esse mecanismo poderia ser desenvolvido a partir daquele aprovado em 2004 para as parcerias público-privadas. Ele tem a vantagem de já estar pronto e de ter sido concebido a partir de ampla discussão com os setores envolvidos (inclusive já submetido ao crivo do Legislativo). 



Adicionalmente, sugere-se: a) reformular o mercado securitário de créditos/obras para dar condições de maior fôlego de atuação; e b) reavaliar as restrições para as empresas estatais concederem garantias. Elas participam de consórcios com empresas privadas e também precisam ser responsabilizadas, de maneira a não desequilibrar a equação financeira requerida. Os atuais contingenciamentos dificultam o atendimento dos financiadores. 



Por fim, não há como ter redirecionamento de recursos internos aptos a serem alocados em investimentos produtivos com uma taxa básica de juros real da ordem de 8%. É curioso que, neste caso, o impacto do crowding out tão bem explicado em robustos diagnósticos acadêmicos é totalmente esquecido, embora outros postulados pseudo-paradigmáticos permaneçam intocáveis. 



Enfim, o mundo pós-setembro de 2008 exige revisão profunda dos conceitos e variáveis dos modelos utilizados nas projeções inflacionárias. Estamos vivendo um tempo novo que impõe a necessidade de romper com as aparentes certezas do passado. Essa ruptura, como lembrou Keynes, é mais difícil que aceitar o novo. Atenuar a perversidade social desta inusitada crise econômica mundial requer uma revisão de pressupostos da regulação dos mercados e a proposição de soluções pragmáticas que sustentem a gradativa expansão do investimento produtivo, tanto pelos agentes privados quanto pelo setor público. 



* Guilherme Narciso de Lacerda é economista com mestrado pela USP e doutorado pela Unicamp. Preside a Fundação dos Economiários Federais (Funcef).



Artigo publicado originalmente no Valor Econômico (19/12)